sexta-feira, fevereiro 23, 2007

O rosto de uma utopia


No dia 23 de Fevereiro de 1987 faleceu, vítima de doença incurável (esclerose lateral amiotrófica), José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, o grande Zeca Afonso.

Foi, juntamente com Adriano Correia de Oliveira, um dos mentores da canção de intervenção em Portugal e um baladeiro/compositor notável, que soube conciliar a música popular portuguesa e os temas tradicionais com a palavra de protesto.

Recordo, comovidamente, aqueles dias dos finais da década de sessenta e princípios da de setenta em que, fechado, ouvia, uma vez e outra, o Zeca, O Adriano e o Luís Cília, num excelente leitor Geloso, de quatro pistas, em que uma única fita, que mão amiga fizera passar na fronteira, debaixo dos olhos da pide, tinha dezasseis horas de música.

Tendo-se tornado, com “Os vampiros”, um símbolo da resistência antifascista, o Zeca viu-se expulso do ensino, devido ao seu activismo contra o regime salazarista, subsistindo durante quase uma década através da música e das explicações.

Após Abril continua a cantar e a ter intervenção política, participando em numerosos “cantos livres” e editando vários álbuns, o último dos quais, “Galinhas do Mato”, em 1985, no qual, devido ao estado avançado da sua doença, já não consegue cantar a totalidade das canções.

No final de 1983 foi-lhe atribuída a Ordem da Liberdade, mas o Zeca, sempre coerente, recusou. Mais tarde, em 1994 foi feita nova tentativa a título póstumo, mas a sua mulher recusou, dizendo que, se o marido a não tinha aceitado em vida, não seria depois de morto que a iria receber.

Era bom que neste 20º aniversário da sua morte alguém se abalançasse à reedição da sua obra musical completa, para que a memória não se apague. Entretanto, deixo-vos com um dos seus sublimes poemas:

Utopia

Cidade

Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo mas irmão
Capital da alegria

Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
lança o teu
desafio

Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio este rumo esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?

(Na imagem, estátua do artista em Grândula)

6 comentários:

Anónimo disse...

Era muito bom que alguém se lembrasse de fazer uma colectanea das músicas de José Afonso após estes vinte anos do seu desaparecimento.Seria uma bela homenagem.
Abraço!

GMaciel disse...

Mais do que possa acrescentar, o título escolhido diz tudo. Parabéns pela escolha do mesmo.
Já agora, concordo com o Bernardo, sou daquelas pessoas que adorariam ter uma colectânea do Zeca em SACD, mas este país tem por norma deixar cair aqueles que se tornaram maiores do o próprio.
:(
abraço corisco

GMaciel disse...

Bernardo, informei-me e sei que há um CD duplo à venda na FNAC, desconheço qual a qualidade do mesmo porque ainda não o ouvi.
Vou testar e comprar - pena que não seja SACD, a qualidade seria muito melhor.
abraço

Anónimo disse...

Cara Gmaciel,
obrigado pela informação!
Abraço!

Anónimo disse...

Grande mestre... Cresci a ouvir as suas musicas (assim como as de Adriano)... Das melhores memorias que tenho da minha infancia, as interminaveis viagens para o Norte ao som de Zeca Afonso!

Ja vi varias colectanêas do Zeca à venda, mas não sei se alguma é assim excelente! Como cá em casa não falta nenhum dos seus albuns, torna-se dificil saber o que se vende por aí...

Mas vou a FNAC, pelo menos para a ver :)

lino disse...

Eu tenho quase toda a discografia do Zeca, com excepção dos EP's e de um álbum ou dois. Mas está tudo em vinil. Não sei de quem são os direitos, mas penso que, com um pouco de boa vontade de todos, conseguir-se-ia fazer, se não uma obra completa, pelo menos uma boa síntese numa dezena de CD's (à semelhança do Fernando Lopes-Graça). Em 1994, a Movieplay editou a obra competa do Adriano, numa caixinha com 7 CD's. Recordo-me de que o preço era de 15 contos, embora eu tenha conseguido adquirí-la por 12, no Centro Cultural da empresa onde trabalhava, dada a inexistência de margem de comercialização. Algo semelhante para o Zeca seria muito bom.