quarta-feira, outubro 31, 2007

Onde estão os mártires?


O Vaticano decidiu, mais uma vez, encenar uma palhaçada em Roma, ao distribuir, a granel, o certificado de beatitude a 498 frades e freiras, alegados “mártires” da Guerra Civil Espanhola.

Será bom que se saiba que os tais “mártires” foram assassinados porque se puseram ao lado do futuro ditador do país vizinho, Francisco Franco, o Caudillho, contra o governo republicano, legal porque democraticamente eleito.

Como será conveniente não esquecer que nessa guerra foram assasinadas mais de 500.000 pessoas, a maior parte civis e do lado republicano e da legalidade, entre as quais muitas dezenas de milhares de fervorosos católicos. Mas a esses, o Opus Dei, A Conferência Episcopal Espanhola, o Vaticano e o Partido Popular não reconhecem sequer o estatuto de pessoas, quanto mais o de mártires, esses sim, que o foram verdadeiramente por uma causa legítima.

Felizmente o arraial não correu da melhor maneira, dado que os mais entusiastas prometiam uma assistência de um milhão de pessoas e não terão estado na Praça mais de 30.000, contando com muitos tradicionais turistas dos domingos.

Mas, muito melhor do que eu, poderá falar alguém que partilha o mesmo credo e que foi testemunha ocular do que se passou na Guerra Civil. Recomendo, por isso, a leitura da crónica do El Pais com o título que encima esta posta, da autoria do teólogo católico secular espanhol E. Miret Magdalena.

Para o caso de haver dúvidas sobre alguns vocábulos castelhanos, poderão encontrar aqui um Dicionário Multi-Línguas, entra as quais Espanhol-Português.

Quadro: Guernica, de Pablo Picasso

terça-feira, outubro 30, 2007

Cenas da vida (ir)real

De segunda a sexta, chova ou faça sol, ao passar de carro à porta da Procuradoria Geral da República, na Rua da Escola Politécnica (a 50 metros do Rato), por volta das 7H00 da manhã, lá está um casal de seniores a montar o seu painel de protesto.

Já tinha lá passado várias vezes a pé, apercebendo-me de que reclamavam justiça para alguma malfeitoria de que tinham sido vítimas. Até que um dia destes indaguei sobre os motivos da sua presença diária ali, há mais de 11 anos (mais de 4.000 dias). E o que ouvi é de estarrecer.

Segundo o Sr. Florindo - assim se chama o cavalheiro - que conta 72 anos de idade, ele veio para Lisboa, fugido à pobreza de Nelas, ainda antes dos dez anos de idade, completando a quarta classe e arranjando logo emprego numa fábrica de vidros ali ao Campo de Santana. Mandou, então, vir ter com ele os seus dois irmãos, ocupando-se do sustento e educação dos dois até que eles conseguissem um lugar ao sol: um é juiz desembargador e outro notário.

Casou com Flora - a senhora que o acompanha no protesto - em Novembro de 1964 e era proprietário de uma pequena fábrica de espelhos em Santiago do Cacém, donde se reformou em 1995.

Um dia, tentaram vender uma das suas propriedades e verificaram, com espanto, que a mesma se encontrava registada em nome de outra pessoa. O que se teria passado?

Diz o Sr. Florindo que tudo começou em 1964, alguns dias depois do casamento, em que ele terá sido dado como morto e a esposa como casada com outro homem, após o que viria, também, a ser dada como morta. Estão ambos “sepultados” no cemitério de Aljustrel.

Tratar-se-ia de uma maquinação diabólica dos seus dois irmãos - um juiz desembargador e um notário, registe-se - para lhe sacarem os documentos, os bens e o dinheiro. Durante bastante tempo havia na parede um enorme cartaz, onde se acusavam os dois da enorme falcatrua. Recordo perfeitamente que tinham o apelido Beja, o mesmo do Sr. Florindo, mas omito os nomes próprios.

E assim, desde o dia 18 de Março de 1996, a casal “morto” e “sepultado” em Aljustrel, protesta ali, junto à Procuradoria, tentando ver apurada a verdade. Já por lá passaram Cunha Rodrigues, Souto de Moura e, agora, Pinto Monteiro, que devem achar “divertida” a atitude do casal. Já foram dados como “maluquinhos” por um psiquiatra do Hospital Miguel Bombarda e medicados com uma dose de drogas - cujo nome exibem e não compraram – que me pareceu suficiente para pôr verdadeiramente maluco um touro de lide. O Sr. Florindo diz que já foi preso mais de 30 vezes e que tentaram interná-los num hospício à força. Recorreram a tudo e mais alguma coisa, desde o Provedor de Justiça ao Presidente da República, do Primeiro Ministro ao Grupo Parlamentar de CDS-PP, da Ordem dos Médicos ao Conselho Superior de Magistratura, da Procuradoria ao Supremo Tribunal de Justiça e ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

Mortos não estão, que eu falei com eles e ainda na passada sexta feira lá surgiram na televisão quando as câmaras filmavam a provedora da Casa Pia a sair da Procuradoria. Maluquinhos também não parecem, mas nunca se sabe. Mas não é difícil apurar a verdade. As suas impressões digitais hão-de constar em qualquer arquivo. Se tinham prédios que lhes foram “roubados”, tem de haver notícia nos registos prediais. Se tiveram problemas com “roubo” de dinheiros e com as pensões de reforma, deve haver informação nos bancos. Com os actuais meios de investigação, é possível saber a quem pertencem as ossadas do túmulo de Aljustrel. Então porque não se apura a verdade? Estão à espera de que o país seja alvo de chacota na arena internacional, se o Tribunal Europeu intervier?

Senhor Procurador Geral da República: deixe-se de tretas hilariantes sobre ruídos no seu telemóvel, pois qualquer leigo sabe que é possível efectuar escutas sem provocar ruídos e cumpra as suas obrigações, seja na questão das escutas ilegais sejam “ressuscitando” legalmente dois cidadãos que todos os dias estão bem vivos à sua porta. E se tiverem razão, que se puna exemplarmente os dois responsáveis, que ocupam cargos destacados na Administração Pública; se, pelo contrário, se tratar mesmo de uma patologia psíquica (uma tal de “folie à deux”, que lhes “diagnosticaram”), então que se propicie ao casal um tratamento adequado.

Assim, é que não!

(fotografia de Jorge Godinho/Correio da Manhã)

segunda-feira, outubro 29, 2007

CAIXA CORAL Adiei o mundo que no escuro preparava o bote – coral na caixa preta do destino Sem descobrir o código – cobertor de ruído sobre o túnel – acordei diante do trem em direção ao corpo preso na ferrugem Nenhum desvio salvou-me do som despedaçado do violino Adeus dos outros, feito pão mofado na mesa posta de um cortiço Acolheu-me a musa no lado oposto à vida com o olhar mortiço para quem ficou encarando a minha sorte Ela escolhe e fisga o coração de quem não morre Para o resto – o inconformismo em mar de inveja repulsivo – ela tem o olhar que petrifica Fósseis na mira da Medusa fogem do Tempo, rosto final do Medo, que assoma como surda carruagem Enquanto somem, a seiva interminável cobre o sonho que guardei no bolso Carne oferecida à eternidade Nei Duclós* *poeta brasileiro que celebra hoje o seu 59º aniversário

domingo, outubro 28, 2007

O DNA do racismo James Watson, o co-descobridor da molécula de DNA e ganhador do Nobel de 1953, pisou na bola. Em Londres para a divulgação de seu novo livro "Avoid Boring People" (evite pessoas chatas ou evite chatear as pessoas), ele deu declarações escandalosamente racistas. Acho que nem o Borat ou qualquer outro comediante querendo troçar do politicamente correto teria ido tão longe. Em entrevista ao jornal britânico "The Sunday Times", o laureado disse na semana passada que africanos são menos inteligentes do que ocidentais e que, por isso, era pessimista em relação ao futuro da África. "Todas as nossas políticas sociais são baseadas no fato de que a inteligência deles [dos negros] é igual à nossa, apesar de todos os testes dizerem que não", afirmou. Vale a pena ler na íntegra esta crónica de Hélio Schwartsman , publicada na Follha Online (versão digital da Folha de São Paulo) na passada quinta feira, sobretudo agora, quando o politicamente correcto obrigou o velho Professor a renunciar a todas a suas funções no "Cold Spring Harbor Laboratory", para onde entrou há 40 anos e que tranformou de laborátório desconhecido num dos centros de pesquisa modelo de todo o mundo .

