terça-feira, julho 10, 2007

Orate, frates Há associações de ideias muito curiosas. Quando tive conhecimento do Motu Próprio Datae divulgado, quase secretamente, no passado sábado, por Bento XVI, recordei-me de uns célebres discursos de Cícero com os quais tomei contacto (e traduzi), há mais de 40 anos. Lucius Sergius Catilina foi um político romano, oriundo de família patrícia, mas pobre, que se revelou indivíduo de má índole. Depois de ter sido questor, pretor e governador de África, tentou ser nomeado cônsul. Como não o conseguiu, organizou uma conspiração para assassinar os dois cônsules designados (um dos quais Cícero). Descoberta a tramóia, Cícero interpelou Catilina em quatro discursos, cujo conjunto ficaria conhecido pelo nome de Catilinárias, que foram usadas durante muito tempo como uma das principais formas de ensino da arte de argumentar em todo o mundo. A primeira começa assim: Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? quam diu etiam furor iste tuus nos eludet? quem ad finem sese effrenata iactabit audacia? Nihilne te nocturnum praesidium Palati, nihil urbis vigiliae, nihil timor populi, nihil concursus bonorum omnium, nihil hic munitissimus habendi senatus locus, nihil horum ora voltusque moverunt? Patere tua consilia non sentis, constrictam iam horum omnium scientia teneri coniurationem tuam non vides? Quid proxima, quid superiore nocte egeris, ubi fueris, quos convocaveris, quid consilii ceperis, quem nostrum ignorare arbitraris? (ver uma tradução fiável aqui). Julgo que a minha associação de ideias se prende com o facto de, com ligeiras adaptações, entre as quais o nome do destinatário, as interpelações de Cícero a Catilina poderem hoje ser dirigidas a Bento XVI por qualquer crente de base sem pretensões de sofisticação teológica nem receio de ser excomungado, como é o meu caso. Com efeito, Bento XVI, depois de ter arranjado tantos sarilhos como Inquisidor Mor, tem sido pródigo em continuar a arranjá-los, como Papa; primeiro, foi numa lição dada numa cidade alemã, quando citou, a despropósito e "esquecendo" que um Papa não é um académico comum, um imperador Bizantino do século XIV sobre a violência do Islão, originando um coro de protestos em todos os países árabes; depois, foi num discurso na visita ao Brasil, onde afirmou que a cristianização levada pelos descobrimentos foi muito positiva, esquecendo os morticínios que tal cristianização provocou; agora, quer pôr os católicos a rezar pela conversão dos judeus. Pela minha parte e devido à familiaridade que tive com os géneros, até gosto de canto gregoriano e, sobretudo, das grandes peças religiosas polifónicas; mas podem ter cabimento integral em liturgias realizadas em línguas vernáculas. O que mais me entristece é que esta decisão representa um retrocesso enorme numa das maiores conquistas do Concílio Vaticano II, é uma cedência clara aos meios mais conservadores da Igreja, é uma concessão aos seguidores de Marcel Lefébvre (que Roma tenta reintegrar, enquanto saneia dezenas de teólogo(a) s que não prescindem de pensar pelas suas próprias cabeças) e tem todos os ingredientes para se tornar um factor de desunião. Se dúvidas houvesse, a carta que acompanha o Motu Próprio tirá-las-ia. Por entre um conjunto de generalidades, lá confessa que “trata-se de chegar a uma reconciliação interna no seio da igreja”. Com a Fraternidade Sacerdotal S. Pio X, está bom de ver. Duvido que o consiga, mesmo dizendo adeus ao Concílio Vaticano II, pois é disso mesmo que se trata. Basta ver os sítios da tal Fraternidade. Mas mesmo que o conseguisse, a que preço? A partir de agora, sujeitamo-nos a ver a cara do celebrante apenas quando ele se virar para a assembleia, decorrida mais de metade da liturgia, para dizer Orate, frates, que é como quem diz Orai, irmãos.

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