segunda-feira, janeiro 31, 2011


Profecia

Nem me disseram ainda
para o que vim.
Se logro ou verdade,
se filho amado ou rejeitado.
Mas sei
que quando cheguei
os meus olhos viram tudo
e tontos de gula ou espanto
renegaram tudo
- e no meu sangue veias se abriram
noutro sangue...
A ele obedeço,
sempre,
a esse incitamento mudo.
Também sei
que hei-de perecer, exangue,
de excesso de desejar;
mas sinto,
sempre,
que não posso recuar.

Hei-de ir contigo
bebendo fel, sorvendo pragas,
ultrajado e temido,
abandonado aos corvos,
com o pus dos bolores
e o fogo das lavas.
Hei-de assustar os rebanhos dos montes
ser bandoleiro de estradas.
- Negro fado, feia sina,
mas não sei trocar a minha sorte!

Não venham dizer-me
com frases adocicadas
(não venham que os não oiço)
que levo caminho errado,
que tenho os caminhos cerrados
à minha febre!
Hei-de gritar,
cair, sofrer
- eu sei.
Mas não quero ter outra lei,
outro fado, outro viver.
Não importa lá chegar...
O que eu quero é ir em frente
sem loas, ópios ou afagos
dos lábios que mentem.

É esta, não é outra, a minha crença.
Raios vos partam, vós que duvidais,
raios vos partam, cegos de nascença!


(Fernando Namora faleceu a 31 de Janeiro de 1989)

domingo, janeiro 30, 2011


Rumo

É tempo, companheiro!
Caminhemos ...
Longe, a Terra chama por nós,
e ninguém resiste à voz
Da Terra ...

Nela,
O mesmo sol ardente nos queimou
a mesma lua triste nos acariciou,
e se tu és negro e eu sou branco,
a mesma Terra nos gerou!

Vamos, companheiro ...
É tempo!

Que o meu coração
se abra à mágoa das tuas mágoas
e ao prazer dos teus prazeres
Irmão
Que as minhas mãos brancas se estendam
para estreitar com amor
as tuas longas mãos negras ...
E o meu suor
se junte ao teu suor,
quando rasgarmos os trilhos
de um mundo melhor!

Vamos!
que outro oceano nos inflama.. .
Ouves?
É a Terra que nos chama ...
É tempo, companheiro!
Caminhemos...


(poetisa angolana falecida a 30 de Janeiro de 1962)

Chulices e beatices

Se, segundo a igreja católica, a prostituição é um pecado, por maioria de razão o é a chulice, já que o chulo explora uma ou mais prostitutas (ou prostitutos) que, na sua maior parte, se dedicam àquela velha profissão por falta de alternativas.

Ora o que tem vindo a acontecer nas três últimas décadas com uma grande parte dos tais 94 colégios (muitos deles liderados por homens de sotaina ou mulheres de hábito) que têm acordos com o estado não passa de um execrável acto de chulice, agravado pelo facto de os chulados contribuintes não terem a menor ideia do que estava a acontecer.

Não percebo, portanto, a coerência de fechar colégios em protesto contra a tentativa de moralização de tão degradante situação e depois ir ao santuário de Fátima bater com a mão no peito, como aconteceu na passada quinta-feira.

Querem que os filhos frequentem escolas privadas? Ninguém os impede, desde que não seja à custa dos nossos impostos. Eu também tive de mandar a minha filha durante 7 anos para um colégio privado por falta de alternativas ajustadas às necessidades de um casal que estava fora de casa entre a 7H00 e as 19H00, mas fi-lo exclusivamente à custa de muitos sacrifícios meus e da minha mulher.

Histórias chocantes sobre a enormidade do assalto que tem sido feito ao bolso dos contribuintes podem ser lidas em muitos lados, mas destaco esta, esta e mais esta.

sábado, janeiro 29, 2011


Viagem espacial

Em cada homem
Há uma viagem para um planeta longínquo…

(Para os pobres é a Terra)

José Gomes Ferreira

Observações morais

O homem que se vende recebe sempre mais do que vale.

Aquele senhor era tão tímido que até tinha vergonha de proceder honestamente.

Os homens são sempre sinceros. O que acontece, porém, é que às vezes trocam de sinceridade.

Queres conhecer o Inácio, coloca-o num palácio.


(Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, mais conhecido pelo falso nome de nobreza  Barão de Itareré,  nasceu em Rio Grande  a 29 de Janeiro de 1895)

quinta-feira, janeiro 27, 2011


Decifra-me

Que importa meu rosto
Se é nas palavras
Que me encontras?

