sexta-feira, agosto 31, 2007

"Evita"


A menina que se vê de cara tapada entre as duas senhoras, referida apenas como “Evita” nos meios de comunicação social nicaraguenses e internacionais, completa 10 anos no próximo mês de Outubro e está a dividir a sociedade daquele país da América Central.

Evita”, natural de uma pobre e recôndita povoação da Região Autónoma do Atlântico Sul nicaraguense, está grávida de 27 semanas, vítima de violação por parte de um primo de 22 anos, que vivia na sua casa até a mãe da criança o ter expulso, e terá de dar à luz o filho que carrega consigo, apesar de estar doente e de os médicos reconhecerem que não tem condições para ser mãe.

Com efeito, desde Outubro de 2006, dez dias antes das eleições que levaram de novo ao poder Daniel Ortega, líder da Frente Sandinista de Libertação Nacional, o aborto terapêutico passou a ser proibido na Nicarágua.

Como sempre, a aprovação da criminalização foi originada pela intensa campanha da Igreja Católica, bem acolitada pela Igreja Evangélica, assim como pelos vários movimentos anti-aborto do país e pelos políticos de direita e extrema direita.

O que é mais estranho e de lamentar é o facto de a aprovação da lei punitiva ter contado com o beneplácito dos Sandinistas, mais preocupados com o regresso ao poder do que com a defesa dos direitos das mulheres e, no caso da Nicarágua, das próprias crianças, dado que o índice de gravidez por violação a partir dos 13 anos é muito significativo.

Evita”, para além do fardo de parir uma criança fora de tempo e ao arrepio da sua vontade, ostentará o “desonroso” recorde de ser a mãe mais jovem do seu país.

Esperemos que, pelo menos, conserve o “título” por muitos anos, pois isso será sinal de que não houve uma criança mais nova vítima da mesma dupla brutalidade: a do adulto que viola uma criança e a da sociedade que a obriga a parir.

quinta-feira, agosto 30, 2007

25 anos

Para a minha filhota:

rosas...





















...um poema...

Urgentemente

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

Eugénio de Andrade

...e depois...

















Um bacalhau à lagareiro

quarta-feira, agosto 29, 2007

Melancolía Me siento, a veces, triste como una tarde del otoño viejo; de saudades sin nombre, de penas melancólicas tan lleno... Mi pensamiento, entonces, vaga junto a las tumbas de los muertos y en torno a los cipreses y a los sauces que, abatidos, se inclinan... Y me acuerdo de historias tristes, sin poesía... Historias que tienen casi blancos mis cabellos. Manuel Machado* *poeta espanhol

terça-feira, agosto 28, 2007

In Memoriam Por que pairas? Por que insistes? Por que pairas se deixaste que te prendessem terrenas falsas tranquilidades? Por que negaste o que eras - nuvem íntegra, real. sobre as mentiras do mundo? Às vezes cantas em tudo. Mas é tão triste e tão tarde. Meu amor, porque vieste? Nunca tivera sabido como se nasce e se morre de repente ao mesmo tempo para sempre, ó arrastada humana deusa frustrada água irmã da minha sede luz de toda a claridade que só em ti neste mundo para mim era verdade. Alberto de Lacerda* *poeta moçambicano

segunda-feira, agosto 27, 2007

Escrito há 200 anos “Constitui um obstáculo ao estudo da filosofia, tão grande quanto a atitude raciocinante, a presunção - que não raciocina - das verdades feitas. O seu possuidor não acha preciso retornar sobre elas, mas as coloca no fundamento, e acredita que não só pode exprimi-las, mas também julgar e condenar por meio delas. [Vendo as coisas] por esse lado, é particularmente necessário fazer de novo do filosofar uma actividade séria. Para se ter qualquer ciência, arte, habilidade, ofício, prevalece a convicção da necessidade de um esforço complexo de aprender e de exercitar-se. De facto, se alguém tem olhos e dedos e recebe couro e instrumentos, nem por isso está em condições de fazer sapatos. Ao contrário, no que toca à filosofia, domina hoje o preconceito de que qualquer um sabe imediatamente filosofar e julgar a filosofia, pois tem para tanto padrão de medida na sua razão natural - como se não tivesse também em seu pé a medida do sapato.” Georg Wilhelm Friedrich Hegel* *filósofo alemão, nascido a 27 de Agosto de 1770 (Do prefácio à "Fenomenologia do Espírito" – 1807)

