terça-feira, setembro 30, 2008

(Con)junções A gente se gosta A gente se goza A gente se encanta A gente se espanta A gente se beija, se cheira, se junta A gente se entende. A gente se ama? na cama no carro no banheiro no sofá A gente se deita, se cai, se levanta A gente se briga, discute, se irrita A gente se escreve, a gente se amansa se toca, se alisa A gente se brisa A gente se chove A gente se cobre, se ouro, se prata (a gente se lua ingrata) - vomita besteiras, escreve asneiras e pede desculpas - A gente se lua de novo E se perde, de novo, no imenso encantamento manso. Beatriz Galvão* *poetisa brasileira

segunda-feira, setembro 29, 2008

Confissões de uma viúva moça Há dois anos tomei uma resolução singular: fui residir em Petrópolis em pleno mês de Junho. Esta resolução abriu largo campo às conjecturas. Tu mesma nas cartas que me escreveste para aqui, deitaste o espírito a adivinhar e figuraste mil razões, cada qual mais absurda. A estas cartas, em que a tua solicitude traía a um tempo dois sentimentos, a afeição da amiga e a curiosidade de mulher, a essas cartas não respondi e nem podia responder. Não era oportuno abrir-te o meu coração nem desfiar-te a série de motivos que me arredou da Corte, onde as óperas do teatro Lírico, as tuas partidas e os serões familiares do primo Barros deviam distrair-me da recente viuvez. Esta circunstância de viuvez recente acreditavam muitos que fosse o único motivo da minha fuga. Era a versão menos equívoca. Deixei-a passar como todas as outras e conservei-me em Petrópolis. No centenário do falecimento de Machado de Assis, para saborear o seu gostoso conto Confissões de uma viúva moça.

domingo, setembro 28, 2008

Estupidez Um dos paradoxos dolorosos do nosso tempo reside no facto de serem os estúpidos os que têm a certeza, enquanto os que possuem imaginação e inteligência se debatem em dúvidas e indecisões. Bertrand Russell

sábado, setembro 27, 2008

O retrato nas paredes As casas como as pessoas guardam cicatrizes expostas no rosto do tempo. Às casas sempre voltamos nelas a vida anda por trás do que passou existem na existência indo embora. As casas onde morei para viver na afoitosa e lúdica adolescência abrem rugas na face branca das paredes. De dentro delas saltam sonhos que não querem envelhecer e o menino açoitando o vento nas curvas do rio que se arrasta na carne azul da paixão. Barros Pinho* *poeta brasileiro

sexta-feira, setembro 26, 2008

Faz bem....faz mal... Acho a maior graça. Tomate previne isso, cebola previne aquilo, chocolate faz bem, chocolate faz mal, um cálice diário de vinho não tem problema, qualquer gole de álcool é nocivo, tome água em abundância, mas não exagere... Diante desta profusão de descobertas, acho mais seguro não mudar de hábitos. Sei direitinho o que faz bem e o que faz mal pra minha saúde. Prazer faz muito bem. Dormir me deixa 0 km. Ler um bom livro faz-me sentir novo em folha. Viajar me deixa tenso antes de embarcar, mas depois rejuvenesço uns cinco anos. Viagens aéreas não me incham as pernas; incham-me o cérebro, volto cheio de idéias. Brigar me provoca arritmia cardíaca. Ver pessoas tendo acessos de estupidez me embrulha o estômago. Testemunhar gente jogando lata de cerveja pela janela do carro me faz perder toda a fé no ser humano. E telejornais... os médicos deveriam proibir - como doem! Caminhar faz bem, dançar faz bem, ficar em silêncio quando uma discussão está pegando fogo, faz muito bem! Você exercita o autocontrole e ainda acorda no outro dia sem se sentir arrependido de nada. Acordar de manhã arrependido do que disse ou do que fez ontem à noite é prejudicial à saúde! E passar o resto do dia sem coragem para pedir desculpas, pior ainda! Não pedir perdão pelas nossas mancadas dá câncer, não há tomate ou mussarela que previna. Ir ao cinema, conseguir um lugar central nas fileiras do fundo, não ter ninguém atrapalhando sua visão, nenhum celular tocando e o filme ser espetacular, uau! Cinema é melhor pra saúde do que pipoca! Conversa é melhor do que piada. Exercício é melhor do que cirurgia. Humor é melhor do que rancor. Amigos são melhores do que gente influente. Economia é melhor do que dívida. Pergunta é melhor do que dúvida. Sonhar é melhor do que nada! Luís Fernando Veríssimo* *no dia do 72º aniversário do autor

