sábado, junho 28, 2008

Nós Nunca Nos Entendemos Após uma boa hora de conversa, entendemo-nos perfeitamente. Amanhã vem ter comigo com as mãos na cabeça, gritando: - Como é possível? O que é que você percebeu? Não me disse isto e isto? Isto e isto, perfeitamente. Mas o problema é que você, meu caro, nunca saberá nem eu lhe poderei nunca dizer como se traduz, em mim, aquilo que você me disse. Não falou turco, não. Eu e você usámos a mesma língua, as mesmas palavras. Mas que culpa temos nós de que as palavras, em si, sejam vazias? Vazias, meu caro. Ao dizê-las a mim, você preenche-as com o seu sentido; e eu, ao recebê-las, inevitavelmente preencho-as com o meu sentido. Pensámos que nos entendíamos; de facto, não nos entendemos. E conto velho também é o facto de o sabermos. Eu não pretendo dizer nada de novo. Apenas volto a perguntar-lhe: - Porque continua, então, a proceder como se não o soubesse? Porque continua a falar-me de si se sabe que para ser para mim como é para você mesmo e para eu ser, para si, como sou para mim, seria preciso que eu, dentro de mim, lhe desse a mesma realidade que você dá a si mesmo, e vice-versa, e isso não é possível? Infelizmente, meu caro, faça o que fizer, dar-me-á sempre uma realidade à sua maneira, mesmo acreditando de boa-fé que é à minha maneira; e será, não digo que não; talvez seja; mas um «à minha maneira» que eu não conheço nem poderei nunca conhecer; que apenas você, que me vê de fora, conhecerá: portanto, um «à minha maneira» para si, não um «à minha maneira para mim». Luigi Pirandello, in "Um, Ninguém e Cem Mil" Retirado daqui

sexta-feira, junho 27, 2008

A língua de Guimarães Rosa Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como o usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros. Se tem de haver uma frase feita, eu preferia que me chamassem de reacionário da língua, pois quero voltar a cada dia à origem da língua, lá onde a palavra ainda está nas entranhas da alma, para poder lhe dar luz segundo a minha imagem. Eu quero tudo: o mineiro, o brasileiro, o português, o latim, talvez até o esquimó e o tártaro. Queria a linguagem que se falava antes de Babel. Amo a língua, realmente a amo como se ama uma pessoa. Isto é importante, pois sem esse amor pessoal, por assim dizer, não funciona. Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. João Guimarães Rosa, em entrevista a Günter Lorenz, 1965

quinta-feira, junho 26, 2008

Os sete peqados da leitura Peqados com "q", porque "c" tem som de "cê", e "q" tem som de "quê". Por isso o certo é o errado. A inveja da leitura. O outro leu mais do que eu? Leu melhor do que eu? Tem mais livros do que eu? O olho gordo da leitura. Quero ser o leitor que o outro é. Quero ler nos idiomas que não leio. Quero imitar e superar quem leu desde cedo, quem lê dia e noite, quem lerá para sempre. A gula da leitura. Comer o livro com capa e tudo. Cheirar, lamber, morder, mastigar, engolir. Livros suculentos, temperados, cozidos e assados. Livro aperitivo, livro prato principal, livro sobremesa. Do livro me servir duas, três vezes. Acordar no meio da noite para assaltar a biblioteca. A preguiça da leitura. Leitura lenta, sonolenta, que não sai do lugar. O mesmo capítulo, o mesmo livro nunca terminado. A mesma página, olhar parado, contemplando o infinito, o nome do autor, o nome da editora, o título, o subtítulo, o índice, a dedicatória, a epígrafe, o sumário, o prefácio, a introdução... A luxúria da leitura. A leitura desejada, imaginada em mil e uma posições. Sugestiva, insinuante, tentadora. Prazer entre as páginas, entre as capas, entre as letras. Beijar o texto e ser por ele abraçado. Dormir com mais de um livro, a todos trair e a todos procurar, gemendo, tremendo, relendo. A soberba da leitura. Vangloriar-me de cada livro lido, de cada autor por mim conhecido, por mim descoberto, por mim, por mim, por mim! Supero em muito cada autor porque sou mais do que um só. Sou Guimarães e Bandeira, sou Goethe e Kafka, sou Homero e Dante. Sou tudo o que leio. Sou mais. Sou melhor. A avareza da leitura. Guardar todos os livros para mim, para mim, para mim! Não empresto meus livros e os livros que alguém me empresta tornam-se meus para sempre. Os livros são todos meus. Deles extraio lucro, juros, vantagens, privilégios, poder. Livros para ter, para acumular. Pilhas de livros. Livros que levarei para o túmulo. A ira da leitura. O verso lido com raiva, gritado, indignado com tudo e com todos. O romance fazendo guerra às nossas idéias. A leitura, pura raiva de viver. Bater, apanhar, brigar, xingar. Leitura dura. De todos me orgulho. De cada teimoso peqado, com "q". Gabriel Perissé* *professor e escritor Publicado no jornal digital Correio da Cidadania