domingo, agosto 26, 2007

LAÇOS Cordas feitas de gritos Sons de sinos através da Europa Séculos enforcados Carris que amarrais nações Não somos mais que dois ou três homens Livres de todas as peias Vamos dar-nos as mãos Violenta chuva que penteia os fumos Cordas Cordas tecidas Cabos submarinos Torres de Babel transformadas em pontes Aranhas-Pontífices Todos os apaixonados que um só laço enlaçou Outros laços mais firmes Brancas estrias de luz Cordas e Concórdia Escrevo apenas para vos celebrar Ó sentido ó sentidos caros Inimigos do recordar Inimigos do desejar Inimigos da saudade Inimigos das lágrimas Inimigos de tudo o que eu amo ainda Guillaume Apollinaire (Tradução de Jorge de Sena)

sábado, agosto 25, 2007

Fragmentos da noite A Jair Meira, amigo A lua que de longe no caminho Alumiava a sombra dos meus passos Dividindo o silêncio dos compassos Nas canções de viola e cavaquinho E zonzo - aquela voz pelo caminho Prendia a grande noite num abraço - A noite que fingia de cansaço Passando vaga - derramando vinho Acima da cabeça ouvia os astros E via dentre os anjos uns penhascos De nuvens - um tremor de desvario E depois da ilusão na madrugada Meu rosto se desfez - fez-se de lágrimas - Era a vida - E corria como um rio Adelmo Oliveira* *poeta baiano

sexta-feira, agosto 24, 2007

Sortimento de Gorras ...
Se temos Deputados, Senadores, Bons Ministros, e outros chuchadores; Que se aferram às tetas da Nação Com mais sanha que o Tigre, ou que o Leão; Se já temos calçados mac-lama, Novidade que esfalfa a voz da Fama, Blasonando as gazetas que há progresso, Quando tudo caminha p’ro regresso: Não te espantes, ó Leitor, da pepineira, Pois que tudo no Brasil é chuchadeira! ... Se faz oposição o Deputado, Com discurso medonho, enfarruscado; E pilhada a maminha da lambança, Discrepa do papel, e faz mudança; Se esperto capadócio ou maganão, Alcança de um jornal a redação, E com quanto não passe de um birbante, Vai fisgando o metal aurissonante: Não te espantes, ó Leitor, da pepineira, Pois que tudo no Brasil é chuchadeira! ... Se a Justiça, por ter olhos vendados, É vendida, por certos Magistrados, Que o pudor aferrando na gaveta, Sustentam que o Direito é pura peta; E se os altos poderes sociais, Toleram estas cenas imorais; Se não mente o rifão, já mui sabido: Ladrão que muito furta é protegido - É que o sábio, no Brasil, só quer lambança, Onde possa empantufar a larga pança! Luís da Gama* *poeta paulista falecido a 24 de Agosto de 1882 Esta sátira tem cerca de 150, mas mantém toda a sua actualidade, quer do lado de lá quer do lado de cá do Atlântico. Pelo sua extenção, deixo 3 estrofes como aperitivo. O sátira completa está no primeiro comentário.
Aço e Flor Quem nunca viu que a flor, a faca e a fera tanto fez como tanto faz, e a forte flor que a faca faz na fraca carne, um pouco menos, um pouco mais, quem nunca viu a ternura que vai no fio da lâmina samurai, esse, nunca vai ser capaz. Paulo Leminsky* *poeta paranaense

quinta-feira, agosto 23, 2007

In Memoriam The Ballad Of Sacco And Vanzetti*, Part Two Father, yes, I am a prisoner Fear not to relay my crime The crime is loving the forsaken Only silence is shame And now I'll tell you what's against us An art that's lived for centuries Go through the years and you will find What's blackened all of history Against us is the law With its immensity of strength and power Against us is the law! Police know how to make a man A guilty or an innocent Against us is the power of police! The shameless lies that men have told Will ever more be paid in gold Against us is the power of the gold! Against us is racial hatred And the simple fact that we are poor My father dear, I am a prisoner Don't be ashamed to tell my crime The crime of love and brotherhood And only silence is shame With me I have my love, my innocence, The workers, and the poor For all of this I'm safe and strong And hope is mine Rebellion, revolution don't need dollars They need this instead Imagination, suffering, light and love And care for every human being You never steal, you never kill You are a part of hope and life The revolution goes from man to man And heart to heart And I sense when I look at the stars That we are children of life Death is small Joan Baez/Ennio Morricone Canta Dulce Pontes *Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti eram dois imigrantes italianos, anarquistas e combatentes pelos direitos cívicos, que foram assassinados na cadeira eléctrica em 23 de Agosto de 1927, por ordem do Governador do Massachusetts, acusados de um roubo milionário que não cometeram. Apesar dos fortes protestos, sobretudo na Europa mas também na América Latina, das escassas provas produzidas e da confissão do autor do roubo, que afirmou que os "assassinados" não estiveram envolvidos, a sua dupla condição de imigrantes e anarquistas e o medo das ideias socialistas e comunistas levaram à sua morte. 50 anos mais tarde, a 23 de Agosto de 1977, Michael Dukakis, Governador do Massachusetts, reabilitou-os simbolicamente.
Noite As casas fecham as pálpebras das janelas e dormem. Todos os rumores são postos em surdina, todas as luzes se apagam. Há um grande aparato de câmara funerária na paisagem do mundo. Os homens ficam rígidos, tomam a posição horizontal e ensaiam o próprio cadáver. Cada leito é a maquete de um túmulo. Cada sono em ensaio de morte. No cemitério da treva tudo morre provisoriamente. Menotti Del Picchia* *poeta ítalo-brasileiro