Que importa meu corpo
Se é nos versos
Que me revelo?

Decifra-me num Poema
E encontra-me por aí...

Vera Sousa Silva

(Vera Sousa Silva nasceu em Lisboa, a 27 de Janeiro de 1974)

quarta-feira, janeiro 26, 2011


Largo do relógio

Há uma fonte
                   um repuxo de lendas
nesta praça cheia de horas.
Um cartucho de estrela
                            prestes a explodir.

Pelos bancos afásicos
o diálogo, entre dentes, do silêncio
                            consigo mesmo...

Do outro lado, fachadas de azulejos,
                                               os sobrados.
Sacadas e calçadas.
                            Namorados.
E a palavra amor voando de alto a baixo.

João de Jesus Paes Loureiro

(poeta paraense)

terça-feira, janeiro 25, 2011


Cais

Nunca parti deste cais
e tenho o mundo na mão!
Para mim nunca é demais
responder sim
cinquenta vezes a cada não.  

Por cada barco que me negou
cinquenta partem por mim
e o mar é plano e o céu azul sempre que vou!   

Mundo pequeno para quem ficou...


(poeta cabo-verdiano falecido a 25 de Janeiro de 2005)

segunda-feira, janeiro 24, 2011


Rescaldo


Baptista-Bastos, in Diário de Notícias de hoje


O general

("Depois de fortemente bombardeada, a cidade X foi ocupada pelas nossas tropas.")

O general entrou na cidade
ao som de cornetas e tambores ...

Mas por que não há "vivas"
nem flores?

Onde está a multidão
para o aplaudir, em filas na rua?

E este silêncio
Caiu de alguma cidade da Lua?

Só mortos por toda a parte.

Mortos nas árvores e nas telhas,
nas pedras e nas grades,
nos muros e nos canos ...

Mortos a enfeitarem as varandas
de colchas sangrentas
com franjas de mãos ...

Mortos nas goteiras.
Mortos nas nuvens.
Mortos no Sol.

E prédios cobertos de mortos.
E o céu forrado de pele de mortos.
E o universo todo a desabar cadáveres.

Mortos, mortos, mortos, mortos...

Eh! levantai-vos das sarjetas
e vinde aplaudir o general
que entrou agora mesmo na cidade,
ao som de tambores e de cornetas!

Levantai-vos!

É preciso continuar a fingir vida,
E, para multidão, para dar palmas,
até os mortos servem,
sem o peso das almas.

José Gomes Ferreira

domingo, janeiro 23, 2011


Paraíso Perdido

Que vens aqui fazer, espírito velho
de tudo o que foi perdido
e nunca mais achei?

Então...
ainda eu olhava o mundo
com meus olhos de manhãs azuis,
e nos lábios
havia ainda a ternura dos beijos moços
como a relva dos prados.

Foi mais tarde...
que a vida me entardeceu.

(Tardes enevoadas e frias,
abandonadas,
ermas
tristes como eu... )
Foi mais tarde...
que a tal desgraça se deu.


(poeta coimbrão)

sábado, janeiro 22, 2011

Pensemos



ABECEDÁRIO

Vá, não entres aí
Isso é um advérbio de modo
E embora te pareça um particípio passado
é um adjectivo e às vezes um presente.

Fica parado à saída: está a chover
Dentro dessa frase quem anda ao sol molha-se muito
É um discurso idiomático e por isso
onde está o prenome é o substantivo.

Junta-te ao ponto e vírgula: custa menos
do que escrever com pontinhos nos is
quando as reticencias nos confundem
com exclamações ou verbos no futuro.

Os conjuntivos na oração nunca se entendem:
e por isso, dizem, é que os agás são mudos.

João Garção

(poeta natural de Portalegre)

sexta-feira, janeiro 21, 2011

O intangível



























Daqui

...e o impoluto



O “trapo”

Para tudo serve o "trapo" verde-rubro;
é vê-lo nas varandas, e estendais,
já esfarrapada a glória de teus pais
que, envergonhado, vejo e assim descubro.

Dirá quem nos visita, com razão:
Não há país que eu possa comparar
com a lusa maneira de mostrar
o seu nacionalismo tão ancião...

Para tudo serve o "trapo" esfrangalhado,
rilhado pelo vento como traça,
traçando o amor à Pátria, à nossa raça
nuns cadilhos do xaile...triste fado.

Um dia destes quando for barrenta a rua onde tu moras - podes rir -
usa a " bandeira" para poderes polir
a bota do lacaio, a mais odienta.


