sábado, abril 30, 2011


Real casório
















Um enviado da RTP a Londres afirmou perante a câmara que um casamento daqueles tinha exigido um grande número de preservativos. Parece ter sido um bom negócio para o autor das embalagens com os rostos dos noivos.

Em torno da minha baía

Aqui, na areia,
Sentada à beira do cais da minha baía
do cais simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrentes
sobre o cais desmantelado,
caindo em ruínas
eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical
desta terra de África
à beira do cais a desfazer-se em ruínas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num vôo magistral em torno do mundo
desenhando na areia
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na mais bela de todas as lições:

                                               HUMANIDADE

Alda Graça

(Alda Neves da Graça do Espírito Santo, nasceu a 30 de Abril de 1926, em São Tomé) 

sexta-feira, abril 29, 2011


Plano

Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos, que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.


(Nuno Júdice nasceu a 29 de Abril de 1949)

Romance do Homem da Boca Fechada

- Quem é esse homem sombrio
Duro rosto, claro olhar,
Que cerra os dentes e a boca
Como quem não quer falar?
- Esse é o Jaime Rebelo,
Pescador, homem do mar,
Se quisesse abrir a boca,
Tinha muito que contar.

Ora ouvireis, camaradas,
Uma história de pasmar.

Passava já de ano e dia
E outro vinha de passar,
E o Rebelo não cansava
De dar guerra ao Salazar.
De dia tinha o mar alto,
De noite, luta bravia,
Pois só ama a Liberdade,
Quem dá guerra à tirania.
Passava já de ano e dia...
Mas um dia, por traição,
Caiu nas mãos dos esbirros
E foi levado à prisão.

Algemas de aço nos pulsos,
Vá de insultos ao entrar,
Palavra puxa palavra,
Começaram de falar
- Quanto sabes, seja a bem,
Seja a mal, hás de contá-lo,
- Não sou traidor, nem perjuro;
Sou homem de fé: não falo!
- Fala: ou terás o degredo,
Ou morte a fio de espada.
- Mais vale morrer com honra,
Do que vida desonrada!

- A ver se falas ou não,
Quando posto na tortura.
- Que importam duros tormentos,
Quando a vontade é mais dura?!

Geme o peso atado ao potro
Já tinha o corpo a sangrar,
Já tinha os membros torcidos
E os tormentos a apertar,
Então o Jaime Rebelo,
Louco de dor, a arquejar,
Juntou as últimas forças
Para não ter que falar.
- Antes que fale emudeça! -
Pôs-se a gritar com voz rouca,
E, cerce, duma dentada,
Cortou a língua na boca.

A turba vil dos esbirros
Ficou na frente, assombrada,
Já da boca não saia
Mais que espuma ensanguentada!

Salazar, cuidas que o Povo
Te suporta, quando cala?
Ninguém te condena mais
Que aquela boca sem fala!

Fantasma da sua dor,
Ainda hoje custa a vê-lo;
A angústia daquelas horas
Não deixa o Jaime Rebelo.
Pescador que se fez homem
Ao vento livre do Mar,
Traz sempre aquela visão
Na sombra dura do olhar,
Sempre de boca apertada,
Como quem não quer falar.


(Jaime Cortesão nasceu a 29 de Abril de 1884 e faleceu a 14 de Agosto de 1960)

quinta-feira, abril 28, 2011


Horas Mortas

Breve momento após comprido dia
De incômodos, de penas, de cansaço
Inda o corpo a sentir quebrado e lasso,
Posso a ti me entregar, doce Poesia.

Desta janela aberta, à luz tardia
Do luar em cheio a clarear no espaço,
Vejo-te vir, ouço-te o leve passo
Na transparência azul da noite fria.

Chegas. O ósculo teu me vivifica
Mas é tão tarde! Rápido flutuas
Tornando logo à etérea imensidade;

E na mesa em que escrevo apenas fica
Sobre o papel - rastro das asas tuas,
Um verso, um pensamento, uma saudade.


(Antônio Mariano de Oliveira nasceu a 28 de Abril de 1857)

quarta-feira, abril 27, 2011


A Moeda

Mendigo noturno,
não foi inútil
tua caminhada.

De madrugada,
exausto,
te atiras ao catre.

Mas, no fundo do tua bolsa,
se aninha,
moeda cintilante,
o poema.


(poeta paulista nascido a 27 de Abril de 1921)

terça-feira, abril 26, 2011


Extravio

Devia a vida ser só isso,
O vinho, o pão, o som da chama.
Sapos no tanque. O olhar mortiço
Do mocho. O luar crivando a cama.

Mãos de mulher cerrando a fresta
Onde entra, como a morte, a bruma.
Mas nos perdemos na floresta
Onde não há árvore nenhuma.