sábado, outubro 27, 2007

Do tempo... Sou do tempo, seu moço, que os campos e espaços eram livres. Podíamos por eles caminhar sem receio de abordagens: “por invasão de propriedade” “suspeição de má intenção” ou, “ter que pagar pedágio”. Do tempo de liberdade verdadeira, sem adjetivações. Do tempo de subir e descer livremente ladeiras, falando aos barrancos piçarrentos. De banhar nos córregos, pescar piabas, e do dormir cedo. Do tempo que o próprio tempo consumiu... Adriles Ulhoa Filho* *poeta mineiro

sexta-feira, outubro 26, 2007

A queixa Quando eu era menino - oh mãe - não te deixava; Então nunca sem mim conseguiste sair: Tivestes de ir à rua, e embirrando eu chorava; e ralhavas: "eu volto" e eu: leva-me! quero ir! Pois se eras o meu sol.. Tua ausência enoitava, e a noite era terror... Como à noite sorrir? Mas ante a minha teimosia infantil justa e brava fugia-te, sem mim, o ânimo de partir. Porque naquela vez - na última somente foste só - sem me ver, num protesto veemente chorar como em criança ou com maior pesar? - Mãe! é longe aonde vais? Oh leva-me contigo... Leva... Quero ir lá longe... ir também ao Jazigo... E lá foste a sorrir sem querer me levar! Murilo Araújo* do livro "Carrilhões" (1917) *poeta brasileiro
Não Apaguem a Memória


Pediram-me para divulgar esta mensagem:

O núcleo do Porto do movimento "Não Apaguem a Memória!", movimento cívico que visa a preservação da memória histórica das lutas de resistência à ditadura, promove os Encontros em Lugares de Memória da Resistência, esperando que as histórias contadas pelos protagonistas das acções de resistência anti-fascista venham enriquecer a nossa memória colectiva do fascismo.

Contando com os testemunhos dos que participaram nas lutas informais e nas actividades promovidas por associações de todo o tipo, como colectividades culturais, entidades cooperativas, organizações de jovens trabalhadores e associações estudantis, o movimento "Não Apaguem a Memória!" convida todos quantos frequentaram os lugares simbólicos dessas acções.

Tendo-se iniciado este ciclo de tertúlias no café "Piolho", apelamos agora à sua participação activa, no próximo sábado, 27 de Outubro, às 15.30h no café CEUTA , local onde se realiza o segundo encontro.


Se resido no Porto ou redondezas, apareça. Acha que a memória está viva? Então veja e oiça este vídeo.

quinta-feira, outubro 25, 2007

Para ler e meditar "Por que ri a hiena? A GLÓRIA E A EUFORIA são de rigor. O sorriso aberto e satisfeito. A sensação de vitória vê-se na linguagem do corpo. Sócrates venceu. Portugal venceu. A Europa venceu. Todos e cada país venceram. Como previsto, Barroso, Merkel e Sarkozy venceram. Prodi também. E os gémeos polacos igualmente. Percebo por que tanta gente ri de alegria e prazer. Percebo, mas não compreendo. O monstro acabado de criar não dá motivos para rir. Nem sequer sorrir. Mas o Dr. Frankenstein também sorria. Depois de ter prometido a ultrapassagem da América nos domínios do crescimento, da ciência, da inovação e do emprego, a “Estratégia de Lisboa” foi um monumental fiasco. Segue-se-lhe o “Tratado de Lisboa”, adornado de ainda mais euforia e de ainda mais ilusões vencedoras. Este desastre de Lisboa não ficará conhecido por aqui se ter decretado uma Europa federal, comandada por franceses e alemães, distante dos povos, alheada dos problemas sociais e políticos do continente e contrária à diversidade secular dos seus povos. Não será isso, pela simples razão de que essa Europa federal nunca terá existência. O desastre de Lisboa ficará na história porque aqui se assinou um tratado que consagrou a não democracia como regime europeu e consolidou a burocracia e a Nomenclatura europeias. Ao fazê-lo, confirmou a caminhada futura para uma ilusão senil, irrealizável e não democrática. Ao tentar construir uma impossibilidade, prepararam a destruição do possível. Ao querer uma União federal, eliminam a hipótese de uma verdadeira Comunidade. Os povos estão distantes da União e afastados da política. As instituições são fechadas e inacessíveis. A Constituição é ilegível e absurda. Os políticos são execrados pelos cidadãos. Os eleitores perderam a confiança nos seus representantes. Os europeus não conhecem, nem querem conhecer o Parlamento Europeu, uma das maiores inutilidades de que o engenho humano foi capaz. As instituições democráticas nacionais estão a definhar e alguns direitos fundamentais são postos em causa na Inglaterra, em França, na Polónia ou em Portugal. Ao mesmo tempo, as instituições europeias ganham poderes e competências, mas sem povo nem reconhecimento, sem tropas nem magistrados, sem aceitação pública nem experiência. A democracia europeia é uma ficção oca, sem substância, sem sociedade e sem vida. Este hiato, agora reforçado, entre a estratosfera europeia e as realidades nacionais e sociais é perigoso a todos os títulos. A Nomenclatura europeia criou um paraíso artificial e chamou-lhe União. Sei que há muita gente que persiste em afirmar que tantos dirigentes, tanta inteligência, tanta capacidade diplomática não se podem enganar. Nem nos podem enganar a todos. Mas também sei que a melhor inteligência da Europa, as mais fantásticas capacidades científicas e tecnológicas e a mais ilimitada esperança na paz e no progresso fizeram, em 1914, uma das mais absurdas guerras que a humanidade conheceu. E sei que os alemães, vanguarda cultural, científica e industrial do mundo inteiro, tinham a certeza de que fundavam um império para mil anos e uma raça para a eternidade, e vejam o que fizeram. E também sei que os russos, com recursos ilimitados, com formidáveis elites políticas e intelectuais, quiseram, em tempos, criar uma sociedade sem classes, uma democracia total e um desenvolvimento económico e científico incomparável, e vejam o que fizeram. Como sei que os americanos, que concentram nas suas mãos mais poder, mais capacidades e mais inteligência do que qualquer outra nação na história, quiseram fundar a democracia no Vietname, há quarenta anos, agora no Iraque, e vejam o que fizeram. No Iraque, muitos erraram. Muitos se enganaram. Muitos enganaram. E muitos mentiram. E eram os mais inteligentes, os mais poderosos, os mais sabedores e os que de mais informação dispunham. Os dispositivos militares e políticos americano e britânico concentram inteligência e capacidades sem rival nem precedentes. Mesmo assim, erraram. A questão não é, obviamente, de inteligência ou de informação. É de política e de interesses. Não é muito diferente do que se passa com os dirigentes europeus. Eles não estão enganados. Enganam e mentem porque acreditam no que dizem. A Alemanha quer comprar. A França quer mandar. Juntas, pagam o que for preciso. Pagam para liquidar a agricultura e as pescas de outros. Pagam para investir nos outros países, para lhes comprar empresas e lhes fechar outras. Pagam para poder exportar. Pagam para submeter o continente às suas opções, sobretudo energéticas. Pagam para construir uma fortaleza diante das veleidades russas. Pagam para resistir ou domesticar as multinacionais. Pagam finalmente para evitar os referendos, para evitar que os povos se exprimam sobre a Europa que eles querem fazer. Pagam para construir, nas nuvens, uma ficção, a que já chamam a mais importante realização política do século XX. Tal como o Império britânico. Tal como o Terceiro Reich. Tal como o comunismo soviético. Os europeus de hoje, isto é, os seus dirigentes políticos, com medo dos seus povos e dos seus eleitores, com receio dos americanos, ameaçados pelas multinacionais, apavorados com o terrorismo, aterrorizados pela imigração, impotentes perante o comércio asiático, têm também ao seu serviço uma capacidade intelectual, política e diplomática sem precedentes. Querem uma Europa unida ou os Estados Unidos da Europa. Vejam o que fizeram, uma Nomenclatura. Uma União que é a mais poderosa entidade na Europa actual e é também a menos democrática. Tal como a euforia foi grande, também a crise agora vencida era enorme. Não havia crise na Europa, nem na maior parte dos seus países. Não havia crises sociais e económicas graves. Não havia democracia ou estabilidade em risco evidente. Não havia diferendos militares. A paz não estava ameaçada. Havia crise, isso sim, entre eles, entre os dirigentes políticos, entre os Estados, entre as Nomenclaturas. Fizeram a crise. Resolveram-na. Entre eles. Sem os europeus. Talvez mesmo contra os europeus." Artigo de António Barreto, publicado no diário Público em 21 de Outubro de 2007. Surripiado daqui.