(poeta algarvio nascido a 21 de Janeiro de 1959)

quinta-feira, janeiro 20, 2011


POEMA

Tu e eu, ao perdermos
um ao outro,
ambos perdemos.
Eu, porque tu eras o que
eu mais amava,
tu, porque eu era quem
te amava mais.
Mas, entre nós dois,
tu perdes mais do que eu.
Porque eu poderei amar
a outras
como amei a ti.
Mas a ti nunca ninguém
jamais amará
como eu te amei.


(poeta nicaraguense que hoje completa 86 anos)

quarta-feira, janeiro 19, 2011

Perguntai ao muro 

Muro, em que meditas,
ao longo da estrada, por estas quintas,
casas, ermos, entre paixões
de alma dos espectros
presentes e vindouros? E os vivos,
porque se escondem
por trás da tua fronte alta,
quieta, seca, que cobiça os astros,
sem saber que o teu corpo
de xisto corre, avança,
mas não pode soltar-se da Terra
e alcançar o Alto?


(Fiama Hasse Pais Brandão faleceu a 19 de Janeiro de 2007)
Sobre o Caminho

Nada

nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra

Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença

Não colecciones dejectos o teu destino és tu

Despe-te
não há outro caminho


(Eugénio de Andrade nasceu a 19 de Janeiro de 1923)

terça-feira, janeiro 18, 2011

Retrato do Herói

Herói é quem num muro branco inscreve
O fogo da palavra que o liberta:
Sangue do homem novo que diz povo
e morre devagar    de morte certa.

Homem é quem anónimo por leve
lhe ser o nome próprio traz aberta
a alma à fome    fechado o corpo ao breve
instante em que a denúncia fica alerta.

Herói é quem morrendo perfilado
Não é santo    nem mártir    nem soldado
Mas apenas    por último    indefeso.

Homem é quem tombando apavorado
dá o sangue ao futuro e fica ileso
pois lutando apagado morre aceso.


(José Carlos Ary dos Santos faleceu a 18 de Janeiro de 1984)

segunda-feira, janeiro 17, 2011

Portugal

Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
Serás sempre o que sou.

E eu sou a liberdade dum perfil
Desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
E descubro na bruma o meu destino
Que de antemão conheço:

Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às razões do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alta ainda do que no passado.


(Miguel Torga faleceu a 17 de Janeiro de 1995)

domingo, janeiro 16, 2011

Ante o mar

Ávido de sol poente,
me planto na extensão do rude cais
a ver o mar que sonha à minha frente
- tão longo como é longo o nunca mais.

As ondas me propõem ecos de um tempo
em que me desavim nas travessias,
porque nauta já fui, ao léu dos ventos,
premido entre tufões e calmarias.

E assim também me lanço pela vida
num jogo de fortunas alternadas,
buscando a dúbia rota presumida
entre as coisas presentes e passadas.

João Carlos Teixeira Gomes

(poeta baiano)

sábado, janeiro 15, 2011

Teorema

Ódio, te desconstróis na sombra dos dias,
entre o prazer e o largo de um sorriso
que se esboça feito cata-vento
(o triunfo subjaz nos intervalos do sol),
para dissimular a fonte e a fraude do não-ser.

(Um homem à beira do abismo
pode assimilar estorvos, cardiopatias,
resquícios de febre, cicatrizes na alma,
restos de infância agregados ao susto,
ao desjeito do corpo e do cansaço.)

Uma nesga de alegria talvez inibisse
lembranças, chicotes, castigos, escombros
de memória, restos de paisagem,
noites feitas e refeitas no descuido
de uma vida que se fez do espanto.

(Um homem - sem mágoas, sem nódoas -
pode perseverar sobre o menino.
Mas haverá vitória - ou prêmio de consolação -
sobre seu inventário de angústias,
sobre seus anseios de libertação?)


(poeta mineiro)

sexta-feira, janeiro 14, 2011

Interlúnio

Entre o meu olhar o sol
e o sol existir em razão dos meus olhos
cai a noite.

Sobre eu estar sonhando
mas no campo que naturalmente não sonha
chove um pirilampo.

Eu bebo a água do silêncio
no rio que corre entre a minha pergunta
e a tua resposta.

Pequeno barco de papel da minha infância
onde estará ele a esta hora?
Só sei que está bem longe, muito longe.

Num longe que dói mais, em meu ser de ontem,
do que todos os presentes longes
da geografia e da saudade.


