quarta-feira, abril 23, 2008

Requiem por um povo desprezado Por uma daquelas coincidências em que a história não é fértil, William Shakespeare nasceu e faleceu no mesmo dia do mesmo mês. Com efeito, quando nasceu em 23 de Abril de 1564, vigorava em todo o mundo ocidental o calendário juliano; como o calendário gregoriano foi promulgado pelo Papa Gregório XIII em 1582, apenas alguns países católicos o adoptaram de imediato, enquanto a Grã-Bretanha e outros países protestantes começaram a utilizá-lo só no século XVIII. A Grã-Bretanha adoptou-o em 1752, pelo que o grande escritor faleceu em 23 de Abril de 1616, segundo o calendário então em vigor no seu país. Também por uma coincidência, mas desta vez uma daquelas em que os nossos políticos são useiros e vezeiros, o dia 23 de Abril de 2008 ficará na história cá do burgo como o dia do desprezo pela capacidade intelectual de todo um povo, inapto para entender os meandros de uma Constituição morta e ressuscitada com outro nome. E não venham dizer-me que a nossa Constituição também não foi referendada (e não podia sê-lo, pois é ela que consagra o estatuto do referendo), pois quem podia e quis votar em 1975 (e foram muitos mais do que actualmente é hábito), fizeram-no exclusivamente para escolher quem iria elaborar e aprovar a Constituição. Ser ou não ser respeitado, ser ou não ser ouvido, ser ou não ser um povo livre, ser ou não ser..., eis a questão: Ser ou não ser, eis a questão. Será mais nobre em espírito viver Sofrendo os golpes e as frechadas da afrontosa sorte Ou armas tomar contra um mar de penas. Dar-lhes um fim: morrer, dormir... Só isso e, por tal sono, dizer que acabaram Penas do coração e os milhões de choques naturais Herdados com a carne? Será final A desejar ardentemente... Morrer, dormir; Dormir, sonhar talvez... Mas há um contra, Pois nesse mortal sonho outros podem vir, Libertos já do mortal abraço da vida... Deve ser um intervalo... É o respeito Que de tal longa vida faz calamidade Pois quem pode suportar do tempo azorrague e chufas, Os erros do tirano, ultrajes do orgulho, As angústias de amor desprezado, a lei tardia, A insolência das repartições e o coice destinado Pelos inúteis aos meritórios pacientes? Para quê se pode aquietar-se, acomodar-se, Com um simples punhal? Quem suportará, Suando e resmungando, vida de fadigas Senão quem teme o horror de qualquer coisa após a morte, País desconhecido, a descobrir, cujas fronteiras Não há quem volte a atravessar e nos intriga E nos faz continuar a suportar os nossos males Em vez de fugir para outros que desconhecemos?... Assim a todos nos faz covardes nossa consciência, Assim o grito natural do ânimo mais resoluto Se afoga na pálida sombra do pensar E as empresas de mor peso e alto fim, Tal vendo mudam o seu rumo errando E nada conseguindo! Sossega agora... Ofélia gentil! Ninfa, em tuas orações Sejam sempre lembrados meus pecados. (Hamlet - tradução de José Blanc de Portugal, Editorial Presença, 3ª. ed., 1997)* *Pedido “emprestado” aqui

3 comentários:

f@ disse...

"Se afoga na pálida sombra do pensar
E as empresas de mor peso e alto fim,
Tal vendo mudam o seu rumo errando
E nada conseguindo!"....Lino peguei nas "tuas " palavras para talvez tb me afogar nelas... e porque gostei imenso nem vou divagar ,...beijinhos das nuvens

éme. disse...

:)
Curioso, sim!

Ser e não ser. Lembro-me que, lá por volta dos 15 anos, a Professora de Matemática, a propósito do Capítulo (maravilhoso tempo) de Lógica, nos afirmou com convicção: Um ente não pode ser e não-ser ao mesmo tempo...
Se tudo na experiência humana pudesse ser tão limpinhamente explicado...
Lembro-me de, mais ou menos por essa altura, mas aí com o Professor de Filosofia, a propósito de estar ali para nos desafiar a pensar e repensar o que julgávamos pensado (maravilhoso tempo), me ter saído a convicção: Deus é a entidade que mais precisa do Homem...
Magníficas certezas da adolescência!
Magnífico tempo em que também eu cria que Querer é Poder e a força de todos (juntos!) Isto muda!
E Isto era a vida e Isto a experiência de Ser, de estar, a cada dia, a aprender mais a Ser!

(Grata pelo momento, pelo salto para uma ideia, uma partida! Bom vento, aqui me trouxe :) )

jrd disse...

Este povo só não será desprezado quando for capaz de desprezar os que agora -e sempre- o desprezam.