(poeta carioca nascido a 26 de Abril de 1963)

Ápice

O raio de sol da tarde
Que uma janela perdida
Reflectiu
Num instante indiferente -
Arde,
Numa lembrança esvaída,
À minha memória de hoje
Subitamente... 

Seu efémero arrepio
Zig-zagueia, ondula, foge,
Pela minha retentiva...
- E não poder adivinhar
Por que mistério se me evoca
Esta ideia fugitiva,
Tão débil que mal me toca!...

- Ah, não sei por quê, mas certamente
Aquele raio cadente
Alguma coisa foi na minha sorte
Que a sua projecção atravessou... 

Tanto segredo no destino de uma vida...
É como a ideia de Norte,
Preconcebida,
Que sempre me acompanhou...


(Mário de Sá-Carneiro faleceu a 26 de Abril de 1916)

segunda-feira, abril 25, 2011


Bandeira

Secreto cravo
guardas
no teu ventre

     desde Abril

Com a força do feto
e da flor
ao mesmo tempo

Cravo de brandura
meigo
e lento

Maria Teresa Horta

Traz Outro Amigo Também


Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também

Em terras
Em todas as fronteiras
Seja bem vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também

Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também

domingo, abril 24, 2011


Dia poético

Que lindo dia
De poesia
Se pôs!
A manhã baça,
O jornal carrancudo,
E, de repente, tudo
Cheio de luz e graça!

E que não há milagres!
Há, mas são destes, que não provam nada…

É uma pena
Que a nossa alma seja tão pequena,
Ou já esteja ocupada.

Miguel Torga
Feliz Páscoa!


sábado, abril 23, 2011

O nosso Calvário - II


Mulher Proletária

Mulher proletária - única fábrica
que o operário tem, (fabrica filhos)
tu
na tua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês.

Mulher proletária,
o operário, teu proprietário
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário das máquinas burguesas
salvar o teu proprietário.


(Jorge Mateus de Lima nasceu em Alagoas a 23 de Abril de 1893)

sexta-feira, abril 22, 2011

O nosso Calvário



Canções do rosário

À irmã

Para onde vais será outono e tarde,
Veado azul que sob árvores soa,
Solitário lago na tarde.

Baixo o voo dos pássaros soa,
Sobre teus olhos a melancolia dos arcos,
Teu leve sorriso soa.

Das tuas pálpebras Deus fez arcos.
Estrelas procuram à noite, filha de sexta-feira santa,
Na tua fronte, os arcos.


(Tradução: Cláudia Cavalcante)

quinta-feira, abril 21, 2011

É só esperar!



Lobos? São muitos.

Lobos? São muitos.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua
Aquietá-los.

Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida
Na palavra escrita.

Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.

Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro.
Se nas coisas que digo
Acreditares.


(poetisa paulista nascida a 21 de Abril de 1930)

quarta-feira, abril 20, 2011

As vozes dos donos



Quem quer que tu sejas

Quem quer que sejas tu, que neste abrigo
Vieste em hora mansa hoje parar,
Feliz! Vens encontrar aqui contigo
Os tesouros que andaste a procurar.

Vens encontrar, sob o silêncio amigo,
A paz do ouvido e a glória do olhar.
E até, quem sabe? Aquele beijo antigo
Que há muito tempo não sabias dar.

Vens encontrar, (é tarde? Não importa),
Um bem que passou à tua porta.
Um grande amor, nem tu soubeste a quem.

E vens, (tanta riqueza em toda a parte),
Vens a ti mesmo, atónito, encontrar-te.
És um poeta, e nunca o viste bem.


(Joaquim Nunes Claro nasceu a 20 de Maio de 1878)

terça-feira, abril 19, 2011

Eles já "andem" aí
















Imagem: Mitchell Krog/ National Geographic

Noite Morta

Noite morta.
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.

Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.

No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras.
Sombras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.

O córrego chora.
A voz da noite...
(Não desta noite, mas de outra maior.)


(Manuel Bandeira nasceu a 19 de Abril de 1886)

segunda-feira, abril 18, 2011


Vazio

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo -
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo -
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.


(poeta carioca nascido a 18 de Abril de 1906)

domingo, abril 17, 2011


Palavra e música

A emoção soltou palavras
Atei umas às outras.
Se fez a canção.
A borboleta entre flores
Ventou pólen.
O amor preencheu
A corola de um ventre.
O poeta cantou
Operários uni-vos
Por um Estado social
de rosa e pão
Atei palavras com músicas.