quarta-feira, junho 25, 2008

AUTO-RETRATO Entre a espuma e a navalha sou legenda O espelho neutraliza o ângulo da morte, a barba estrangulou a metafísica e o problema do mal é bem remoto. Aqui sim! Aqui resistirei à mímica, ao dicionário e ao laboratório! - a herança do punhal brilha de novo - o fantasma de Abel não me intimida. Vejo a testa crescer entre espirais de fumo, o olhar que não vacila, da ruga a pré-história e o peito rasgado pela fúria do poema. Aqui sim, aqui iniciarei a espécie nova, aqui derrotarei o homem-harpa e pronto estou para a descoberta do sexo. O pincel dá-me o poder do patriarca, a navalha redua a timidez e o medo, o palavrão rola na boca e salva o mundo. Ruy Guilherme Paranatinga Barata* *poeta brasileiro

terça-feira, junho 24, 2008

A fúria dos eurocratas No dia em que os irlandeses rejeitaram o Tratado de Lisboa num referendo, os Eurocratas em Bruxelas enlouqueceram de fúria. Esta é a última vez, devem eles ter estado a pensar com seus botões; esses irlandeses nunca serão autorizados a votar outra vez. Vamos acabar com esses referendos. Eles são complicados demais para pessoas comuns. A artigo, para mim antológico, de Hans-Jürgen Schlamp, no Spiegel International, de que faz parte a passagem acima reproduzida, mostra o desconcerto que grassa entre os burocratas de Bruxelas e seus apoiantes incondicionais, com os ataques mais soezes à soberania alheira, de que foi exemplo a triste tirada do homem do bolo rei. Depois de terem legislado sobre tudo e mais alguma coisa, desde a curvatura das bananas ao diâmetro das maçãs, das cerejas e das azeitonas, passando pelo achatamento dos tremoços, pela grossura dos pepinos, pela dimensão dos tomates e pela largura das ervilhas tortas, quiseram os políticos falhados que nos desgovernam impor uma manta de retalhos a quase 500 milhões de cidadãos, mas o 1% a quem teve de ser dada a oportunidade de dizer da sua justiça achou que era muita fruta podre junta o facto de quererem, sub-repticiamente, pôr em vigor um reembrulho intragável daquilo que tinha sido recusado por franceses e holandeses. As exéquias estão a decorrer e o funeral segue dentro de momentos. A União é ingovernável pelos tratados de Roma e Nice? Pode ser que assim seja, mas deviam ter pensado nisso antes de duplicarem, apressadamente, o número de Estados Membros, em obediência a impulsos políticos discutíveis e a reboque dos interesses estratégicos do império, sem pensarem no futuro. Como o não fizeram, tenham agora a capacidade equacionar o que se quer para a Europa, de perguntar aos cidadãos se é isso que pretendem e de elaborar um Tratado simples, que trace apenas as grandes linhas do que é ou deve ser comum a todos, deixando as coisas domésticas a cargo dos governos eleitos de cada Estado. E, já agora, façam isso antes da entrada em vigor do (des)acordo ortográfico, para que nós, os portugueses, ainda possamos entender o que vier a ser escrito.