quinta-feira, setembro 25, 2008

Mãos No deserto da insônia a mão, triste, me acena nua de anéis e luvas. Dedos gesto de adeus anunciam o abandono da matéria efêmera. Dos campos do sono a mesma mão me chama cintilante de estrelas. Tento alçar-me da cama no encalço do convite mas a carne me amarra. E enquanto o corpo dura fico entre a dor da perda e o desejo do encontro. Astrid Cabral* *poetisa brasileira

quarta-feira, setembro 24, 2008

Vocação de rédea Deu um passo ágil e certeiro feito um bote, se não ficaria para trás. Foi a última a entrar no elevador. Cheio que nem compota. Foi a única a ficar de costas para a porta que, ao fechar, mergulhou-a ainda mais naquele caldo de ruídos e odores. O constrangimento da proximidade imposta disfarçada em olhares que passeiam pela ventilação no teto, pelas luzinhas dos botões que marcam os andares - térreo, por favor. Restava encarar o compacto grupo de frente. Vibra um celular. Parece uma cigarra aprisionada no bolso de alguém. É do homem que está com a gravata rubra, o cara alto com a gravata impecavelmente disposta sobre o peito. Vibra, de novo. Ele se espreme, pede licença - ela, pois não -, dá um passo a frente, tira o aparelho do bolso, atende. A distância, antes de um palmo e meio, fica nenhuma. O homem fala, ele fala discretamente, é verdade, mas não tira os olhos de mim, será? Claro, ele está falando com alguém e me encarando, mesmo sem eu devolver o olhar posso sentir, igual à avidez dos operários da construção civil que estendem um tapete de frases toscas enquanto se vai passando. Depende das oscilações hormonais, essas coisas arrepiam a alma ou a pele da gente. O homem da gravata rubra exposta sobre o tórax, distinto como diria minha avó, ali sussurrando com a boca encostada no aparelho “... a gente pode...” uma pausa mínima potencializa a próxima fala “...te pego depois ...” e foi dizendo outras coisas que não deu pra escutar bem... Nisso, uma bolinha de rimel colou minha pestana de cima na pestana de baixo fazendo-as grudar feito as asas de uma borboleta molhada. Com os dedos em pinça, rápido, pus a pálpebra no lugar, mas ao tentar voltar a mão - desculpa aí, gente, licença -, ao tentar relaxar o cotovelo, cadê espaço? os tornozelos buscando novos pontos de equilíbrio sobre o salto dez que acabou virando, e a mão? a mão teve que firmar-se e fez isso no tecido. Suave. Vermelho. Nele. Por vergonha ou desejo repentino quase me desfaço. Uma fisgada no peito enquanto a saliva desce meio areia na garganta. De repente, meus sonhos recorrentes de ser folha e voar entre os edifícios espionando performances que a madrugada esconde, atravessa que nem espada na mente. O homem sorriu e pôs o aparelho de volta no bolso interno do casaco. Com os dedos foi subindo da ponta mais alargada da gravata até o pescoço e ficou ali brincando com o nó, o exibido, com aquela gravata descarada, bem na minha frente, gostando de ser tocada, então é isso, um pano desses nasceu pra ser rédea, é isso o que ele quer, uma ou duas voltas bem firmes nas minhas mãos, prontas pra doma. Pois ela ergueu o queixo, decidida, e sustentou aquele olhar de baio. Desceu na sobreloja. De dois em dois degraus ganhou a rua. Oxigênio. Ao chegar em casa alisou a careca do marido, seu cão doméstico de unhas mal cortadas e patas mal acostumadas sobre a mesinha do centro. Uma coleção de latas de skol decorando o ambiente ao som do futebol. Tomou um valium e deitou quietinha, só esperando que lhe invadisse o torpor de folha perdida. Mas, naquela noite, sobrevoando a cidade num grande tapete púrpura, mergulhou ao encontro do crepúsculo que incendiava o Cais. Nos galpões do Porto, espremia-se uma multidão, alheia às chamas vertidas do cálice de Tanat que somente ela provara. Aterrissou, então, na Caldas Júnior, enrolada no tapete púrpura para arderem juntos no fogo que consumia os quartos do Grande Hotel. Pela manhã, rompeu o casulo de edredon. Renascida, feito borboleta. Myrian Beck Publicado no jornal digital VIAPOLÍTICA