quarta-feira, agosto 22, 2007

Cálida voz... Cálida voz despierta en tu dulzura, tierno temblor en tu quietud florece, y una experiencia virgen que se ofrece con el asombro de su nieve pura. Donde tu cuerpo anuncia sombra oscura la claridad más viva resplandece, y su milagro recogido acrece toda la fe que mi dolor apura. Porque siempre detrás de tu mirada reina la sombra, y misteriosa impera tu altiva convicción de ser amada. ¿Cómo soñar tu gracia verdadera si estás en mi ilusión acompañada por una oscuridad que no quisiera? Luis Felipe Vivanco* *no 1º centenário do nascimento

terça-feira, agosto 21, 2007

Inventário Um dente d'ouro a rir dos panfletos Um marido afinal ignorante Dois corvos mesmo muito pretos Um polícia que diz que garante A costureira muito desgraçada Uma máquina infernal de fazer fumo Um professor que não sabe quase nada Um colossalmente bom aluno Um revolver já desiludido Uma criança doida de alegria Um imenso tempo perdido Um adepto da simetria Um conde que cora ao ser condecorado Um homem que ri de tristeza Um amante perdido encontrado Um gafanhoto chamado surpresa O desertor cantando no coreto Um malandrão que vem pé-ante-pé Um senhor vestidíssimo de preto Um organista que perde a fé Um sujeito enganando os amorosos Um cachimbo cantando a marselhesa Dois detidos de facto perigosos Um instantinho de beleza Um octogenário divertido Um menino coleccionando estampas Um congressista que diz Eu não prossigo Uma velha que morre a páginas tantas Alexandre O'Neill

segunda-feira, agosto 20, 2007

Serenidade Nunca de mim se ouviu um só protesto de maldição, de cólera aturdida, sequer uma palavra, ou mesmo um gesto de malquerer a quem mais quis na vida. Arrasto como a um fardo, a alma ferida, e a dor que me crucia, manifesto, sem jamais inculpar de fementida, aquela que em meu sonho amo, e requesto. Em perdendo-a, perdi toda a alegria do coração que em mágoas apunhalo. Perdi a luz!... Fechou-se o sol que eu via!... Tudo abateu com a queda desse amor, tão forte, que ainda sinto o seu abalo, tão grande, que ainda escuto o seu fragor. Adelmar Tavares* *Poeta brasileiro

domingo, agosto 19, 2007

MEMENTO Cuando yo me muera, enterradme con mi guitarra bajo la arena. Cuando yo me muera, entre los naranjos y la hierbabuena. Cuando yo me muera, enterradme si queréis en una veleta. ¡Cuando yo me muera! Federico García Lorca* *assassinado, com um tiro na nuca, pelas tropas de Franco, em 19/08/1936

sábado, agosto 18, 2007

Dia As galinhas com susto abrem o bico e param daquele jeito imóvel - ia dizer imoral - as barbelas e as cristas envermelhadas, só as artérias palpitando no pescoço. Uma mulher espantada com sexo: mas gostando muito. Adélia Prado* Poetisa brasileira

sexta-feira, agosto 17, 2007

A verdade dividida A porta da verdade estava aberta mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só conseguia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia os seus fogos. Era dividida em duas metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era perfeitamente bela. E era preciso optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. Carlos Drummond de Andrade* *no 20º aniversário da sua morte

quinta-feira, agosto 16, 2007

84 anos

84 anos, que o grande Millôr Fernandes completa hoje, perfazem uma bonita idade. Que continue por muitos anos a acicatar-nos com o seu humor corrosivo.


