segunda-feira, junho 23, 2008

Réquiem para Dorothy Stang Dias irae Dias de ira virão quando a floresta for somente cinzas. Dias de ira virão quando a vida na floresta for somente cinzas. Assim diz o canto do acauã. Assim diz a voz de Dorothy. Dias de ira virão na terra vã. Ai! Dias de lágrimas por Dorothy Stang, Chico Mendes Pe. Josino, Canuto, Mártires da Terra. Dias de lágrimas por Dorothy Stang, nossa irmã, que por ela já não canta o acauã. Tudo acabou. Tambaramã. Tudo Acabou. Tambaramã. João de Jesus Paes Loureiro* *poeta paraense que hoje celebra o 69º aniversário

domingo, junho 22, 2008

O triunfo da loucura Nos Estados Unidos o público não gosta do que esta a acontecer e 81% pensam que o país está a caminhar na direcção errada. Mas não parece que o público possa fazer grande coisa a esse respeito. Houve um sentimento generalizado de que as eleições de 2006 foram um voto contra a guerra do Iraque, mas os democratas vencedores não desenvolveram qualquer acção significativa para deter a guerra ou mesmo fazer uma paragem - quanto mais revertê-los – nos ataques de Bush contra o governo constitucional, e deixaram o incapaz e desacreditado Decisor com a responsabilidade da supervisão de um fluxo contínuo de fundos adicionais para escalar a guerra do Iraque. Edward S. Herman, escritor, professor emérito de finanças na Warton School, Universidade da Pensilvânia e especialista em economia política e análise dos media, faz um retrato muito acutilante da loucura que grassa no executivo estado-unidense, o qual pode ser lido no original na Z Magazine ou, para quem preferir, numa tradução para castelhano.

sábado, junho 21, 2008

O pavão e o vaqueiro


Lembre-se disto, Sr. Presidente dos Estados Unidos da América: o senhor talvez possa ter pena de coisas que não conseguiu levar a cabo no seu cargo. Mas somente os vencedores, como o senhor e eu, têm alguma vez a possibilidade de modificar as suas nações.

Palavras de Nicholas Sarkozy, a terminar o brinde de despedida ao Sr. W., num jantar informal realizado na sexta feira, 13 de Junho de 2008.

Lá diz o velho ditado português: presunção e água benta cada um toma a que quer!

Caricaturas de John S. Pritchett

sexta-feira, junho 20, 2008

O tempo o homem O tempo faz o homem que faz o tempo Faz tempo O homem que constrói o tempo Que destrói o homem Só a Era faz-se Heras destruindo o tempo o homem a casa velhas paredes azulejos limo A Ampulheta: o testemunho, a arte Os ciclos, os séculos A hera decora o muro O tempo decora o homem que colora o tempo descolora Só o artista faz a Hora Max Martins* *poeta paranaense