quarta-feira, outubro 24, 2007

A Base da Civilização A lei do universo baseia-se sobre o concurso destes dois grandes agentes: a luta pela vida e a selecção natural. A luta pela vida é o estado permanente de todos os seres, para os quais a criação é uma eterna batalha. A sorte do conflito decide-a a selecção natural. Como? Fixando na espécie, pela adaptação ao meio, os seres mais fortes, e expulsando os seres inferiores. Por isso o professor Haeckel afirma: «A teoria de Darwin estabelece que nas sociedades humanas, como nas sociedades animais, nem os direitos, nem os deveres, nem os bens, nem os gostos dos membros associados podem ser iguais.» Ora o que é que estabelece o Direito? O Direito estabelece precisamente o contrário disso: a igualdade dos deveres recíprocos para a mais equitativa distribuição dos bens. O Direito portanto não só não é uma emanação da lei natural, mas é uma reacção contra essa lei. A natureza é o triunfo brutal decretado ao forte. A sociedade é a protecção consciente assegurada ao fraco. A criação funda a luta pela vida. A sociedade organiza o auxílio pela existência. Uma civilização é tanto mais adiantada quanto mais ela submete ao seu domínio as fatalidades naturais. E é assim que o homem, de conquista em conquista, chegará um dia, como diz Büchner, ao paraíso futuro, ao paraíso terreal, de onde não veio mas para onde vai, e que não é um dom divino primitivo mas o fruto derradeiro do trabalho humano. Ramalho Ortigão, in 'As Farpas (1883)' Retirado do Citador

terça-feira, outubro 23, 2007

Mais nacionalismo xenófobo O frenesi da cimeira europeia e da aprovação do chamado Tratado Reformador bem como das eleições na Polónia, onde parece que mudaram as moscas – ao que consta mais europeístas, mais neo-liberais e menos xenófobas -, afastou das luzes da ribalta o que se está a passar mesmo no centro da Europa – que não da União Europeia - onde a histórica democracia helvética foi, no domingo, a votos para o governo e parlamento. Após uma campanha eleitoral marcada por vários conflitos, onde a União Democrática do Centro (UDC) – o partido mais à direita do espectro político – investiu nove milhões de euros, a UDC foi o partido mais votado, com 29% dos sufrágios. A UDC, liderada por Cristoph Blocher, veio de uma votação de 9,75% em 1975 para um total de 22,5% dos votos em 2003, ultrapassando, agora, as melhores expectativas dadas pelas sondagens, num país onde os partidos tradicionais - o Partido Social Democrata, o Partido Radical (da direita empresarial) e o Partido Democrata Cristão - têm vindo sistematicamente a perder terreno. A UDC fez uma campanha marcadamente anti-islâmica e racista, brandindo a ideia de que o perigo para a Suiça são a União Europeia e a esquerda e defendendo a tese de que o governo possa “deportar os criminosos”, o que quer dizer que os criminosos são estrangeiros. A imagem da campanha foi a bandeira de fundo vermelho e cruz branca do País, de cujo perímetro três ovelhas brancas tentavam expulsar, à patada, uma ovelha negra e onde pontificavam os dizeres “qualidade Suiça”, “minha casa, nosso país” e “por uma Suiça forte”. O cartaz provocou tal repúdio que até a ONU interpelou o candidato sobre o seu racismo mas o que é certo é que a campanha foi um êxito no sentido de atrair o eleitorado conservador. Nas manifestações de rua da UDC foram claramente identificados por uma foto-reportagem vários militantes conhecidos de grupos neo-nazis. Embora a Suiça tenho um sistema de governo sui generis, em que o executivo é formado por 7 membros dos quatro partidos mais votados – o que afasta, para já, o domínio absoluto da UDC - talvez seja tempo de as organizações internacionais começarem a olhar o país com “olhos de ver” mais além do que o funcionamento impecável dos relógios e o sigilo bancário.

segunda-feira, outubro 22, 2007

Neurônios e ideologia Somos todos adultos que pautam suas decisões políticas por considerações racionais, certo? Às vezes, mas devo admitir que fico tentado a responder a essa pergunta com um "quase nunca". Entre os vários "bugs" de nossa programação cerebral, destaca-se aquele que nos faz reagir a determinadas proposições políticas não com a cabeça, como seria desejável, mas com o fígado. É longa a lista de temas que nos levam a um posicionamento visceral: aborto, pena de morte, religião, legalização das drogas, porte de armas, direitos de homossexuais e, mais recentemente, ONU, invasão do Iraque e o governo George W. Bush. Vale a pena ler na íntegra esta crónica de Hélio Schwartsman , publicada na Follha Online (versão digital da Folha de São Paulo) na passada quinta feira.