(poeta brasileiro falecido a 14 de Janeiro de 1974)

quinta-feira, janeiro 13, 2011

Horário do Fim

morre-se nada
quando chega a vez

é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos

morre-se tudo
quando não é o justo momento

e não é nunca
esse momento

Mia Couto

(para o meu irmão)

quarta-feira, janeiro 12, 2011

Luto

Éramos oito, seis irmãs e dois irmãos. Agora somos apenas sete, pois acabo de receber a triste notícia do falecimento do meu irmão - era o terceiro e eu sou o mais novo - e nem sequer posso assistir ao funeral, pois residia no Brasil.
Casa Destelhada

A casa é um templo humilde, em cujo tecto
há goteiras que choram, noite e dia;
o seu recinto todo está repleto
do verde musgo, que a humanidade cria.

Oculta um monge de sereno aspecto
na solidão do templo, a luz sombria.
Vota-lhe o monge singular afeto,
que lhe aviventa a fonte da poesia.

Nunca lhe entre os umbrais alma profana!
Lugar tão venerando dessa forma,
ofendê-lo-á, por certo, a vista humana!

Pois se procede, nesse ambiente sério,
ao milagre da dor, que se transforma,
no cadinho do amor, em refrigério...


(Bento Prado Júnior faleceu em 12 de Janeiro de 2007)
Do que eu gostava - II

Eu gostava que qualquer português aprendesse, desce a mais tenra idade, a mastigar de boca fechada e a não falar com a boca cheia, de molde a que, quando fosse crescidinho e resolvesse candidatar-se a Presidente da República, se comportasse com a educação que o cargo requer. Repugna-me, portanto, a possibilidade de continuar a ter como Presidente da República onde vivo alguém que não se coíbe de comer em público mostrando as goelas até ao estômago.

terça-feira, janeiro 11, 2011

fulgurações com a água

fulgurações com a água da chuva escorrendo
escondidas vozes num sujo vão de escadas
o céu turvo pelo desejo ácido da noite

estás sentado e ouves o desmoronar dos dias
contra o mar que te revela as tristes histórias
do espelho onde a criança matou a sua imagem

ruas desertas passam rente ao coração
saliva no movimento circular do corpo debaixo
doutro corpo que não conhece o dom de se entregar
ao tempo voluptuoso doutras mãos

levanta a gola do casaco sai para a rua
alarga o passo
deixa fustigarem-te as horas noite dentro
e no sangue sepultarem a insuspeita frescura
daquilo que ainda te falta cantar


(Alberto Raposo Pidwell Tavares nasceu em 11 de Janeiro de 1948

segunda-feira, janeiro 10, 2011

A chuva lenta

Esta água medrosa e triste,
como criança que padece,
antes de tocar a terra,
         desfalece.

Quietos a árvore e o vento,
e no silêncio estupendo,
este fino pranto amargo,
         vertendo!

Todo o céu é um coração
aberto em agro tormento.
Não chove: é um sangrar longo
         e lento.

Dentro das casas, os homens
não sentem esta amargura,
este envio de água triste
         da altura;

este longo e fatigante
descer de água vencida,
por sobre a terra que jaz
         transida.

Em baixando a água inerte,
calada como eu suponho
que sejam os vultos leves
         de um sonho.

Chove... e como chacal lento
a noite espreita na serra.
Que irá surgir na sombra
         da Terra?

Dormireis, quando lá fora
sofrendo, esta água inerte
e letal, irmã da Morte
         se verte?


(poetisa chilena e primeira mulher a ser galardoada com o Nobel da literatura, faleceu em Nova Iorque a 10 de Janeiro de 1957)

domingo, janeiro 09, 2011

Num Monumento à Aspirina

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda a hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia...


(João Cabral de Melo Neto nasceu a 9 de Janeiro de 1920)

sábado, janeiro 08, 2011

Muros

Não somos mais do que a parede.
Que nos separa e confina entre
o céu, o mar, a terra e o ventre,

nossa fome vital, nossa umbilical sede.
pelos olhos ocultamos a nua claridade
da alma sob a congênita privacidade.

De mãos dadas apenas formamos elos
circunstanciais, ninguém está aberto

ao diálogo dentro de nossos castelos.
Somos como o céu em pleno deserto.

Jarbas Júnior

(poeta cearense)

sexta-feira, janeiro 07, 2011

Esse Vidro

Janelas rompem
na casa, uma flor
no vestido, esse vidro
nos olhos. Janelas
sobre o que vês,
apenas o breve
relance de uma face
perdida, apenas
uma frase de jardim
ou uma rosa de julho.
Janelas rompem
nos teus olhos
e a roda do vestido
ilumina esta manhã.
Quando apontas
sou eu que venho
subindo as escadas,
sou eu que sinto
todas as mãos
por esta pele.
Aqui começa a cor
das telhas, o verde
musgo, a orientação
das imagens. Chegas
do lado mais esperado
da cidade e não
te encobre a bruma
definindo a linha
das janelas. A que
hesito entre o gesto
de mostrar a face
que regressa e adivinha.
No vidro dos olhos
a flor do vestido, nos
degraus o súbito
desejo de janelas
tapando a morte.