terça-feira, setembro 23, 2008

Se não puderes ser um pinheiro, no topo de uma colina, Sê um arbusto no vale mas sê O melhor arbusto à margem do regato. Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore. Se não puderes ser uma ramo, sê um pouco de relva E dá alegria a algum caminho. Se não puderes ser uma estrada, Sê apenas uma senda, Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela. Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso... Mas sê o melhor no que quer que sejas. Pablo Neruda

segunda-feira, setembro 22, 2008

Vida madrasta A palavra "madrasta" vem do latim vulgar matrasta. Tem a ver com "mãe" (mater), mas no sentido de "mulher do pai", mãe que não é mãe, mulher que se tornou mãe "postiça" na ausência da mãe verdadeira. A madrasta existia quando a mãe da criança falecia. A madrasta surgia na vida de um órfão como segunda mãe. O mesmo com relação ao padrasto. Hoje, dado o número de separações conjugais, existem muitos órfãos com mães e pais vivos. A nova esposa é chamada de madrasta de maneira pouco apropriada. Outro expediente é chamar a madrasta de "tia", o padrasto de "tio", o que nada ajuda. Antigos provérbios pintam a imagem perversa: "Madrasta e enteada sempre andam em batalha", "madrasta, diabo arrasta", "madrasta, o nome lhe basta". Quando alguém quer se queixar da vida diz que a vida lhe foi madrasta. E existirá também a morte madrasta? No caso de padrasto, há um provérbio interessante: "Mais vale pai ruim do que bom padrasto". A noção é tão forte que virou adjetivo masculino, ampliando a idéia original: "mercado madrasto", "mundo madrasto", "futuro madrasto". Nas histórias que contamos aos nossos filhos, a madrasta é malvada, irascível, vingativa. A mulher má por definição, a gargalhada sádica ressoando nos ouvidos, a vontade de perseguir. As madrastas cruéis fazem dos contos infantis verdadeiras histórias de terror. A madrasta da Branca de Neve inveja a beleza da menina. Decide assassiná-la. A megera, para cúmulo do azar, é feiticeira e não tem um pingo de compaixão. Quando manda o caçador matar a menina no meio da floresta, exige que lhe traga como prova do trabalho realizado os pulmões e o fígado da vítima. Sua idéia é cozinhá-los e comê-los! A madrasta da Cinderela explora a força de trabalho da pobre enteada e não lhe permite conhecer novas oportunidades. Para completar o quadro, a madrasta tem duas filhas que humilham sistematicamente a Gata Borralheira. É preciso que outra figura, a madrinha, venha em auxílio com os poderes mágicos do amor. Madrinha também substitui a mãe ausente, mas é substituta do bem. Seria grande injustiça apresentar a madrasta como vilã de todas as histórias. Não é certamente um papel fácil. Requer generosidade. Generosidade significa gerar. Gerar um vínculo que não existia antes. Criar com a criança, com o jovem, com a jovem, uma relação de respeito... Para começar. Gabriel Perissé* *professor e escritor Publicado no jornal digital Correio da Cidadania