domingo, outubro 21, 2007

Como endireitar um esquerdista Ser de esquerda é, desde que essa classificação surgiu na Revolução Francesa, optar pelos pobres, indignar-se frente à exclusão social, inconformar-se com toda forma de injustiça ou, como dizia Bobbio, considerar aberração a desigualdade social. Ser de direita é tolerar injustiças, considerar os imperativos do mercado acima dos direitos humanos, encarar a pobreza como nódoa incurável, julgar que existem pessoas e povos intrinsecamente superiores a outros. Ser esquerdista - patologia diagnosticada por Lênin como "doença infantil do comunismo" - é ficar contra o poder burguês até fazer parte dele. O esquerdista é um fundamentalista em causa própria. Encarna todos os esquemas religiosos próprios dos fundamentalistas da fé. Enche a boca de dogmas e venera um líder. Se o líder espirra, ele aplaude; se chora, ele entristece; se muda de opinião, ele rapidinho analisa a conjuntura para tentar demonstrar que na atual correlação de forças... O esquerdista adora as categorias acadêmicas da esquerda, mas iguala-se ao general Figueiredo num ponto: não suporta cheiro de povo. Para ele, povo é aquele substantivo abstrato que só lhe parece concreto na hora de cabalar votos. Então o esquerdista se acerca dos pobres, não preocupado com a situação deles, e sim com um único intuito: angariar votos para si e/ou sua corriola. Passadas as eleições, adeus trouxas, e até o próximo pleito! Como o esquerdista não tem princípios, apenas interesses, nada mais fácil do que endireitá-lo. Dê-lhe um bom emprego. Não pode ser trabalho, isso que obriga o comum dos mortais a ganhar o pão com sangue, suor e lágrimas. Tem que ser um desses empregos que pagam bom salário e concedem mais direitos que exigem deveres. Sobretudo se for no poder público. Pode ser também na iniciativa privada. O importante é que o esquerdista se sinta aquinhoado com um significativo aumento de sua renda pessoal. Isso acontece quando ele é eleito ou nomeado para uma função pública ou assume cargo de chefia numa empresa particular. Imediatamente abaixa a guarda. Nem faz autocrítica. Simplesmente o cheiro do dinheiro, combinado com a função de poder, produz a imbatível alquimia capaz de virar a cabeça do mais retórico dos revolucionários. Bom salário, função de chefia, mordomias, eis os ingredientes para inebriar o esquerdista em seu itinerário rumo à direita envergonhada - a que age como tal mas não se assume. Logo, o esquerdista muda de amizades e caprichos. Troca a cachaça pelo vinho importado, a cerveja pelo uísque escocês, o apartamento pelo condomínio fechado, as rodas de bar pelas recepções e festas suntuosas. Se um companheiro dos velhos tempos o procura, ele despista, desconversa, delega o caso à secretária, e à boca pequena se queixa do "chato". Agora todos os seus passos são movidos, com precisão cirúrgica, rumo à escalada do poder. Adora conviver com gente importante, empresários, ricaços, latifundiários. Delicia-se com seus agrados e presentes. Sua maior desgraça seria voltar ao que era, desprovido de afagos e salamaleques, cidadão comum em luta pela sobrevivência. Adeus ideais, utopias, sonhos! Viva o pragmatismo, a política de resultados, a cooptação, as maracutaias operadas com esperteza (embora ocorram acidentes de percurso. Neste caso, o esquerdista conta com o pronto socorro de seus pares: o silêncio obsequioso, o faz de conta de que nada houve, hoje foi você, amanhã poderei ser eu...). Lembrei-me dessa caracterização porque, dias atrás, encontrei num evento um antigo companheiro de movimentos populares, cúmplice na luta contra a ditadura. Perguntou se eu ainda mexia com essa "gente da periferia". E pontificou: "Que burrice a sua largar o governo. Lá você poderia fazer muito mais por esse povo." Tive vontade de rir diante daquele companheiro que, outrora, faria um Che Guevara sentir-se um pequeno-burguês, tamanho o seu aguerrido fervor revolucionário. Contive-me, para não ser indelicado com aquela figura ridícula, cabelos engomados, trajes finos, sapatos de calçar anjos. Apenas respondi: "Tornei-me reacionário, fiel aos meus antigos princípios. E prefiro correr o risco de errar com os pobres do que ter a pretensão de acertar sem eles." Frei Betto Retirado daqui

sábado, outubro 20, 2007

Profundidade Há perigo na goteira Que inunda o meu silêncio Há perigo nestas mãos Que destroem o imenso E a solidão. As goteiras caem uma a uma Em pedaços despedaçam O momento, até ser gotas Do silêncio na imensidão. As mãos agarram o som Em seus pequenos movimentos. Adrienne Morelato* *poetisa brasileira

sexta-feira, outubro 19, 2007

Vinícius, sempre! Vinícius, se fosse vivo, completaria hoje 94 anos. E eu, seu modesto admirador, que se não fosse português teria outra nacionalidade qualquer, dedico a parte final deste seu soneto aos políticos do meu país que vejo tão contentes por se terem vendido por um "prato de lentilhas". Vinícius, o grande, não gostaria da intimidade deles: Soneto da intimidade Nas tardes de fazenda há muito azul demais. Eu saio as vezes, sigo pelo pasto, agora Mastigando um capim, o peito nu de fora No pijama irreal de há três anos atrás. Desço o rio no vau dos pequenos canais Para ir beber na fonte a água fria e sonora E se encontro no mato o rubro de uma amora Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais. Fico ali respirando o cheiro bom do estrume Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme E quando por acaso uma mijada ferve Seguida de um olhar não sem malícia e verve Nós todos, animais, sem comoção nenhuma Mijamos em comum numa festa de espuma. Vinicius de Moraes

quinta-feira, outubro 18, 2007

A cimeira A esta hora, entre um croquete e uma laranjada, um pastel de bacalhau e uma coca cola ou caviar e um champanhe francês, tudo pago pelos impostos do Zé, os chefes de Estado ou de Governo da União Europeia devem estar a tagarelar sobre trivialidades (os austríacos que têm medo de que os alemães lhes roubem os estudantes de medicina, os polacos que querem não se sabe bem o quê, os italianos que não querem perder deputados, os búlgaros que querem chamar “evro” ao euro) enquanto se preparam para hipotecar a soberania de cada um dos países. Em lugar de darem um novo fôlego à Agenda de Lisboa, ambiciosa velhinha de sete anos que pretendia transformar, até 2010, a União Europeia na região económica mais empreendedora, com melhor educação e energeticamente mais eficiente do mundo, preparam-se para aprovar o Tratado de Lisboa, que ligará para sempre os destinos de Estados até agora soberanos à eurocracia reinante. A União Europeia teve origem numa comunidade de interesses económicos (daí se ter chamado Comunidade Económica Europeia) e devia ser nisso que os esforços dos nossos dirigentes se deviam focar: enfrentar a crescente globalização e tornar a Europa mais competitiva e capaz de fazer face ao poderio dos Estados Unidos e à crescente influência dos chamados BRIC (para os distraídos, Brasil, Rússia, Índia e China). Mas não. Até agora, os assuntos internos e judiciais eram questões exclusivas de cada Estado soberano, que definia o que era crime ou não, como lidar com os crimes do ponto de vista policial e qual a sentença mais adequada para cada um. Agora, vamos ter uma espécie de jantar de amigos com refeição de preço fixo previamente estipulada, com vinho da casa branco ou tinto, em que nem sequer os “doentes” podem optar por algo diferente. Há seis anos foi aprovada a Declaração de Laeken, em que os estados membros se comprometiam com mais transparência das instituições, mais democracia e mais subsidiariedade (ou seja, mais poder para cada estado). Agora, somos todos corridos a decisões do Tribunal Europeu de Justiça, que se propõe ficar com mais poderes do que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, do qual foi retirado a papel químico. Se a nossa justiça, que tem todas as condições de proximidade, é o que é, com um peso para os poderosos e peso nenhum para o Zé povinho, o que se vislumbra não augura nada de bom. Para já não falar de diplomacia, em que o Sr. de Bruxelas fará os dislates que entender e o nosso MNE, enquanto o houver, só poderá acenar como a cabeça, para cima e para baixo, como os burros. E vieram os meus avoengos lá do Minho, armados de espadas e lanças, para correrem com a moirama e com os castelhanos. O País com as fronteiras mais antigas do mundo pesa menos do que o Kosovo, a quem reconhecem o direito à independência os mesmos que a negam ao País Basco ou à Catalunha, à Irlanda do Norte ou à Córsega e, agora, a todos os pequenos Estados da UE. Ao que isto chegou. Depois admirem-se de que o fosso entre o povo e as auto-proclamadas elites seja cada vez maior, quer a nível da política de cada estado, que contará cada vez menos, quer a nível da política da União, que se burocratizará cada vez mais.

