quinta-feira, outubro 30, 2008

Íncubo Escorou-se na janela aberta para a rua e sentiu um calafrio esquisito percorrer-lhe a espinha. Estava escuro? Sim, todas as luzes estavam apagadas. Ela amava perambular em silêncio na escuridão da casa. Tatear o contorno dos móveis antigos, as linhas do próprio corpo... sim, ela amava despir-se diante das brumas da madrugada e da memória. Contemplar as estrelas. Tão raro poder vê-las. As luzes da cidade ofuscam o encanto da noite assim como o mistério dos olhos. Diante da janela que emoldurava rubis e diamantes estelares afastou as pernas, alongou o pescoço, os braços, um para cada lado... também era uma estrela de cinco pontas pulsando na noite morna. De repente, emerge da própria companhia para um sobressalto. Não tem coragem de voltar o olhar quando a porta do quarto bate. É o vento, faz o sinal da cruz. Na praia já havia passado por algo do tipo, benze-se outra vez, algo que tentava esquecer, quando interrompera aquela discussão e, descendo do mezanino, fora dormir na sala. Acomodou-se no sofazinho, de costas para a escada. A luz amarelada da varanda penetrando pelas frestas do telhado sem lambri. Com o rosto voltado para a parede abraçou a almofada e, pondo uma das quatro pontas entre os joelhos, cobriu sua nudez com uma manta cheirando a armário. Aconchegara-se na própria mágoa para esquecer os insultos que ouvira. Mas, na fronteira entre a vigília e o sono, ali, onde confundimos os mundos, percebeu alguém em pé, quase encostado no sofá, ao seu lado. Mesmo sem olhar, sentiu a energia de um homem. Seria o seu? Arrependido das grosserias lhe beijaria as faces, os olhos vermelhos do choro sufocado, “me perdoa, gringa”, ela iria ouvir reconfortada e fariam as pazes e depois amor. Mas não houve palavra. Nem gesto. Alguém permanecia ali, imóvel, espiando seu corpo. E então, agora, a mesma impressão de estar sendo vigiada. Quando a porta do quarto bate, de morno, o ar fica gelado. Os pelos da nuca retesados conectam sua lembrança com o resto do episódio da praia quando, agarrada ao escapulário encarou um estranho, metido num capote preto até o chão, lá em cima um chapéu de abas enormes a ocultar, nas trevas, rosto e intenção. Pareceu-lhe ouvir seu respirar: lento e profundo como quando se está no domínio da situação. Pareceu-lhe mais, pareceu-lhe intensamente úmido e ainda mais salobro o ar. A criatura tem algo nas mãos... uma pedra? Vai esmagar minha cabeça! Ao amanhecer estarei morta e o mundo nem vai ligar, no máximo uma notinha no jornal local “veranista é trucidada dormindo”, mas eu não estou dormindo, não estou, JOHNNY!, pensou ter gritado. E vai ver que gritou, de fato. Pois o grito dado ou pensado libertou-a do quebranto. FLASH SOBRE DUAS GARRAS VERDES, VISCOSAS, NAS PONTAS DO QUE SERIAM DEDOS, VENTOSAS, NÃO ESTOU DORMINDO, POR DEUS, AQUILO TRAZ UMA GAIOLA INFESTADA DE RATOS, AMARRADA NA CINTURA... OU... DO UMBIGO FAZ PARTE E FLUTUA! Não quer lembrar o verão! Sai da janela, rápido, tateando até a cama; protege-se entre ursinhos de pelúcia, negações e travesseiros. Só que ele a espreita de novo e, a qualquer momento, sem qualquer ruído pode arrancar-lhe o lençol, seu esconderijo de pano. Sob as abas do chapéu, lá em cima, Johnny, a gente se salva no afeto ou na saliva densa de sede e fome? Então, a criatura retirou de dentro da gaiola o maior deles. O mais peludo. Com seu rabo de chicote. Seu guincho de porco na degola. Retirou aquele rato bem do fundo e, lentamente, intimamente, levantando a manta com cheiro de armário forçou o bicho várias vezes até abrir caminho. Foi quando a noite partiu-se ao meio. Com gemidos de quem sucumbe ao diabo, ou dele se liberta. Por espasmos da garganta ou da vagina. Myrian Beck Publicado no jornal digital VIAPOLÍTICA

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