domingo, setembro 21, 2008

Medo de caminhão A mula do Zeca era muito boa mesmo, mas tinha uma coisa: não podia ver caminhão que empacava, tinha um baita medo de caminhão. Numa viagem de Santa Rita a Ventania, Zeca ia tranqüilo em sua mula, num caminho de cavalos e carros de bois. Numa certa altura ela empacou, Zeca correu a espora na sua virilha e nada, não saía do lugar. Zeca se irritou: - Que é isso... você só empaca quando vê caminhão e não tem caminhão nenhum nessa pastaria! Vamos lá – passava a espora na mula e ela nem se mexia, ficava bufando, de orelhas retesadas. E o Zeca conta o que tinha acontecido: - Apeei pra ver o que era, andei um pouco pelo caminho e vi um pedaço de jornal velho lá na frente. Peguei o jornal e descobri o que que era: a mula tinha visto lá de longe – vista boa danada! – uma fotografia dum caminhão no jornal! Ela só atravessou aquele pedaço depois que eu tirei o isqueiro do bolso e queimei o jornal! Mouzar Benedito Publicado no jornal digital VIAPOLÍTICA

sábado, setembro 20, 2008

Do Tempo No flanco das rochas a marca de carneiros emancipados O giro das cirandas travando a liberdade das esferas E na eclosão das uvas, mães do vinho a saudação telúrica dos pâmpanos As aranhas tecendo mandalas os relógios registrando ausências enquanto a mariposa adeja sem rumo tentando frustrar a arrogância dos ventos num incontido descaso do amanhã Cumprem-se as sentenças do Universo e o Tempo se traja de compromissos. Aymar Mendonça* *poeta brasileiro

sexta-feira, setembro 19, 2008

A realidade da ilha A costa estava debruada de palmeiras. Subiam erectas ou inclinadas, ou reclinadas contra a luz, e adejavam no ar a sua coma verde a uma altura de trinta metros. O terreno a seus pés era um talude coberto de uma ervagem áspera, retalhado a toda a largura pelas vicissitudes de troncos derrubados de mistura com cocos sorvados e rebentões de palmeira. Por trás de tudo isto havia a escuridão própria da floresta e a mancha branca da clareira. Rafael quedou-se, com uma das mãos apoiada num tronco pardo, e franziu mais uma vez os olhos contra a água rebrilhante. Lá fora, talvez a uma milha de distância, salseiros de espuma babujavam uma ilha de coral, e mais além o vasto mar era de um azul-ferrete. Dentro do arco irregular de coral, a lagoa era ainda como um lago das montanhas - azul de todos os matizes, verde-sombreado e púrpura. A praia entre o terraço de palmeiras e a água era uma fina aduela, aparentemente interminável, pois à esquerda de Rafael, as perspectivas do palmar, da praia e da água reduziam-se a um ponto de infinidade; e sempre, quase visível, havia o calor. Saltou do terraço. A areia era grossa sob os sapatos pretos e o calor vergastou-o. Deu-se conta do peso da roupa: num sacão, vigorosamente, descalçou os sapatos e arrancou as peúgas com a liga de elástico num só movimento. Em seguida subiu para o terraço, despiu a camisa e quedou-se no meio dos cocos em forma de caveira, com as sombras verdes das palmeiras e da floresta a deslizarem-lhe sobre a pele. Desapertou a fivela do cinto em feitio de serpente, tirou as calças e as cuecas e ficou ali, nu, a mirar a praia e a água faiscantes. Era já um rapazinho espigadote, doze anos e alguns meses, para ter perdido o estômago proeminente da infância, mas não tinha ainda a idade suficiente para a adolescência o ter tornado desajeitado. Poderia ver-se agora que talvez viesse a ser um pugilista, a julgar pela arca do peito e a largura dos ombros, mas havia uma suavidade na linha dos lábios e nos olhos que não prenunciava o demónio. Acariciava brandamente o tronco da palmeira e, forçado por fim a acreditar na realidade da ilha, tornou a rir deliciado e fez o pino. Pôs-se agilmente de pé, correu ao longo do areal, ajoelhou-se e atirou duplos punhados de areia contra o peito. Depois sentou-se e ficou a olhar para a água com os olhos brilhantes e exaltados. William Golding In “O Deus das Moscas” - Colecção Mil Folhas - 2002