quarta-feira, outubro 17, 2007

Grito claro De escadas insubmissas de fechaduras alerta de chaves submersas e roucos subterrâneos onde a esperança enlouqueceu de notas dissonantes dum grito de loucura de toda a matéria escura sufocada e contraída nasce o grito claro António Ramos Rosa* *no dia do seu 83º aniversário
Hipocrisias A ditadura militar na Birmânia (rebaptizada de Mianmar pela actual junta) dura há 45 anos, sem que a comunidade internacional se tenha incomodado grandemente com o que se passa naquele país do sudoeste asiático, apesar de algumas sanções económicas por parte da União Europeia, do Canadá e dos Estados Unidos. Até que a recente “Revolução de Açafrão”, assim chamada devido à cor das túnicas dos monges budistas que iniciaram e lideraram os protestos, veio desencadear um coro de críticas sem precedentes e ameaças de novas sanções, quer da União Europeia quer dos Estados Unidos. Do lado de lá do Atlântico, às palavras do Sr. Bush e da Sra. Rice juntaram-se críticas muito contundentes de alguém que não costuma pronunciar-se publicamente: a Primeira-dama Laura Bush. Mas, mais uma vez, a comunicação social não fez os trabalhos de casa, isto é, explicar aos iletrados como eu quem sustenta a junta militar. E aí, um nome chama atenção: a petrolífera estado-unidense Chevron, que a Sra. Rice deve conhecer bem, já que foi membro da sua direcção durante 10 longos anos, antes de se tornar conselheira de segurança do Sr. Bush e, depois, sua Secretária de Estado. Com efeito, a maior riqueza da Birmânia são as reservas de gás natural, controladas pela junta em sociedade com a Chevron, a francesa Total e uma empresa petrolífera tailandesa. As plataformas de gás natural situadas no alto mar enviam o gás para a Tailândia através de um gasoduto que foi construído com mão-de-obra escrava, obrigada à servidão pelo regime militar birmanês. A sócia inicial do oleoduto, a petrolífera californiana Unocal, foi processada pela EarthRigths International por utilizar mão-de-obra escrava; logo que o processo foi resolvido fora dos tribunais, a Chevron comprou-a. A Total está correntemente a ser processada nos tribunais da França e da Bélgica pelo mesmo motivo. Escusado será dizer que a Chevron e a Total não foram beliscadas pelas sanções, apesar das repetidas ameaças do seu reforço por parte da União Europeia (com a França à cabeça) e dos Estados Unidos, e que continuam a operar livremente as plataformas e o gasoduto. Enquanto assim for, não há sanções que resultem.

terça-feira, outubro 16, 2007

Memória de Adriano Nas tuas mãos tomaste uma guitarra copo de vinho de alegria sã sangria do suor e de cigarra que à noite canta a festa da manhã. Foste sempre o cantor que não se agarra o que à terra chamou amante e irmã mas também português que investe e marra voz de alaúde e rosto de maçã. O teu coração de ouro veio do Douro num barco de vindimas de cantigas tão generosas como a liberdade. Resta de ti a ilha dum tesouro a jóia com as pedras mais antigas não é saudade, não! É amizade. Ary dos Santos

segunda-feira, outubro 15, 2007

O caminho para Samarra

Um soldado da antiga Bassora, na Mesopotânia, cheio de medo, foi ao rei e lhe disse: "Meu Senhor, salva-me, ajuda-me a fugir daqui; estava na praça do mercado e encontrei a Morte vestida toda de preto que me mirou com um olhar mortal; empresta-me seu cavalo real para que possa correr depressa para Samarra que fica longe daqui; temo por minha vida se ficar na cidade". O rei fez-lhe a vontade. Mais tarde o rei encontrou a Morte na rua e lhe disse: " O meu soldado estava apavorado; contou-me que te encontrou e que tu o olhavas de forma estranhíssima". "Oh não", respondeu a Morte, "o meu olhar era apenas de estupefação, pois me perguntava como esse homem iria chegar a Samarra que fica tão longe daqui, porque o esperava esta noite lá".

Essa estória é uma parábola da aceleração do crescimento feito à custa da devastação da natureza e da exclusão das grandes maiorias. Ele nos está levando para Samarra. Em outras palavras: temos pouquíssimo tempo à disposição para entender o caos no sistema-Terra e tomar as medidas necessárias antes que ela desencadeie conseqüências irreversíveis. Já sabemos que não podemos mais evitar o aquecimento global, apenas impedir que seja catastrófico. No âmbito dos governos, não se está fazendo nada de realmente significativo que responda à gravidade do desafio. Muitos crêem na capacidade mágica da tecno-ciência: no momento decisivo ela seria capaz de suster os efeitos destrutivos. Mas a coisa não é bem assim. Há danos que uma vez ocorridos produzem um efeito-avalanche.

A natureza no campo físico-químico e mesmo as doenças humanas nos servem de exemplo. Uma vez desencadeada, não se pode mais bloquear uma explosão nuclear. Rompidos os diques de Nova Orleans nos USA, não é mais possível frear a invasão do mar. Na maioria das doenças humanas ocorre a mesma lógica. O abuso de álcool e de fumo, o excesso na alimentação e a vida sedentária começam a princípio produzindo efeitos sem maior significação. Mas o organismo lentamente vai acumulando modificações, primeiramente funcionais, depois orgânicas e, por fim, atingindo certo patamar, surge uma doença não mais reversível.

É o que está ocorrendo com a Terra. A "colônia" humana em relação ao organismo-Terra está se comportando como um grupo de células que, num dado momento, começa a se replicar caoticamente, a invadir os tecidos circundantes, a produzir substâncias tóxicas que acaba por envenenar todo o organismo. Nós fizemos isso, ocupando 83% do planeta.

O sistema econômico e produtivo se desenvolveu já há três séculos sem tomar em conta sua compatibilidade com o sistema ecológico. Hoje nos damos conta de que ecologia e modo industrialista de produção que implica o saque desertificante da natureza são contraditórios. Ou mudamos ou chegaremos à Samarra, onde nos espera algo sinistro.

A Terra como um todo é a fronteira. Ela coloca em crise os atuais modos de produção que sacrificam o capital natural e as formações sociais construídas sobre o consumismo, o desperdício, o mau trato dos rejeitos e a exclusão social. Três problemas básicos nos afligem: a alimentação que inclui a água potável, as fontes de energia e a superpopulação. Para cada um destes problemas não temos soluções globais à vista. E o tempo do relógio corre contra nós. Agora é o momento de crise coletiva que nos obriga a pensar, a madurar e a tomar decisões de vida ou de morte.

Leonardo Boff

Retirado daqui
O Apogeu do Cobarde Havia num partido um homem, que era demasiado medroso e cobarde para, alguma vez, contradizer os seus camaradas: empregavam-no para todos os serviços, exigiam tudo dele, porque ele tinha mais medo da má opinião dos seus camaradas que da morte; era um lamentável espírito fraco. Eles reconheceram isso e fizeram dele, em virtude das circunstâncias mencionadas, um herói e, por fim, até um mártir. Embora o cobarde, interiormente, dissesse sempre não, com os lábios pronunciava sempre sim, mesmo já no cadafalso, ao morrer pelas ideias do seu partido: é que, ao lado dele, estava um dos seus velhos camaradas, que o tiranizava tanto pela palavra e o olhar, que ele sofreu a morte realmente da maneira mais decente e, desde então, é homenageado como mártir e grande personalidade. Friedrich Nietzsche, in 'Humano, Demasiado Humano' Retirado do Citador