quinta-feira, junho 19, 2008

O Espírito Coxo Porque será que um coxo não nos irrita e um espírito coxo nos irrita? Porque um coxo reconhece que andamos direito, enquanto um espírito coxo diz que somos nós que coxeamos; se assim não fosse, teríamos pena e não raiva. Epicteto pergunta com muito mais força: «Porque é que não nos zangamos se se diz que nos dói a cabeça, e nos zangamos se se diz que raciocinamos mal, ou que escolhemos mal?». O que origina isto é o estarmos certos de que não nos dói a cabeça e de que não somos coxos; mas não estamos assim tão seguros de que escolhemos a verdade. De maneira que, não estando certos senão porque o vemos com os nossos olhos, quando outro vê com os seus olhos o contrário, pomo-nos em suspenso e espantamo-nos, e ainda mais quando mil outros se riem da nossa escolha; pois é preciso preferir as nossas luzes às de tantos outros, o que é temerário e difícil. Nunca há esta contradição no que concerne a um coxo. Blaise Pascal, in "Pensamentos" Retirado daqui
Construção O Grande Chico Buarque completa hoje 64 anos de idade. Com votos de que seja “bonita a festa, pá!”, aqui fica um dos seus poemas/canção de que mais gosto: Construção Amou daquela vez como se fosse a última Beijou sua mulher como se fosse a última E cada filho seu como se fosse o único E atravessou a rua com seu passo tímido Subiu a construção como se fosse máquina Ergueu no patamar quatro paredes sólidas Tijolo com tijolo num desenho mágico Seus olhos embotados de cimento e lágrima Sentou pra descansar como se fosse sábado Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago Dançou e gargalhou como se ouvisse música E tropeçou no céu como se fosse um bêbado E flutuou no ar como se fosse um pássaro E se acabou no chão feito um pacote flácido Agonizou no meio do passeio público Morreu na contramão atrapalhando o tráfego Amou daquela vez como se fosse o último Beijou sua mulher como se fosse a única E cada filho seu como se fosse o pródigo E atravessou a rua com seu passo bêbado Subiu a construção como se fosse sólido Ergueu no patamar quatro paredes mágicas Tijolo com tijolo num desenho lógico Seus olhos embotados de cimento e tráfego Sentou pra descansar como se fosse um príncipe Comeu feijão com arroz como se fosse máquina Dançou e gargalhou como se fosse o próximo E tropeçou no céu como se ouvisse música E flutuou no ar como se fosse sábado E se acabou no chão feito um pacote tímido Agonizou no meio do passeio náufrago Morreu na contramão atrapalhando o público Amou daquela vez como se fosse máquina Beijou sua mulher como se fosse lógico Ergueu no patamar quatro paredes flácidas Sentou pra descansar como se fosse um pássaro E flutuou no ar como se fosse um príncipe E se acabou no chão feito um pacote bêbado Morreu na contramão atrapalhando o sábado Escreveu, compôs e cantou Chico Buarque de Hollanda

quarta-feira, junho 18, 2008

Bushismos Acossado por todos os lados no seu próprio país, com um nível de popularidade na casa dos 30% e a sofrer ainda os ecos das bombásticas revelações de Scott McClellan, (seu) antigo Secretário de Imprensa da Casa Branca, o Sr. W. veio fazer uma última viagem oficial à Europa, na qual demonstrou não ter aprendido nada com a história. Desde a visita ao Vaticano à recepção do velho Caimão, dos elogios e auto-elogios do homenzinho dos saltos altos que desgoverna o hexágono que já foi grande até à recepção do encolhido Brown que a custo sobrevive às barbaridades da sua governação, o Sr. W. foi pontilhando a sua visita de político garnisé de ares imperiais com os costumeiros desatinos de linguagem. Nada arrependido da sua guerra contra os infiéis e gracejando sobre “armas de destruição maciça”, acusou um jornalista da Sky News que o questionou sobre Guantanamo e Abu Ghraid de “caluniar a América”, como se o estatuto do país se medisse pela sua incompetência. Dan Froomkin, na sua coluna White House Watch de segunda feira na versão digital do The Washington Post, traça um retrato da viagem digno de ser lido, até porque, entre muitas outras coisas, levanta o véu sobre a realidade de autênticos campos de concentração que o exército estado-unidense mantém no Afeganistão, realidade essa que os nossos media servilmente ignoram.