quarta-feira, setembro 17, 2008

Contemplação de Apolo Que sou eu para a poesia? Um ser oblíquo a contemplar o cais, sem nunca ter partido? Uma voz rouca que já não canta; que já não grita contra a insensatez de uma existência louca? Um semideus; que se consome; que se consuma a cada verso; em cada verso; sem o menor sentido? Que sou eu para a Poesia; senão este ruflar de asas incendido nas palavras? João Carlos Taveira* *poeta brasileiro No dia do seu 61º aniversário

terça-feira, setembro 16, 2008

O vôo da garça pequena No final do dia abandonava a guarda. Encostava a arma no muro, limite entre a paisagem e o posto, para sacar a máquina escondida na mochila. Dava as costas para o pátio onde os detentos abasteciam-se de um pouco de luz, pitavam baganas gritando truco, coçavam o saco tramando fugas. Dava as costas ao portão por onde a esperança pouca das esposas circulava e firmando o fuzil entre os tijolos e a coxa – o calo do mingo latejando na botina – fotografava os restos do dia. O contorno alaranjado dos armazéns no cais. As embarcações talhando as águas em linhas paralelas afastarem-se sempre mais. Fotografava as ilhas. A densidade da vegetação escondendo os casebres e os casebres escondendo uma gente sem sustento. Sem consolo. Merda de vida. Foi há tanto tempo. Era moleque, ainda, quando a tia Cida entendeu por bem fazer negócio com a caçula. Três gurias, como é que eu faço? Vai tu que és a mais ajeitadinha, com essa pinta de atriz em cima da boca, esses tornozelos finos, diz que égua de tornozelo fino é boa de lida, e segurando-a pelas pontas dos dedos, óia que formosura, a fez girar em torno de si mesma. Vai, vai com o moço de chapéu branco, tens sorte, dono de tantos anéis, pode que seja de garantir futuro. Ela não disse sim. Nem disse não. Como de costume, obedeceu. Cravou os olhos no chão e desceu os cinco degraus que protegiam o barraco contra as cheias no quintal. Sentada no banco traseiro da caminhonete nem fez sinal, nenhum adeus, eu já tinha dezesseis anos, era o irmão mais velho, covarde, não mexeste um dedo pra impedir. Fotografava o rosa e o violeta contra o azul em degradê no céu. A ponte todinha rebordada de faróis. Nunca mais a vira. Nenhuma notícia. Em março ela completa 25 anos, se estiver viva... por que não evitaste a partida? Já não eras um rapaz? Um verme, isso sim... Daria qualquer coisa para reencontrá-la, poder sentar sob os eucaliptos e chupar laranja do céu, depois segurar firme sua mãozinha e correr até o trapiche, saltar sobre as águas, a garça pequena ensaiando o vôo, VOAR... De noite rir, baixinho / contra a luz da vela projetar sombras nas tábuas carcomidas / rir, apesar do frio que rompe as nossas peles desnutridas / rir, apesar da precocidade das feridas / rir, que rir é sina de criança mal nascida. De repente, tiros e gritaria devolvem-no ao presente. Parece que um dos detentos venceu o muro farpado e correu na direção do rio. Foge, por caridade, bate as asas pra bem longe do que te condena, volta pra casa! Deslizou as costas no muro, lentamente, até sentar sobre o cimento. Minha garça pequena. Dela guardo uma fotografia três por quatro: Atenção, olha o passarinho! Faltam estes dois dentes aqui na frente, mas se eu espremer um pouco a boca, assim, acho que ninguém percebe, né? Minha menina sem caninos. Beijou a imagem desgastada trancando de novo aquele tempo entre as dobras da carteira. Com os olhos apertados como quem reza por perdão, esperou a calmaria. Mais alguns minutos e haverá a troca da guarda. Um último registro: o diretor encarando-o, furioso. Close nas sobrancelhas de marandová. Myrian Beck Publicado no jornal digital VIAPOLÍTICA