domingo, outubro 14, 2007

O senador imexível Este texto foi escrito a propósito do escândalo que tem sido protagonizado pelo presidente do Senado brasileiro. Mas, mutatis mutandis, poderia aplicar-se a muitos políticos da nossa praça, pelo que aqui fica para reflexão: "Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência?", indaga Marco Túlio Cícero, referindo-se ao senador Lúcio Sérgio Catilina, a 8 de novembro de 63 a.C., em Roma. Flagrado em atitudes criminosas, Catilina se recusa a renunciar ao mandato, urdindo um golpe contra o Senado. Cícero, orador emérito, respeitado por sua conduta ética na política e na vida pessoal, põe em sua boca a indignação popular: "Por quanto tempo ainda há de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos?" "Ó tempos, ó costumes!", exclama Cícero movido por sua atormentada perplexidade diante da insensibilidade do acusado. "Que há, pois, ó Catilina, que ainda agora possas esperar, se nem a noite, com suas trevas, pode manter ocultos os teus criminosos conluios; nem uma casa particular pode conter, com suas paredes, os segredos da tua conspiração; se tudo vem à luz do dia, se tudo irrompe em público?" Jurista, Cícero se esforça para que Catilina admita os seus graves erros: "É tempo, acredita-me, de mudares essas disposições; desiste das chacinas e dos incêndios. Estás apanhado por todos os lados. Todos os teus planos são para nós mais claros que a luz do dia." Se Catilina permanece no Senado, não é apenas a vontade própria que o sustenta, mas sobretudo a cumplicidade dos que teriam a perder, com a renúncia dele, proveitos políticos. Daí a exclamação de Cícero: "Em que país do mundo estamos nós, afinal? Que governo é o nosso?" Cícero não teme ameaças e expressa o que lhe dita o decoro: "Já não podes conviver por mais tempo conosco; não o suporto, não o tolero, não o consinto. (…) Que nódoa de escândalos familiares não foi gravada a fogo na tua vida? Que ignomínia de vida particular não anda ligada à tua reputação? (…) Refiro-me a fatos que dizem respeito, não à infâmia pessoal dos teus vícios, não à tua penúria doméstica e à tua má fama, mas sim aos superiores interesses do Estado e à vida e segurança de todos nós." Os crimes de Catilina escancaram-se à nação. Seus próprios pares o evitam, como assinala Cícero: "E agora, que vida é esta que levas? Desejo neste momento falar-te de modo que se veja que não sou movido pelo rancor, que eu te deveria ter, mas por uma compaixão que tu em nada mereces. Entraste há pouco neste Senado. Quem, dentre esta tão vasta assembléia, dentre todos os teus amigos e parentes, te saudou? Se isto, desde que há memória dos homens, a ninguém aconteceu, ainda esperas que te insultem com palavras, quando te encontras esmagado pela pesadíssima condenação do silêncio?". Catilina finge não se dar conta da gravidade da situação. Faz ouvidos moucos, jura inocência, agarra-se doentiamente a seu mandato. "Se os meus escravos me temessem da maneira que todos os teus concidadãos te receiam" - brada Cícero -, "eu, por Hércules, sentir-me-ia compelido a deixar a minha casa; e tu, a esta cidade, não pensas que é teu dever abandoná-la? E se eu me visse, ainda que injustamente, tão gravemente suspeito e detestado pelos meus concidadãos, preferiria ficar privado da sua vista a ser alvo do olhar hostil de toda a gente; e tu, apesar de reconheceres, pela consciência que tens dos teus crimes, que é justo e de há muito merecido o ódio que todos nutrem por ti, estás a hesitar em fugir da vista e da presença de todos aqueles a quem tu atinges na alma e no coração?". Cícero não demonstra esperança de que seu libelo seja ouvido: "Mas de que servem as minhas palavras? A ti, como pode alguma coisa fazer-te dobrar? Tu, como poderás algum dia corrigir-te?" E não poupa os políticos que, apesar de tudo, apóiam Catilina: "Há, todavia, nesta Ordem de senadores, alguns que, ou não vêem aquilo que nos ameaça, ou fingem ignorar aquilo que vêem". Catilina acaba se refugiando na Etrúria e morre em 62 a.C.. Cícero, afastado do Senado por Júlio César, é assassinado em 43 a.C. Frei Betto Retirado daqui

sábado, outubro 13, 2007

Noite morta Noite morta. Junto ao poste de iluminação Os sapos engolem mosquitos. Ninguém passa na estrada. Nem um bêbado. No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras. Sombras de todos os que passaram. Os que ainda vivem e os que já morreram. O córrego chora. A voz da noite . . . (Não desta noite, mas de outra maior.) Manuel Bandeira* (Petrópolis, 1921) *poeta barsileiro

sexta-feira, outubro 12, 2007

Ite Circus Est! ...que é como quem diz, podeis ir embora que o circo acabou! Dizem que a Igreja Católica decidiu entrar no mundo do futebol, comprando, através da Conferência Episcopal Italiana, uma participação no AC Ancona, um clube da terceira divisão italiana, com o objectivo de injectar no futebol alguma moralidade, considerada “muito necessária”. “Nós queremos trazer alguma ética de volta ao jogo, o qual tem sofrido uma grave crise em termos de desportivismo”, terá dito Edoardo Menichelli, Arcebispo de Ancona. Com o rumo que as coisas têm tomado no Vaticano, é muito provável que o canto gregoriano, em latim como deve ser, passe a ser escutado em Ancona e nos vários campos que o clube visitar e que, no termo de cada jogo em casa, os apoiantes passem a ser enviados embora com um sonoro “Ite Circus Est”, proclamado pelo Arcebispo a partir do camarote presidencial. Para ajudar “à missa”, aqui ficam algumas sugestões: Por cada golo do clube da casa, a massa associativa cantará, em coro, o aleluia; por cada golo sofrido, o secretário episcopal alternará uma das lamentações de Jeremias. Quando os adeptos quiseram mandar o treinador embora, cantarão o requiem, seguido do dies irae; se o clube correr o risco de descer de divisão, entoarão o “ofício das trevas”. No estádio será construída uma capela, onde a equipa de arbitragem irá rezar antes de cada jogo para não fazer disparates. Para que não haja pressões, serão acompanhados pelos jogadores e pelas equipas técnicas de ambos os clubes. Se o guarda-redes da casa defender uma grande penalidade, terá direito a uma indulgência plenária; se deixar entrar um frango, é automaticamente excomungado, só podendo voltar a actuar depois de se confessar ao Arcebispo. A mesma benesse ou o mesmo castigo serão aplicados ao jogador da casa que marcar um golo decisivo ou falhar uma grande penalidade. Quem vir um cartão encarnado, vai para o inferno durante duas semanas e se agredir um adversário, serão dois meses; por seu lado, os admoestados com amarelos passarão uma semana no purgatório e outra no limbo. A equipa de arbitragem que cometer erros grosseiros contra o clube da casa, será exorcizada e impedida de arbitrar durante um ano; mas, se o erro grosseiro for a favor, irá viver no paraíso até ao próximo jogo. Para os jogadores da casa, o spray milagroso será substituído pela água benta e a embalagem pelo hissope. Os insultos aos árbitros ou aos jogadores adversários não poderão ultrapassar um “vai-te confessar, malandro” seguido de uma persignação, com a mão direita e com o respeitinho devido. Por último, se o clube subir de divisão, todos os jogadores e equipa técnica receberão uma indulgência plenária para todo o sempre, a qual só poderá ser revertida se voltarem a descer de divisão ou forem para a concorrência; para a massa associativa, a indulgência plenária terá um prazo de validade de um ano. Ámen.
Maquinomem O homem esposou a máquina e gerou um híbrido estranho: um cronômetro no peito e um dínamo no crânio. As hemácias de seu sangue são redondos algarismos. Crescem cactos estatísticos em seus abstratos jardins. Exato planejamento, a vida do maquinomem. Trepidam as engrenagens no esforço das realizações. Em seu íntimo ignorado, há uma estranha prisioneira, cujos gritos estremecem a metálica estrutura; há reflexos flamejantes de uma luz imponderável que perturbam a frieza do blindado maquinomem. Helena Kolody* *poetisa brasileira