terça-feira, junho 17, 2008

O senhor Fatuec Chico Vilela, criança de Itajubá, conhecia praticamente toda a população da cidade. Só não conhecia o que julgava ser a criatura mais inteligente, um tal de Fatuec. Admirava platonicamente o senhor Fatuec, tão citado pelo pai. Toda vez que o seu José ia fazer uma afirmação incontestável, citava o Fatuec. Pelo nome, o Chico achava que devia ser alguém da colônia árabe. Sem perguntar para ninguém, vasculhou os nomes dos “turcos”, e não achou nenhum Fatuec. Cresceu sem conhecer esse gênio. Só depois de adulto é que descobriu, decepcionado, que não existia nenhum Fatuec. O negócio é que seu pai, quando ia concluir uma conversa, começava assim: “O fato é que...”. Segundo consta, quando Chico foi tirar a coisa a limpo, seu pai teria encerrado o papo assim: - O fato é que não existe nenhum Fatuec. Mouzar Benedito Publicado no jornal digital VIAPOLÍTICA

segunda-feira, junho 16, 2008

Crepúsculo É quando um espelho, no quarto, se enfastia; quando a noite se destaca da cortina; quando a carne tem o travo da saliva, e a saliva sabe a carne dissolvida; quando a força de vontade ressuscita; quando o pé sobre o sapato se equilibra... e quando às sete da tarde morre o dia - que dentro de nossas almas se ilumina, com luz lívida, a palavra despedida. David Mourão-Ferreira

domingo, junho 15, 2008

Eu confesso Confesso e não nego que sou carioca. Da gema. Do bairro do Estácio. E também do subúrbio carioca. Carioca do Rio ex-capital. Da ex-Guanabara. Carioca apaulistado agora. Carioca sem sotaque agora. Carioca descariocado agora. Confesso que sou professor. Professor que gosta de ensinar mais do que explicar. Sugerir mais do que proibir. Elogiar a leitura mais do que a obrigatória tortura. Professor no falar e no agir, no sorrir e no pensar, no calar e no sentir. Confesso que sou leitor compulsivo, fanático, inveterado. Confesso que gasto dinheiro demais com os livros. Que sinto prazer em entrar num sebo, numa livraria, numa biblioteca. Que os livros são o meu tormento e o meu céu. Confesso e não nego que sou escritor. Escritor escravo do escrever. Escritor que passa o dia escrevendo mentalmente o que há de escrever no papel ou na tela. Escritor que elogia a leitura, o leitor criativo, a arte da palavra. Confesso que sou católico. Católico por um triz. Que dorme ao ouvir sermões cansativos. Católico apostólico romântico. Católico sem eira nem beira, sem carteirinha, sem ligação oficial com movimentos e outros elementos. Confesso que gosto de falar. Na palestra, no debate, na mesa-redonda, no palco, na padaria, no barbeiro. E gosto de calar-me, recluir-me, fugir, enterrar-me vivo no meio dos livros. Confesso que não gosto de me confessar, de revelar quem sou, o que faço, o que penso, em que acredito. Confesso que gosto de me expor, contar o segredo, confidenciar, abrir o coração. Confesso que não gosto de futebol na terra do futebol. Que não gosto de carnaval na terra do carnaval. Que não gosto de praia na terra das muitas praias. Confesso e peço perdão. Confesso que gosto do Brasil, com todas as suas... As nossas contradições e limitações, sua carga tributária e suas festas, seus políticos e seus apresentadores de TV, seu calor e seu frio, sua seca e sua enchente, suas belezas e misérias. Confesso e não nego que muito pouco do Brasil conheço, mas guardo com carinho um caminhar nas calçadas de Manaus, uma partida de xadrez nas calçadas de Florianópolis, rápidos passeios de carro nas ruas de Porto Alegre, Campo Grande, Natal, Belo Horizonte, Recife, Curitiba, Campinas, Ribeirão Preto, Bauru, São Luís, Salvador, Palmas... Confesso. Não nego. Confesso dizer a verdade. E um pouco mais do que isso. Gabriel Perissé* *professor e escritor Publicado no jornal digital Correio da Cidadania