Laci Osório

(poeta gaúcho nascido a 17 de Abril de 1911)

sábado, abril 16, 2011


Dor

A consciência perdida
         banida/ corrida
A boca calada
         entupida, aflita
A mão esfolada
         aberta, sangrando
e unhas descarnadas, partidas
         caídas no asfalto
manchado, marcado de sangue
O corpo cansado, curvado
         e o olhar no outro lado da rua
                   perdido
                            vazio


(poeta mineiro)

sexta-feira, abril 15, 2011


Coisas, Pequenas Coisas

Fazer das coisas fracas um poema.

Uma árvore está quieta,
murcha, desprezada.
Mas se o poeta a levanta pelos cabelos
e lhe sopra os dedos,
ela volta a empertigar-se, renovada.
E tu, que não sabias o segredo,
perdes a vaidade.
Fora de ti há o mundo
e nele há tudo
que em ti não cabe.

Homem, até o barro tem poesia!
Olha as coisas com humildade.


(Fernando Namora nasceu a 15 de Abril de 1919)

Escultura

A forma da fêmea integrou-se no corpo do macho,
Ambos uma só pedra
Onde ressaltam, invisíveis, separando-os
As duas almas supérfluas.


(poeta carioca falecido a 15 de Abril de 1991)

quinta-feira, abril 14, 2011


A Poesia

A poesia é pena sem castigo
ou remorso sem sombra de pecado,
um amor solidário a toda gente
que dói desde a medula de teus ossos.

Poesia é um cantinho solitário
ou espuma de existência transbordante,
uma pluma que beija o cotidiano
ou uma chaga de luz não sei de onde.

Poesia é o caminho para o exílio
com saudade da terra de partida
quanto mais perto a terra prometida,

mas é também o derradeiro auxílio
que nos torna melhores de repente
ao percebermos que ela é a semente.

Miguel Reale

(Miguel Reale faleceu em São Paulo a 14 de Abril de 2006)

quarta-feira, abril 13, 2011

O resgate desnecessário de Portugal

Robert M. Fishman não é um Professor qualquer da selecta University of Notre Dame, nos arredores de Chicago, pois, para além do seu vasto currículo de académico e autor (nos campos da democracia e da prática democrática, da política, da cultura e das consequências das desigualdades), está a preparar um novo livro sobre os percursos de Portugal e Espanha nas últimas décadas do século XX, depois de já ter escrito Democracy’s Voices, The Year of the Euro e Working-Class Organization and the Return to Democracy in Spain.

Publicou hoje um editorial no The New York Times onde demonstra que a entrada do FMI em Portugal se deve, exclusivamente, à actuação inqualificável das agências de notação. A peça merece ser lida na íntegra e com atenção (e, já agora, com abertura ideológica q.b., que o homem é estado-unidense), mas deixo aqui os parágrafos finais:



Somente os governos eleitos e os seus líderes podem garantir que esta crise não acaba por destruir o processo democrático. Até agora parecem ter deixado tudo entregue aos caprichos dos mercados de obrigações e das agências de notação financeira.

O Beijo

Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

Alexandre O'Neill

Dizem alguns media cá do burgo que hoje é o Dia Internacional do Beijo, embora a ONU o celebre a 6 de Julho. Como beijar é saudável, beijemos todos os dias!

terça-feira, abril 12, 2011


Esparsa

Há no meu peito uma porta
A bater continuamente;
Dentro a esperança jaz morta
E o coração jaz doente.

Em toda parte onde eu ando,
ouço este ruído infindo:
São as tristezas entrando
E as alegrias saindo


(poeta cearense nascido a 12 de Abril de 1882)

segunda-feira, abril 11, 2011

Quem dá mais?


















Nobre é a salsicha
Que você vai adorar
É a salsicha nobre
P'ra no leilão arrematar!

Condomínio

fui poema
fui pedido
fui ponto final
fui poeta
fui perdido
fui pecado original
fui poesia
fui perigo
fui pego, afinal
hoje moro numa gaiola
de três quartos, duas salas,
uma cozinha
e nenhum quintal. 

Jorge Luiz Stark Filho

(poeta paulista)

domingo, abril 10, 2011

Os salvadores



Meu Destino

Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida...
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida...


(poetisa brasileira falecida a 10 de Abril de 1985)

sábado, abril 09, 2011


Fala do Homem Nascido


Venho da terra assombrada
Do ventre da minha mãe.
Não pretendo roubar nada
Nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
Por me trazerem aqui.
Que eu nem sequer fui ouvido
No acto de que nasci.
Trago boca pra comer
E olhos pra desejar.
Tenho pressa de viver
Que a vida é água a correr.
Tenho pressa de viver
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo
Não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
Solta o pano rumo ao Norte.
Meu desejo é passaporte
Para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
Nem marés que não convenham.
Nem forças que me molestem
Correntes que me detenham.
Quero eu e a natureza
Que a natureza sou eu.
E as forças da natureza
Nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença
Mesmo morto hei-de passar.
Não há poder que me vença
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.