quinta-feira, outubro 11, 2007

CERTEZA De tudo, ficaram três coisas: A certeza de que ele estava sempre começando... A certeza de que era preciso continuar... A certeza de que seria interrompido antes de terminar.... Fazer da interrupção um caminho novo ... Fazer da queda um passo de dança... Do medo, uma escada... Do sonho, uma ponte... Da procura, um encontro... Fernando Sabino* *poeta brasileiro

quarta-feira, outubro 10, 2007

Os complicadores Um reputado constitucionalista português diz ser contra o referendo ao Tratado Reformador da União Europeia – um eufemismo para a Constituição Europeia – por se tratar de “textos longos, complexos, prolixos e que versam sobre centenas ou milhares de questões”, acrescentando que “estes documentos não podem deixar de ser longos e complexos” Ora, com todo o respeito que o Prof. Vital Moreira merece, uma Constituição não tem de ser, forçosamente, um documento longo e complexo. Nós, os portugueses em particular e os europeus em geral, é que temos o mau hábito de complicar aquilo que poderia ser simples. Já quando, em 1982, foi elaborado o Tratado de Maastricht, fomos confrontados com um documento intragável até para os iniciados, que a grande maioria dos seus apoiantes não deve ter percebido. A mim valeu-me, na altura, o economista António Marta, que creio ocupava o lugar de Secretário de Estado (das Comunidades ou da Integração Europeia, já não me recordo decorridos 15 anos), o qual verteu para português minimamente inteligível uma versão reduzida (mesmo assim com 150 páginas) do documento. Em termos internacionais, por exemplo, a Constituição dos Estados Unidos tem 7 Artigos que ocupam sete páginas, a que foram acrescentadas 27 Emendas – das quais as 10 primeiras formam A Carta dos Direitos (The Bill of Rights) – que ocupam mais oito páginas. A Constituição Portuguesa tem 296 Artigos que ocupam noventa e uma páginas. E a moribunda Constituição Europeia tem 448 artigos que ocupam mais de duzentas e cinquenta páginas que, com os protocolos anexos, sobem para mais de quatrocentas e cinquenta. Em termos de palavras, vi escrito que a Constituição dos Estados Unidos tem 4.600 palavras (eu fiz a conversão para documento de texto, incluindo as Emendas, e contei 7.132 palavras), ao passo que a Europeia tem mais de 60.000. E quanto à clareza do conteúdo, vou ali e já venho. Indo apenas ao preâmbulo, comparemos o dos Estados Unidos : “Nós, o Povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, assegurar a Tranquilidade interna, prover a defesa comum, promover o Bem-estar geral, e garantir para nós e para os nossos Descendentes os benefícios da Liberdade, estabelecemos e promulgamos esta Constituição para os Estados Unidos da América.” com o da União Europeia, ou mesmo o de Portugal . Eu não sou um admirador daquilo que os Estados Unidos representam, o que não me impede de reconhecer o muito que o país, e principalmente o seu povo, tem de bom. E cá deste lado devíamos aproveitar o bom e refutar o mau, mas costumamos fazer exactamente o oposto. Pela minha parte, não gostaria de ver a minha vida regulada pelo Estado – ou por um conjunto de Estados – até ao mais ínfimo pormenor. Não tenho de beber a mistela a que os ingleses dão o nome de cerveja, comer salsichas quando não gosto, ser impedido de tomar banho todos os dias só porque há europeus que não têm hábitos de banho diário e muitas outras coisas mais. Já chega ter de consumir fruta “de aviário” normalizada, tomates normalizados também “de aviário”, azeite que não presta em embalagens invioláveis, hortaliça embalada com desperdícios lá dentro e “digerir” Directivas e mais Directivas que regulam a minha actividade profissional, para mais apenas disponíveis em letra do tamanho 7, para dar sono durante a leitura e proporcionar a “caça à sanção”. E o Zé a pagar os chorudos ordenados da cambada que está em Bruxelas ou em Estrasburgo.

terça-feira, outubro 09, 2007

Assassinaram o Che

Foi há 40 anos, ia eu a caminho dos meus dezanove.

Do lado de cá do Atlântico, os Fab Four e os Stones destruíam preconceitos e os movimentos estudantis começavam a pressagiar o que viria a ser “o Maio de 68”. Do lado de lá, o movimento hippie estava no seu auge, a contestação à Guerra do Vietname e as lutas pelos direitos cívicos intensificavam-se e o rock psicadélico dos Grateful Dead e Jefferson Airplane dominavam, com Janis Joplin, as ondas. Dos dois lados, Scott McKenzie e o seu “San Francisco (Be Sure to Wear Flowers in Your Hair)" batiam recordes de audições nas rádios.

Numa floresta da Bolívia, um revolucionário romântico, apanhado na véspera com o seu pequeno grupo de guerrilheiros, era barbaramente assassinado no dia 9 de Outubro de 1967, às ordens da CIA e do seu ditador de turno no país, general René Barrientos.

Digam o que disserem os seus detractores, hoje como ontem fieis serventuários do “império”, a figura do médico argentino que trocou a maleta por uma espingarda para tentar pôr fim à miséria na América Latina (e na África, pois esteve um ano no Congo) perdurará na memória dos mais desfavorecidos.


Esta fotografia, que celebrizou o seu autor Alberto Korda, feita num funeral, em Cuba, em 5 de Março de 1960, e tornada pública apenas sete anos após a sua captação, foi considerada pelo Instituto Maryland de Arte como “a mais famosa fotografia no mundo e símbolo do século XX”.


A partir dela, o artista plástico irlandês James Fitzpatrick criou a imagem icónica e mundialmente popular do Che, da qual se diz que é a segunda imagem mais difundida no mundo, a seguir à de Cristo.

Numa carta de despedida aos filhos, o Che deixou uma mensagem em que todos, mesmo aqueles que procuram denegri-lo, deviam meditar:

"Acima de tudo procurem sentir no mais profundo de vocês qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É a mais bela qualidade de um revolucionário"

segunda-feira, outubro 08, 2007

Língua-mar A língua em que navego, marinheiro, na proa das vogais e consoantes, é a que me chega em ondas incessantes à praia deste poema aventureiro. É a língua portuguesa, a que primeiro transpôs o abismo e as dores velejantes, no mistério das águas mais distantes, e que agora me banha por inteiro. Língua de sol, espuma e maresia, que a nau dos sonhadores-navegantes atravessa a caminho dos instantes, cruzando o Bojador de cada dia. Ó língua-mar, viajando em todos nós. No teu sal, singra errante a minha voz. Adriano Espínola* *poeta brasileiro

domingo, outubro 07, 2007

Mistifório ou moscambilha? Alertado por uma alma caridosa, fui sem demora ver o sítio e deparei-me com o seguinte preparo: * 2 páginas de projecto de não preâmbulo; * 152 páginas de alterações às alterações previamente alteradas; * 76 páginas de protocolos protocolares devidamente protocolados; * 25 páginas de declarações declarativas. Necessitei de dois dias para reagir pois, neste caso, não se trata da montanha que pariu um rato, mas literalmente de um outeiro que pariu várias cordilheiras. Resta saber se se trata de um mistifório, resultante da incapacidade dos eurocratas de legislarem em termos compreensíveis ao contribuinte ou de uma moscambilha destinada a comer por parvos mais de quatrocentos milhões de cidadãos.