sábado, junho 14, 2008

Feitiço Sinto-me como um Mago de uma magia menor. Coloco as palavras desordenadamente em ordem. Versos tolos, fúteis e inúteis. Não quero enfeitiçar ninguém. Só eu mesmo e o papel. Guto Graça* *poeta carioca

sexta-feira, junho 13, 2008

Nascido para Mandar Os homens dividem-se, na vida prática, em três categorias - os que nasceram para mandar, os que nasceram para obedecer, e os que não nasceram nem para uma coisa nem para outra. Estes últimos julgam sempre que nasceram para mandar; julgam-no mesmo mais frequentemente que os que efectivamente nasceram para o mando. O característico principal do homem que nasceu para mandar é que sabe mandar em si mesmo. O característico distintivo do homem que nasceu para obedecer é que sabe mandar só nos outros, sabendo obedecer também. O homem que não nasceu nem para uma coisa nem para outra distingue-se por saber mandar nos outros mas não saber obedecer. O homem que nasceu para mandar é o homem que impõe deveres a si mesmo. O homem que nasceu para obedecer é incapaz de se impor deveres, mas é capaz de executar os deveres que lhe são impostos (seja por superiores, seja por fórmulas sociais), e de transmitir aos outros a sua obediência; manda, não porque mande, mas porque é um transmissor de obediência. O homem que não nasceu nem para mandar nem para obedecer sabe só mandar, mas como nem manda por índole nem por transmissão de obediência, só é obedecido por qualquer circunstância externa - o cargo que exerce, a posição social que ocupa, a fortuna que tem... Fernando Pessoa, in Teoria e Prática do Comércio Retirado daqui

quinta-feira, junho 12, 2008

Persigo... Persigo sem descanso um horizonte estranho alheio a tudo o que já fui ou sou Sei que os meus passos seguem um desenho que não alcanço mas que algo em mim já viu ou já sonhou Desconheço a razão de cada avanço Só sei que tenho de ir por onde vou… Ana Vidal* *poetisa lisboeta

quarta-feira, junho 11, 2008

Haja (algum) decoro! Como habitualmente sucede nesta época do ano, utilizo um ou dois dias de férias e vou passar o aniversário da companheira fora de portas; nos últimos anos temos juntado o agradável ao útil, “indo às cerejas” ali para os lados do Fundão. Tendo estado alguns dias sem ligar aos telejornais, com a excepção de umas espreitadelas furtivas ao espectáculo degradante dos bloqueios de estradas por parte de camionistas europeus a mando dos respectivos patrões, sofri um baque quando ontem cheguei a casa a tempo do jornal das 13H00 e ouvi que os ministros do desemprego e da insegurança social dos 27 países que desgovernam esta Europa que alguns ainda pensam que é um oásis tinham aprovado uma estranha lei que permite aumentar o período de trabalho semanal de 48 para 65 horas. Alegam uns que é um passo em frente para os trabalhadores (mas não dizem que são mais de vinte para trás) e outros dizem que o novo período só é aplicável com o acordo dos trabalhadores (mas não dizem que nesta “guerra” de bombardeiros contra fisgas estas últimas estão sempre condenadas a perder). Se é (fosse) assim, quais as razões para Espanha, Bélgica, Chipre, Grécia e Hungria terem apresentado uma declaração em que asseguram não poder aceitar o texto pelo “retrocesso social” que pressupõe? Por este andar, regredimos à época da revolução industrial não tarda nada. Será que os irlandeses vão dar uma bem merecida tampa aos eurocratas no referendo de amanhã?