Última Vontade

Enterrem meu corpo em qualquer lugar.
Que não seja, porém, um cemitério.
De preferência, mata;
Na Gávea, na Tijuca, em Jacarepaguá.
Na tumba, em letras fundas,
Que o tempo não destrua,
Meu nome gravado claramente.
De modo que, um dia,
Um casal desgarrado
Em busca de sossego
Ou de saciedade solitária,
Me descubra entre folhas,
Detritos vegetais,
Cheiros de bichos mortos
(Como eu).
E, como uma longa árvore desgalhada
Levantou um pouco a laje do meu túmulo
Com a raiz poderosa,
Haja a vaga impressão
De que não estou na morada.

Não sairei, prometo.
Estarei fenecendo normalmente
Em meu canteiro final.
E o casal repetirá meu nome,
Sem saber quem eu fui,
E se irá embora,
Preso à angústia infinita
Do ser e do não ser.
Sol e chuva ocasionais,
Estes sim, imortais.
Até que um dia, de mim caia a semente
De onde há-de brotar a flor
Que eu peço que se chame
Papáverum Millôr

Millôr Fernandes*

quarta-feira, agosto 15, 2007

CUANDO VA A SER LA NOCHE Clavan su presencia palpitante sobre un oro cansado de ceniza, pájaros oscuros que se mecen en el dorso del agua estremecida. Silencios sus gargantas amontonan, inertes van las alas en sus flancos. Ni ojos que los miren ni una frente que les piense. Sólo pájaros. La hora está en su fin. Todo se acaba o todo va a empezar... Si se supiera que fin y que principio son lo mismo acaso este presente nos cediera la almendra de su luz, nos entregara la pulpa del saber a qué vinimos; si somos elegidos de otros mundos o somos sus esclavos, con destino de darnos en sustento de su vida. El oro es una ausencia, la ceniza responde al acoso infatigable... Lo eterno se concentra en su manida. Carmen Conde* (9.XII.75, Madrid. "W".) *poetisa espanhola - no 1º centenário do seu nascimento

terça-feira, agosto 14, 2007

Nada é impossível de mudar Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar. Bertolt Brecht (no 51º aniversário da sua morte)

segunda-feira, agosto 13, 2007

Transubstanciação De teu sepulto corpo tão amado, raízes sorvem água e minerais. Gerânios, trevos, rosas, margaridas, de teu aroma são memoriais. Abelhas polinizam, beija-flores se evolam de mandalas vegetais. E as borboletas trocam, no ar revolto, carinho por carinho: o eterno cio. O cemitério traz teu corpo à vida, molhado por meu pranto tão bravio, soluço pertinaz, a reciclar-te em asa, em pólen, em verde compadrio. Adelaide Lessa* *Poetisa brasileira

sábado, agosto 11, 2007

Soneto do amor extinto Pior do que lembrar um bom passado perdido embora, porém bem vivido, é pensar tão-somente o quanto agora a vida já perdeu todo sentido. Pior que o sonho antigo e lisonjeiro é o medo do presente assim vazio daquela boa saudade agora ausente e do desejo que míngua a cada dia. É tão difícil falar do que não fala e emudeceu por trás da própria vida toda feita penumbra do que cala sem revolver feridas já fechadas sem reabrir as velhas cicatrizes que no lugar de sangue vertem nada. Adelaide Amorim* *Poetisa carioca

sexta-feira, agosto 10, 2007

The believer





















"I am driven with a mission from God. God would tell me, 'George go and fight these terrorists in Afghanistan'. And I did. And then God would tell me 'George, go and end the tyranny in Iraq'. And I did. "
Sharm el-Sheikh August 2003.

"I trust God speaks through me. Without that, I couldn't do my job."
Statement made during campaign visit to Amish community, Lancaster County, Pennsylvania, Jul. 9, 2004
Uma casa uma casa para mim seria o suficiente me basta o espaço de quatro paredes onde pudesse ser eu mesmo o tempo todo e a verdade fosse a única religião um lugar onde não me sentisse um estrangeiro um alienígena um alienado um exilado do próprio chão um refúgio onde estivesse a salvaguarda sem salvo condutos passaportes documentos pessoais hábeas corpus uma embaixada pessoal a salvo sob a proteção da ONU das leis internacionais da Convenção de Genebra da Declaração Universal dos Direitos do Homem onde um homem e uma mulher pudessem ser amantes sem pudores sem dores sem culpas sem desculpas sem cobranças de nenhuma espécie Edson Bueno de Camargo* *poeta paulista
Ao Rio Lima Meu pátrio Lima, saudoso e brando, Como não sentirá quem Amor sente, Que partes deste vale descontente, Donde também me parte suspirando? Se tu, que livre vás, vás murmurando, Que farei eu, cativo, estando ausente? Onde descansarei de dor presente, Que tu descansarás no mar entrando? Se te não queres consolar comigo, Ou pede ao Céu que nossa dor nos cure, Ou que trespasse em mim tua tristeza: Eu só por ambos chore, eu só murmure, Que d'um fado cruel o curso sigo, Não tu, que segues tua natureza. Diogo Bernardes* *"poeta do Lima"