sábado, outubro 06, 2007

Música Nas mãos que harpejam, ferem, desmancham no silêncio noturno o frio teclado - de onde arrancam as notas, o eco - escutei o destino, insistente chamado. Pelas mãos desarmadas de espadas e foices senti sobre a pele o toque encantado daquilo que ecoa em calado sussurro. Ouço as vozes e o que é falado. Mãos me libertam da cegueira eterna da massa, do mundo desacordado. Abraço as sombras de acordes que soam. Quem fala é a música. Insistente é o chamado. Adrianne Fontoura* *poetisa brasileira

sexta-feira, outubro 05, 2007

Rebelião Se existem outras dimensões Por que não em mim? Absorventes, inerentes Sem nenhuma proporção. Não há dicotomia Entre o fogo que sufoca E o ar que oxigena Quando um se espraia Através da existência do outro. Convivência, Nem sempre tão passiva Entre beatitude e depravação Contradições complementares De sentimento e razão. Sintagmas e paradigmas Tesão e tédio Tudo passando por portas de comunicação, Pelos dez por cento de mente Que ansiando pela lógica Permitem-nos transpassar desordenadamente Ao menos três dimensões. Adriana Sampaio* poetisa brasileira

quinta-feira, outubro 04, 2007

Cá, quase como lá. Não fui eu quem escreveu este texto, mas não me importava de ter sido, se para tanto tivesse tempo e, sobretudo, arte e engenho. Com a mudança do nome dos media ditos “de referência” e alguns ajustes nas observações, considero que o texto “Para além dos arautos da desdita”, do poeta e cronista Lula Miranda, podia ser colado à realidade portuguesa. Como o autor, deixei há muito de gastar dinheiro em jornais escritos, diários ou semanários, com uma honrosa excepção para um revista semanal produzida ali para os lados de Paço de Arcos, que ainda vai fazendo jus ao preço de capa e que adquiro número após numero há quase 15 anos. Os outros, compro apenas de quando em vez, para avaliar se algo mudou – e, normalmente, mudou para pior. De resto, procuro informação nas edições de jornais digitais de todo o mundo (de cá também), que são às centenas. E antes de escrever sobre uma qualquer coisa que leio, tento confirmar noutras fontes a veracidade das informações colhidas algures. O que, lamentavelmente, os nossos jornalistas profissionais não fazem. Para abrir o apetite, aqui fica o início da crónica a que me referi acima: Os pessimistas que me perdoem, sei que ainda há muito o que fazer, mas vislumbro um futuro promissor para o país. Isso, claro, se os engenheiros da destruição e os sabotadores encastelados na grande imprensa, e até mesmo no Banco Central, deixarem.

quarta-feira, outubro 03, 2007

LES OISEAUX DÉGUISÉS Tous ceux qui parlent des merveilles Leurs fables cachent des sanglots Et les couleurs de leur oreille Toujours à des plaintes pareilles Donnent leurs larmes pour de l'eau Le peintre assis devant sa toile A-t-il jamais peint ce qu'il voit Ce qu'il voit son histoire voile Et ses ténèbres sont étoiles Comme chanter change la voix Ses secrets partout qu'il expose Ce sont des oiseaux déguisés Son regard embellit les choses Et les gens prennent pour des roses La douleur dont il est brisé Ma vie au loin mon étrangère Ce que je fus je l'ai quitté Et les teintes d'aimer changèrent Comme roussit dans les fougères Le songe d'une nuit d'été Automne automne long automne Comme le cri du vitrier De rue en rue et je chantonne Un air dont lentement s'étonne Celui qui ne sait plus prier Louis Aragon

terça-feira, outubro 02, 2007

Ontem Ontem saí por aí navegando... Hoje tenho medo de voltar à terra estranha a ter terra nos pés. Quando a noite caiu achei que tinha algo a dizer do silêncio (dele) mas antes de dizer caio também no absurdo antes de dizer escuto... Adriana Lustosa* *poetisa brasileira

segunda-feira, outubro 01, 2007

Engana que eu gosto Ora, é evidente que contra o senador não há "provas conclusivas", tudo não passou de gentileza do lobista de uma grande empreiteira. A contabilidade pecuária está em ordem, embora haja certa desordem na documentação pertinente. Desde muito cedo o cidadão brasileiro é educado na síndrome do engano, enfermidade de etiologia política cuja cura só pode ser alcançada mediante doses maciças de auto-estima e senso cívico. Os descobrimentos da América e do Brasil foram magníficos encontros de culturas transoceânicas. O saldo de milhões de indígenas mortos é mero acaso de organismos vulneráveis em suas defesas imunológicas às gripes e resfriados que os ibéricos contraíam em contato com as frias correntes marítimas. A Casa Grande, generosa com os escravos, tratava-os como filhos, e uns tantos senhores, livres de todo preconceito, chegaram a mesclar seu sangue de branco ao prenhar negras e gerar o mestiço e este símbolo nacional chamada mulata. Graças à benevolência da Casa Grande é que a senzala, farta de carnes variadas, brindou-nos com o prato de preferência nacional: a feijoada. E que não se olvide o bom-gosto do caipira, inventor deste coquetel que, hoje, conquista o sabor mundial: a caipirinha. A rebelião de Vila Rica não passou de uma transposição extemporânea, ao solo pátrio, das idéias iluministas em voga na Europa. O bando de intelectuais, surpreendidos em sublevação contra a Coroa, fez de um alferes boi de piranha. Tanto que outro qualificativo eles não mereceram senão o de inconfidentes, incapazes de guardar confidência, segredo. À exceção do que teve o pescoço enforcado, deduraram uns aos outros. Hoje, o evento passaria à história como Deduragem Mineira. E a Guerra do Paraguai? Foi lá o nosso Exército pacificar aquele povo iludido pela mente insana de um caudilho raivoso disposto a defender valores anacrônicos: a soberania nacional e os direitos sociais. Tamanha a paz que os nossos militares impuseram à nação vizinha, que apenas em cemitérios se pode encontrar tanta quietude. Em Canudos, um bando de fanáticos, liderado por um fundamentalista desmiolado, ousou contrapor-se à proclamação da República! Não tivesse aquela gente resistido à ação pacificadora do Exército, teriam todos sobrevivido e, ordeiramente, retornado ao sadio trabalho nas lavouras canavieiras. Tantas proeminentes figuras em nossa bela história: Vargas, pai dos pobres; JK, 50 anos em 5; Jânio, o homem da vassoura; Collor, o caçador de marajás! Merece destaque a Revolução de 1964, que salvou o Brasil da ameaça comunista e imprimiu índices astronômicos ao nosso desenvolvimento. Vide a Transamazônica, a Ferrovia do Aço, o Mobral e o fim do analfabetismo! Se um bando de subversivos preferiu trocar canetas por armas, insatisfeitos com a hierarquia trasladada dos quartéis às ruas, não fizeram as Forças Armadas outra coisa senão reagir em defesa da lei e da ordem. Assim, de engano em engano, para o bem de todos e a felicidade geral da nação, transcorre a nossa história. Ela que avança em ciclos de prosperidade, do pau-brasil ao ouro, do café à cana-de-açúcar, do minério à madeira amazônica, da soja à carne e, agora, retorna aos canaviais, de onde jorra o etanol, a bola da vez a oferecer ao mercado externo. Sabemos todos que a verdade é inconveniente, incômoda, constrangedora. É melhor esse jeitinho elitista, capaz de acomodar as situações mais conflitivas e adotar, em nossas escolas, a versão cordial sobre o povo brasileiro. Povo pacífico, ordeiro, leal, com exceção de uns poucos que enxergam mensalão onde houve apenas "operações não contabilizadas". E ainda querem avacalheirar o presidente do Senado! Engana que eu gosto!, diz a nação. Porque não há reação, não há manifestações nem mobilizações. Cadê as lideranças populares, as centrais sindicais, as pastorais proféticas? Fora um ou outro protesto ou gesto de indignação, tudo permanece como dantes no quartel de Abrantes. Razão tinha Proust que, em Sodoma e Gomorra, escreveu: "No mundo da política as vítimas são tão covardes que não se consegue considerar os algozes maus por muito tempo". Frei Betto Retirado daqui