terça-feira, junho 10, 2008

Alegres campos, verdes arvoredos Alegres campos, verdes arvoredos, Claras e frescas águas de cristal, Que em vós os debuxais ao natural, Discorrendo da altura dos rochedos; Silvestres montes, ásperos penedos, Compostos em concerto desigual, Sabei que, sem licença de meu mal, Já não podeis fazer meus olhos ledos. E, pois me já não vedes como vistes, Não me alegrem verduras deleitosas, Nem águas que correndo alegres vêm. Semearei em vós lembranças tristes, Regando-vos com lágrimas saudosas, E nascerão saudades de meu bem. Luís Vaz de Camões

segunda-feira, junho 09, 2008

O Verdadeiro Gesto de Amor Aquilo que de verdadeiramente significativo podemos dar a alguém é o que nunca demos a outra pessoa, porque nasceu e se inventou por obra do afecto. O gesto mais amoroso deixa de o ser se, mesmo bem sentido, representa a repetição de incontáveis gestos anteriores numa situação semelhante. O amor é a invenção de tudo, uma originalidade inesgotável. Fundamentalmente, uma inocência. Fernando Namora, in “Jornal sem Data” Dedicado à minha companheira, de quem hoje celebramos o 60º aniversário.

domingo, junho 08, 2008

Um só Zé Ana foi ser chefe de serviços gerais num centro social de São Paulo e queria conhecer melhor todos os funcionários. Antes de conversar com cada um, para dizer o que pretendia fazer e o que esperava dos subordinados, pediu as fichas dos trabalhadores de sua área, no Departamento de Pessoal. Queria saber tudo sobre eles, desde as mulheres que serviam café até o chefe da segurança. Quando pegou as fichas dos dois porteiros, achou muito esquisito: um chamava-se José de Souza e o outro José de Souza Irmão. Olhou de novo para ver se não estava tendo alguma alucinação. E não estava. Ambos nasceram na mesma cidade baiana, o pai era o mesmo, a mãe também... Ficou muito curiosa, chamou os dois à sua sala. Primeiro foi o José de Souza, enquanto o José de Souza Irmão ficava cuidando da portaria, que não podia ficar desguardada. Logo que ele entrou, ela foi falando: - Ô, rapaz, mas o seu pai não tinha imaginação, hem? Tem tanto nome no mundo, um de vocês podia se chamar João, Antônio, Joaquim, Severino, Jorge ou qualquer outra coisa, mas ele pôs nos dois filhos o nome de Zé... - Não, dona, Zé sou só eu. O meu irmão é Zeca. Mouzar Benedito (in “Memória vagabunda”, editora Publisher Brasil) Retirado daqui

sábado, junho 07, 2008

Aço e Flor Quem nunca viu que a flor, a faca e a fera tanto fez como tanto faz, e a forte flor que a faca faz na fraca carne, um pouco menos, um pouco mais, quem nunca viu a ternura que vai no fio da lâmina samurai, esse, nunca vai ser capaz. Paulo Leminski* *poeta paranaense

sexta-feira, junho 06, 2008

Ideias arejadas O Cardeal Carlo Maria Martini, antigo Arcebispo da diocese de Milão e figura papável no conclave de 2005 (há quem diga que até teve a maioria dos votos), actualmente retirado do seu múnus pastoral e a residir em Jerusalém, onde se dedica ao estudo e à escrita, acaba de publicar na Alemanha o livro “Colóquios Nocturnos de Jerusalém”, coligido pelo seu confrade jesuíta George Sporschill. Enquanto não chega cá - se é que chegará alguma vez, vale a pena tomar conhecimento de algumas das ideias arejadas que propõe que a Igreja Católica adopte, através de um artigo do jornalista Juan G. Bedoya publicado em vários órgãos de informação e que foi afixado, em tradução para português do Brasil, no sítio do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (Brasíla).

quinta-feira, junho 05, 2008

O intelectual raivoso Ele é agressivo, prepotente, escandaloso. Sem qualquer pudor, anuncia absurdos inomináveis, sempre conservadores, é claro. Faz apologia da desigualdade, da desumanidade, da riqueza escandalosa, do ódio aos pobres e da opressão dos fracos. Defende os crimes ambientais, a inferioridade da mulher, a superioridade do capitalismo, a violência imperialista. Ataca a educação sexual, o compromisso social e, sobretudo, tudo que é público. Nada lhe é mais bonito que o privado. Vale a pena ler na íntegra este interessante artigo do Historiador e Professor Universitário brasileiro Mário Maestri, publicado no jornal digital Via Política.

