segunda-feira, outubro 15, 2007

O caminho para Samarra

Um soldado da antiga Bassora, na Mesopotânia, cheio de medo, foi ao rei e lhe disse: "Meu Senhor, salva-me, ajuda-me a fugir daqui; estava na praça do mercado e encontrei a Morte vestida toda de preto que me mirou com um olhar mortal; empresta-me seu cavalo real para que possa correr depressa para Samarra que fica longe daqui; temo por minha vida se ficar na cidade". O rei fez-lhe a vontade. Mais tarde o rei encontrou a Morte na rua e lhe disse: " O meu soldado estava apavorado; contou-me que te encontrou e que tu o olhavas de forma estranhíssima". "Oh não", respondeu a Morte, "o meu olhar era apenas de estupefação, pois me perguntava como esse homem iria chegar a Samarra que fica tão longe daqui, porque o esperava esta noite lá".

Essa estória é uma parábola da aceleração do crescimento feito à custa da devastação da natureza e da exclusão das grandes maiorias. Ele nos está levando para Samarra. Em outras palavras: temos pouquíssimo tempo à disposição para entender o caos no sistema-Terra e tomar as medidas necessárias antes que ela desencadeie conseqüências irreversíveis. Já sabemos que não podemos mais evitar o aquecimento global, apenas impedir que seja catastrófico. No âmbito dos governos, não se está fazendo nada de realmente significativo que responda à gravidade do desafio. Muitos crêem na capacidade mágica da tecno-ciência: no momento decisivo ela seria capaz de suster os efeitos destrutivos. Mas a coisa não é bem assim. Há danos que uma vez ocorridos produzem um efeito-avalanche.

A natureza no campo físico-químico e mesmo as doenças humanas nos servem de exemplo. Uma vez desencadeada, não se pode mais bloquear uma explosão nuclear. Rompidos os diques de Nova Orleans nos USA, não é mais possível frear a invasão do mar. Na maioria das doenças humanas ocorre a mesma lógica. O abuso de álcool e de fumo, o excesso na alimentação e a vida sedentária começam a princípio produzindo efeitos sem maior significação. Mas o organismo lentamente vai acumulando modificações, primeiramente funcionais, depois orgânicas e, por fim, atingindo certo patamar, surge uma doença não mais reversível.

É o que está ocorrendo com a Terra. A "colônia" humana em relação ao organismo-Terra está se comportando como um grupo de células que, num dado momento, começa a se replicar caoticamente, a invadir os tecidos circundantes, a produzir substâncias tóxicas que acaba por envenenar todo o organismo. Nós fizemos isso, ocupando 83% do planeta.

O sistema econômico e produtivo se desenvolveu já há três séculos sem tomar em conta sua compatibilidade com o sistema ecológico. Hoje nos damos conta de que ecologia e modo industrialista de produção que implica o saque desertificante da natureza são contraditórios. Ou mudamos ou chegaremos à Samarra, onde nos espera algo sinistro.

A Terra como um todo é a fronteira. Ela coloca em crise os atuais modos de produção que sacrificam o capital natural e as formações sociais construídas sobre o consumismo, o desperdício, o mau trato dos rejeitos e a exclusão social. Três problemas básicos nos afligem: a alimentação que inclui a água potável, as fontes de energia e a superpopulação. Para cada um destes problemas não temos soluções globais à vista. E o tempo do relógio corre contra nós. Agora é o momento de crise coletiva que nos obriga a pensar, a madurar e a tomar decisões de vida ou de morte.

Leonardo Boff

Retirado daqui

2 comentários:

GMaciel disse...

O problema, meu amigo, é que ainda andamos todos a pensar quando o que precisamos é de decisões acertadas e de arregaçar as mangas.
Mas quem tomará essas decisões? E quem estará disposto a arregaçar as mangas e fazer a sua parte??? O que vejo à minha volta é um comodismo exasperante, indiciado pelo encolher de ombros e pelo pontapear o problema para as gerações vindouras ou para quem detém o poder.

O meu amigo Igor disse-o de forma curta mas lapidar: "tudo aquilo que fazemos tem consequências. Estamos dispostos a aceitá-las ou não?"

Penso que temos de começar por despertar consciências, não para o problema, mas para pequenas soluções que cada um pode adoptar e, para isso, não precisamos de um dia específico. Resumindo, meu amigo; temos de continuar a batalhar, aqui nos blogues, e junto ao nosso círculo de influência. O pouco feito por muitos acaba por se tornar significante, não achas?
:)
jocas à tribo inteira - e espero que tudo tenha voltado ao normal no que respeita à companheira.
;)

lino disse...

Pois temos, amiga.
Mas há coisas do arco da velha. Ontem e hoje estive a ler um artigo sobre as emissóes provocadas pela criação de gado (são quatro pontos percentuais superiores às provocadas pelos transportes), para que nós possamos ferrar o dente num cozido à portuguesa, nuns rojões à moda do Minho ou num cabritinho no forno. Ainda vou postar sobre isso, talvez.
Quanto à companheira, está a caminhar bem, mas ainda tem para uns tempos.
Jocas grandes.