How many times must a man look up, Before he can see the sky? How many ears must one man have, Before he can hear people cry? The answer, my friend, is blowin' in the wind. The answer is blowin' in the wind.
segunda-feira, outubro 06, 2008
Galinha de Cabidela
André em seu cubículo. Amontoando bituca na xícara. O bico de luz pendurado na ponta do fio como uma flor seca. O ar empestado de roupa usada a corromper-lhe o olfato. Precisa largar dos vícios, sair um pouco, dizia a mãe no mínimo uma vez por dia batendo na porta a resmungar não sei o que mais.
André num puxadinho dos fundos, adestrando a manada dos pensamentos no computador. A luz do monitor reflete um acinzentado de ectoplasma – seda japonesa, poemas de Rimbaud e muita tesão/ no momento deixo assim a decisão/guardo um pouco mais meu arco-íris e, rápido/ passo a chave no porão.
Ao perceber a pobreza das rimas teve vontade de torcer-lhe o pescoço. Um suspiro de inveja das letras do Renato Russo enquanto deletava o poema. Torcer o pescoço daquela safada, aquele pescocinho que tanto cobrira de beijos. Na curva da orelha o interruptor do desejo. Quantas vezes quis mergulhar no seu rabo e pronto, mas estava sempre atento aos prelúdios de Vanessa - diz como! - a criatividade masculina posta à prova para tornar mais prazerosas as brincadeiras de tortura - diz quando! - é verdade que se fartava, mas com todo carinho do mundo e agora... Aquela vagabunda! Pois, agora, iria sangrar seu gogó do mesmo jeito que a mãe fazia.
Espiou pela fresta da memória e viu-se agarrado à ponta do avental, lá em cima a boca materna tensa no dever de desnucar galinha. Depois, duas mãos com cheiro de pena e de titica dando um jeito em seu topete descomposto de poeira e estripulia, o sol fazendo brilhar o visgo vermelho escuro colhido na bacia, a vida se esvaindo ao compassado do estrebucho da franguinha. Cabidela. Quando guri, não lhe parecia cruel o prato. Pelo contrário. Ao terminá-lo, lambia.
Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Dependendo da causa, sacrifícios valem a pena. Deu um tempo na Legião e vazou pra rua. Em cada canto pode-se comprar um pouco de inspiração. A manha é ir fundo. De plantão no postinho da esquina, o mensageiro da coragem. Acomodou algumas gramas no bolso esquerdo do jeans, o que não tinha furo. Pensou na mãe doente ao subir de dois em dois os degraus do prédio da frente. Em cada casa sempre tem alguém de cama.
O ouvido de André colado na porta. - Você fica tão, tão pilhado...Caraca, que nariz enorme seu lobo - Vanessa ria, ria alto, a vadia. Os olhos esbugalhados de André na fechadura. Ela no troço do vizinho e o vizinho no teco. Ela. A galinha.
Tanta desenvoltura só quando se ama. O que entra pelas pupilas, arde feito lava incandescente. Com dois golpes certeiros risca a cena do mapa. Estátuas e cofres e paredes pintadas. Será que todo sangue fica preto à luz da lua? Depois, vai pela Venâncio até o amanhecer do dia. Quando perversidades dão lugar à moda nas vitrines.
Myrian Beck
Publicado no jornal digital VIAPOLÍTICA
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