quarta-feira, junho 04, 2008

Pensando A vida passa, entre domingos aniversários e datas. Arranco melancolicamente as folhas do pequeno calendário. Penso na velhice, na solidão. O tempo não tem pena e cada um segue seu rumo. Exercito metodicamente músculos e cérebro. Temo a paralisia, a inanição. O que pára primeiro? As mãos que escrevem, a mente que cria? Preciso fazer poesia! Crio uma fórmula secreta: Quando morrer, serei fantasma, ficarei vagando nas bibliotecas misturado aos poemas. Andando pelos parques sentindo as flores, as cores. Serei espírito poeta. Ana Maria de Souza Mello* *poetisa brasileira

terça-feira, junho 03, 2008

O Obstáculo Invisível As forças do homem não são concebidas como uma orquestra. No homem é necessário que todos os instrumentos toquem constantemente com toda a sua força. Não foram destinados a ouvidos humanos e não dispõem da duração de uma noite de concerto durante a qual cada instrumento pode esperar para se fazer valer. Por vezes parece que as coisas serão assim: tu tens tal tarefa a cumprir, dispões de tantas forças quantas são necessárias para a levar a bom termo (nem muito, nem muito pouco, sem dúvida te é necessário concentrares-te, mas não tens que estar ansioso); com bastante tempo teu e boa vontade para o trabalho, onde está o obstáculo ao êxito da imensa tarefa? Não percas tempo a procurá-lo, talvez não exista. Franz Kafka, in "Meditações" Retirado daqui

segunda-feira, junho 02, 2008

Exageros


Num dia de Maio de 1897 Mark Twain terá sido visitado, na sua casa de Londres, pelo afogueado correspondente do The New York Jornal, o qual tinha recebido da sede do jornal o seguinte pedido: "Se Mark Twain está a morrer na miséria, envia um artigo de 500 palavras; se Mark Twain morreu na miséria, envia um artigo de 1.000 palavras".

O grande escritor, que estava na miséria mas de boa saúde e não tinha falta de senso de humor, rabiscou a nota que se vê na imagem e que foi publicada pelo The New York Jornal do dia 2 de Junho: “James Ross Clemens, um primo meu, esteve gravemente doente há duas ou três semanas, em Londres, mas agora está bem. O relato da minha doença surgiu a partir da doença dele, mas a notícia da minha morte foi um exagero”.

domingo, junho 01, 2008

Decadências e tristezas Decadente país este que paga centenas de milhares a um “farrapo humano” de 24 anos de idade, ela que carregava uma imagem de “soul” e “R&B” brancos de primeira água, para vir apresentar tão triste espectáculo de degradação, sem “alma”, sem ritmo e sem “blues”. Decadente país este em que mais de meia centena de milhar de adolescentes (“pitinhas”, na gíria da idade) grita histericamente, aclamando como heroína uma jovem prematuramente envelhecida pelo abuso de álcool e das drogas, com cara de cavalo, pernas de espantalho e corpo de faminta. Triste país este em que um punhado de trabalhadores liderados por patrões sem escrúpulos agride outros trabalhadores e destrói os seus bens, perante a passividade espantosa das forças “de segurança” presentes. Triste país este em que, no partido do governo, a única alternativa ao líder é o próprio líder e em que, no maior partido da oposição, somos forçados a reconhecer que o mal menor foi a eleição duma sexagenária com cara de pau, sem chama nem ideias de futuro. Triste país este em que, à esquerda do partido da direita no poder, pontificam um sacristão armado em teólogo das virtudes e um dançarino popular sem qualquer capacidade para rebobinar a cassete. Triste país este em que, por limite de idade, estou condenado a viver o resto dos meus dias, num modelo de sociedade com que não concordo, mas cujas regras e desgoverno sou obrigado a aceitar e financiar.