quinta-feira, agosto 09, 2007

Onde porei meus olhos que não veja Onde porei meus olhos que não veja A causa, donde nasce meu tormento? A que parte irei co pensamento Que para descansar parte me seja? Já sei como s'engana quem deseja, Em vão amor firme contentamento, De que, nos gostos seus, que são de vento, Sempre falta seu bem, seu mal sobeja. Mas inda, sobre claro desengano, Assim me traz est'alma sogigada, Que dele está pendendo o meu desejo; E vou de dia em dia, de ano em ano, Após um não sei quê, após um nada, Que, quanto mais me chego, menos vejo. Diogo Bernardes* *conhecido como "poeta do Lima"
Pálida e Loira Morreu. Deitada num caixão estreito, pálida e loira, muito loira e fria, o seu lábio tristíssimo sorria como num sonho virginal desfeito. Lírio que murcha ao despontar do dia, foi descansar no derradeiro leito, as mãos de neve erguidas, sobre o peito, pálida e loira, muito loira e fria. Tinha a cor da raínha das baladas e das monjas antigas maceradas no pequenino esquife em que dormia. Levou-a a morte em sua garra adunca, e eu nunca mais pude esquecê-la, nunca! pálida e loira, muito loira e fria. António Feijó* *Poeta limiano

quarta-feira, agosto 08, 2007

Poema natural Abro os olhos, não vi nada Fecho os olhos, já vi tudo. O meu mundo é muito grande E tudo que penso acontece. Aquela nuvem lá em cima? Eu estou lá, Ela sou eu. Ontem com aquele calor Eu subi, me condensei E, se o calor aumentar, choverá e cairei. Abro os olhos, vejo um mar, Fecho os olhos e já sei. Aquela alga boiando, à procura de uma pedra? Eu estou lá, Ela sou eu. Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei. Quando a maré baixar, na areia secarei, Mais tarde em pó tornarei. Abro os olhos novamente E vejo a grande montanha, Fecho os olhos e comento: Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo, Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento? Eu estou lá, Ela sou eu. Adalgisa Nery* (Poemas - 1937) *Poetisa carioca

Janela do Passado Debruçado na janela do passado, Ao longe, distingui longos caminhos, Repletos de cardos e de espinhos, Em fileiras de um lado e de outro lado! Lembrei-me de mim mesmo, hoje isolado, Nos lugares desertos e mesquinhos, Qual ave a cantar fora dos ninhos, Num gorjeio saudoso e sufocado... Se a criancinha encosta-se ao peito, Que sorrindo ou chorando, a sorte escrava, Não me permite aconchegá-la ao peito!... Espelho sou de luz amortecida; Foge de mim quem outrora me abraçava, É uma vida sem vida, a minha vida!... Adail Coelho Maia* *Poeta brasileiro

terça-feira, agosto 07, 2007

Pétalas pétalas despudoradas imantadas de dor circulam em torno de mim com seu odor que me aquece o sangue persigo-as e elas se fecham em um botão hermético descanso e elas se abrem e sorriem com suas faces coloridas trocam segredos troçam de mim ameaço-as e elas mudam de tons e formatos e se agrupam como folhas espinhentas pétalas formosas sedosas ganham o espaço e formam mil arcos que me indicam o caminho do fim Abilio Terra Júnior* *Poeta mineiro
Alegoria Em vão busco acender um diálogo contigo: a alma sem tom da tua boca de água e vento despede cinza, névoa e tempo no que digo, devolve ao chão o meu mais longo pensamento, e entre cactos estira esse deserto ambíguo que vem da tua altura ao vale onde me ausento, procurando o teu verbo. O silêncio, investigo-o, e ouço o naufrágio, o vácuo e o deperecimento. Sonho: desces a mim de um céu de algas e rosas, falas às minhas mãos vozes vertiginosas, e palavras de flor no teu cabelo enastro. Desperto: pairas ainda em silêncio e infinita: meu ser horizontal chora treva e medita tua distância, teu fulgor, teu ritmo de astro. Abgar Renault* *Poeta mineiro