Helder Moura Pereira

(poeta setubalense que hoje completa 61 anos)

quinta-feira, janeiro 06, 2011

Raposa no galinheiro

A tal comissão de sumidades independentes para controlar a despesa pública, tão desejada pelo PPD, tem um futuro auspicioso.

Segundo notícias hoje divulgadas (e cuja veracidade se pode comprovar pesquisando em BPP), o líder do grupo de trabalho - indicado pelo mesmo PPD - para a criação da tal comissão é António Pinto Barbosa, presidente do Conselho Fiscal do Banco Privado Português durante 10 longos anos, até ao fecho do último relatório, o qual não encontrou quaisquer irregularidades do Rendeiro & Cia, nomeadamente os mil e duzentos milhões de euros que estavam fora do balanço.

Sabendo-se a responsabilidade do Conselho Fiscal no seu conjunto e do respectivo presidente em particular, é um grande tiro no pé para quem quis queimar vivo o governador do Banco de Portugal.
Dilema 

Como duas paralelas em busca infinita,
Perto estamos distantes, 
Longe ficamos tão perto. 
Separa-nos rio límpido mas revolto, 
Rola os seixos, lapida reentrâncias, 
Num dia de muita borrasca, 
noutro só de flores. 
Nunca nos encontramos 
no azul do céu infinito, 
mas sempre juntos estamos, 
encurtando a distância 
de nosso eterno dilema

Janete Fonseca

(poetisa carioca)

quarta-feira, janeiro 05, 2011

Catacumbas

Somos argila, noite
onde os dedos se afundam,
hemorragia de espantoso silêncio
nas galerias do corpo.

O resto,
o resto é pura perda
e transitória insônia.


(Hélio  Pellegrino nasceu em Belo Horizonte a 5 de Janeiro de 1924)
Efeméride

Em 5 de Janeiro de 1914, Henry Ford estabeleceu o salário mínimo diário de 5 dólares para todos os trabalhadores da Ford Motor Company.

Segundo o sítio MeasuringWorth, há 7 formas diferentes de calcular o valor actual dos 5 dólares, oscilando o montante, em 2009, entre $ 83,20 e $ 1.940,00; para a variante Production Worker Compensation, que me parece a mais adequada, o montante é de $ 657,00, isto por dia.

Passados 96 anos, por cá defende-se que € 485,00 por mês leva as empresas à falência e quem recebe esse mísero valor é considerado como integrante da classe média.

terça-feira, janeiro 04, 2011

Luvas de Aço

Desfaço com
luvas de aço
a complexidade
do conhecimento
consciente

Arranho com
punhos da água
a valsa
do recôndito
rebanho
inconsciente

Vago por marés
de plumas e
cortejo jasmins
jesuítas sisudos no
toque de recolher

Jandira Zanchi

(poetisa paranaense)

segunda-feira, janeiro 03, 2011

Meus pensamentos são nómadas

Meus pensamentos são nómadas
 e vagarosos
como a água que vem da montanha
e não sabe nada
do coração dos homens. O meu, por exemplo,
tem a leveza do vento
e corre para casa como se fosse
um cão que precede
os passos do dono.

Casimiro de Brito

domingo, janeiro 02, 2011

Origem dos sonhos esquecidos

Entre a bicicleta e a laranja
vai a distância de uma camisa branca

Entre o pássaro e a bandeira
vai a distância dum relógio solar

Entre a janela e o canto do lobo
vai a distância  dum lago desesperado

Entre mim e a bola de bilhar
vai a distância dum sexo fulgurante

Qualquer pedaço de floresta ou tempestade
pode ser a distância
entre os teus braços fechados em si mesmos
e a noite encontrada para além do grito das panteras

qualquer grito de pantera
pode ser a distância
entre os teus passos
e o caminho em que eles se desfazem lentamente

Qualquer caminho
pode ser a distância
entre tu e eu

Qualquer distância
entre tu e eu
é a única e magnífica existência
do nosso amor que se devora sorrindo


(Mário-Henrique Leiria nasceu em Lisboa a 2 de Janeiro de 1923)

sábado, janeiro 01, 2011

Recomeça…

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…

Miguel Torga