How many times must a man look up, Before he can see the sky? How many ears must one man have, Before he can hear people cry? The answer, my friend, is blowin' in the wind. The answer is blowin' in the wind.
sábado, setembro 15, 2007
As fases da lua
Muito cedo gravou-se em mim o sentimento do mundo. Meus olhos, dilatados pela fé, polidos pelo pós-hegelianismo de Marx, enxergaram a pirâmide social invertida. Consumiu-se minha juventude na embriaguez da utopia. Dela comungavam tantos companheiros e companheiras movidos pelo ardente desejo de morder a lua. Épico o nosso sonho de remover as travas da desvida. Singular aquela estóica dedicação, despojada de toda ambição pessoal, disposta a reinventar o mundo. Tínhamos a ousadia de romper parâmetros, despidos de moralismos e sensíveis à morte e vida Severina.
Lutávamos atentos aos clamores da Revolução de Outubro, à Longa Marcha de Mao ao cruzar as pontes de nossos corações, aos barbudos de Sierra Maestra que arrancavam baforadas de nosso alento juvenil, à vitória vietnamita selando-nos a certeza de que arrebataríamos o futuro. A lua seria o nosso troféu. Haveríamos de escalar suas montanhas e, lá em cima, desfraldar as bandeiras da socialização compulsória.
Os condenados da Terra arranchavam-se sob o caravansará de nossos ideais e, em breve, saberíamos conduzi-los aos mananciais onde correm leite e mel...
Caiu a noite, a lua se apagou, a nação, pisada pelas botas, abortou primícias e promessas. Trocamos a sala de aula pelo combate destemido, a caneta pelas armas, a garganta a ruminar convicta: "Venceremos!"
O terror do Leviatã se abateu sobre nós, os gritos de dor ecoaram das masmorras, vidas preciosas ceifadas no carrossel das sevícias, corpos despedaçados e desaparecidos nos labirintos do arbítrio. Ainda assim, a lua não sangrou.
Rumo à aurora, demos as mãos à multidão peregrina imbuída da devoção democrática. Nas periferias, o sorriso se abria, a consciência despertava, a mobilização florescia. Até que brilharam os raios fúlgidos e o esplendor da lua iluminou-nos a esperança.
Na oficina dos sonhos, forjamos ferramentas apropriadas ao parto do novo Brasil. A luta sindical consubstanciou-se em projeto partidário, a crença pastoral multiplicou-se em células comunitárias, os movimentos sociais emergiram como atores no palco dominado pelas sinistras máscaras dos que jamais conjugaram o verbo partilhar. Cuba, Nicarágua, El Salvador... o olhar impávido do Che... a irredutível teimosia de Gandhi... a sede de justiça dessedentada nas fontes límpidas da ética. Jamais seríamos como eles.
Em tempos de chuva, a água sobe rápido e inunda ruas, casas, cidades. Cegos pela miragem, não percebemos o lento e imbatível sopro do vento. A areia fétida, acumulada à soleira da porta, dia após dia subia mais um palmo. Galgamos degraus investidos de mandato popular, fomos entronizados na cozinha de Maquiavel, havia chegado a hora de quem tanto esperou acontecer. Intrépidos, alguns de nós decidiram cavalgar soberbos, convencidos de que o caminho mais curto entre sonho e realidade passa pelo mágico som do tilintar das moedas.
Por que não se aventurar pelas mesmas sendas trilhadas pelo inimigo, já que ele se perpetua com tanta força? Qual o segredo dos cabelos de Sansão? Os pobres caíram no olvido, a sedução do poder fez a lua arder em chamas. Ícaros impenitentes, não se deram conta de que as asas eram de barro.
A sofreguidão esvaziou projetos, a gula cobiçosa devorou quimeras. O pragmatismo acelerou a epifania dos avatares do poder. O conluio enlaçou históricos oponentes, adversários coligaram-se, e aliados foram defenestrados nessa massa informe que, destemperada de ética, alicerça o Leviatã.
Ainda assim, há quem, sob a lua apagada, não tema perseguir pontos de luz na escuridão. Por alguma parte trafega a lanterna de Diógenes. Triste, contudo, ver antigos companheiros na condição de réus de tramóias eleitoreiras e financeiras.
Hoje, a história, estuprada pelo neoliberalismo, engravida-se de sonhos medíocres. A utopia escorre pelo ralo. A lua mingua, a estrela já não refulge.
Dói em mim tanto desacerto. Os sonhos de uma geração trocados por um prato de lentilha. Aguardo, agora, a lua nova.
Frei Betto
Retirado daqui
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