Venho da terra assombrada
Do ventre da minha mãe.
Não pretendo roubar nada
Nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui.
Que eu nem sequer fui ouvido
No acto de que nasci.

Adriano nasceu a 9 de Abril de 1942
A afiar os dentes


sexta-feira, abril 08, 2011


Sitiados

Esta cidade é a última cidade...
Os muros derruídos estão cercados:
Os canhões troam através dos mapas.

Nossa imagem, revelada pelas montras,
Passeia pelas ruas de mãos dadas...
Somos a última trincheira valiosa.

Unidos, trituramos os assaltos
E renovamos o cristal da esperança.

Os ruídos emolduram-te o sorriso,
Pura mensagem, prenhe de um futuro
Isolado de poeiras e de lágrimas.


(Egito Gonçalves nasceu em Matosinhos a 8 de Abril de 1920)

quinta-feira, abril 07, 2011

Bancos 1, Portugal 0*











Os nababos assistem ao jogo depois de comprarem o árbitro e combinarem o resultado. 


Encontro

Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá para o futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.
Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.
O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce à cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.
Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.
Para que me lastimas
se este é o meu auge?!
Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas
torres de marfim.
Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.


(Almada Negreiros nasceu em São Tomé a 7 de Abril de 1893)

quarta-feira, abril 06, 2011

O nosso triste fado

Banqueiros e Angela disseram.

Imagem: Pierre Verdy/AFP/Getty Images

O poder do burburinho

As palavras se prestam
a múltiplos fins

Cravo-as com força
na mudez do tempo

Umas, em ruínas
murmuram inaudíveis

Outras vão além e
à beira-chuva -

por brancura -
morrem comigo

Comigo morre
a tagarelice

Jorge Lúcio de Campos

( poeta carioca)

terça-feira, abril 05, 2011


Sísifo

A noite cai no dia
cai em si
é dia

O dia sai da noite
sai de si
é noite


(poeta brasileiro nascido a 5 de Abril de 1961)

segunda-feira, abril 04, 2011


Restos da água estagnada

Bebe
os restos da água estagnada
no estilhaçado copo
da memória errática.

Sacia
a sede do corpo antepassado
o olhar enfrentando a porta
do mundo que arquivaste

Abriste túneis para a perdição
com as luzes que te cegaram
Recorda agora
os dias devassos nas entranhas
em que tocaste o idioma
a vacilar sobre a vertigem da queda inicial

A caneta antiga
risca imagens no deserto
grafa
a palavra que será todas
cala
será todas e nenhuma
na solidão.

Jorge Henriques Bastos

(poeta paraense residente em Portugal)

domingo, abril 03, 2011


O poço

Amigos, silêncio.
Estou vendo o poço.

No fundo profundo eu me vejo
presente. Não é
cacimba de estrelas. Amigos, é o poço.

Apenas o poço. A vela na lama
como um dedo de fogo.
Ânsia de afogado,
suspiros em bolhas.
O susto no sono.
A sombra descendo sobre os aposentos,
o suor nos espelhos. A sombra
abafando a criança, a sombra fugindo.
A mão pesada sobre a boca torta,
o grito parado no rosto.
O copo d’água em goles trêmulos...

Amigos, silêncio.
Eu vejo o poço.

O vento da hora morta. Os avós sorrindo,
tão meigos sorrindo. E a morte tão viva!
(Minha mãe não esperou a guerra,
não sabe notícias do mundo, não responde).

A tosse acordando os irmãos,
e eu, pela madrugada, carregado nos ombros de meu pai.


(poeta mineiro nascido a 3 de Abril de 1911)

sábado, abril 02, 2011


Viajante lunar

Hoje vi a Lua boiando tranqüila, nas águas de uma lagoa.
Mergulhei os pés na Lua.
Várias Luas surgiram, em torno de mim,
foram crescendo, crescendo...
Fiquei cercado pelo luar.

Jorge Elias Neto

(poeta brasileiro)

sexta-feira, abril 01, 2011


Carreirismo


Mário Viegas faleceu a 1 de Abril de 1996

Arado

Não talho, o leve risco talha
                 a terra
e a garra vira a terra e leva
                 o barro
para a via, via de grama e pedra. 

Nem malho, a fina serra fende
                 o tronco
e a foice corta o tronco e mostra
                 a polpa
para o dia, dia de sol e faca.

Não fundo, o raso corte trilha
                 o solo
e o sulco sulca o solo e rompe
                 o lodo
para o rio, fio de água e musgo. 

Nem brando, o duro aço rasga
                 a carne
e o rasgo marca a face e deixa
                 a terra
para o cio, cio de fêmea e seiva.


(poeta paulista nascido a 1 de Abril de 1933)