segunda-feira, setembro 15, 2008

Tão sutilmente ... Tão sutilmente em tantos breves anos foram se trocando sobre os muros mais que desigualdades, semelhanças, que aos poucos dois são um, sem que no entanto deixem de ser plurais: talvez as asas de um só anjo, inseparáveis. Presenças, solidões que vão tecendo a vida, o filho que se faz, uma árvore plantada, o tempo gotejando do telhado. Beleza perseguida a cada hora, para que não baixe o pó de um cotidiano desencanto. Tão fielmente adaptam-se as almas destes corpos que uma em outra pode se trocar, sem que alguém de fora o percebesse nunca. Lya Luft* *poetisa e romancista brasileira

domingo, setembro 14, 2008

Visão, tempo e identidade No espaço de oito dias, perdi os óculos não sei onde, o relógio não sei quando e a carteira de identidade não sei por quê. Se poeta eu fosse, diria ter perdido a visão, o tempo e o meu próprio "eu". Como sou um "homem idiota", no sentido socrático da expressão, homem comum do qual só se pede a verdade, o certo seria providenciar uma segunda via da carteira de identidade, comprar outro relógio, mandar fazer outros óculos... Sem a visão, porém, deixei de ler e escrever. A linguagem escura me envolveu. Caverna sem fim, passagens estreitas, escorregão, queda, tropeço, queda. Como reencontrar a visão sem a visão necessária? A perda do tempo foi num minuto. As horas demoradas ou a década veloz, tudo parou de passar. Tudo não passa, não chega, não vem. O futuro não passa. O presente não se futuriza. O tempo não há. Sequer posso contemporizar... Como poderei agora reclamar do tempo, seja fugaz ou interminável? Tempo perdido, perco a noção do certo e do errado. Meus passatempos perdem sua função. Não há mais atrasos ou adiantamentos. Não preciso sofrer se o minuto de dor é longo, se a semana de prazer é num piscar de olhos... Sem tempo, esqueço a frase "estou sem tempo". O tempo se foi, sumiu, aquela algema no pulso esquerdo foi retirada sem eu perceber. A identidade era de 1978, rosto imberbe, seriedade adolescente. O que aconteceu comigo nesses últimos 30 anos? As idéias começam a ficar grisalhas. Trocaram de pele. Vou, no entanto, poupar meu tempo e buscar outra identidade. As impressões digitais são as mesmas. Mudaram as impressões mentais, são outras as tentações, as opiniões, as desilusões. Em algumas horas, ganhei novo tempo, nova identidade. Resta-me buscar nova visão. Hoje, em qualquer esquina, existem mil olhos à venda, pontos de vista ao alcance do bolso, horizontes bons e baratos. No começo, é difícil aceitar a nova identidade, essa outra visão, esse maldito... bendito tempo. Jamais serei o mesmo depois desses oito dias de liberdade, cegueira e anonimato. Identificado, de novo, sei que serei eu a dizer "eu", sem heterônimos a me ajudarem, sem pseudônimos a me protegerem, sem homônimos a me substituírem. De novo cronometrado, de novo correndo contra o tempo. De novo no caminho longo-curto. Correndo no túnel do tempo. Até o instante final. Gabriel Perissé* *professor e escritor Publicado no jornal digital Correio da Cidadania

sábado, setembro 13, 2008

O voo do pinhão O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Voltou a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, livrou-se da cela e pulou no espaço. Que pára-quedista! Precipitado tão de alto do pinheiro solitário, balançou-se um instante e ensaiou um voo oblíquo. A meio caminho volteou, rodopiou, viu as nuvens ao largo, a terra em baixo e, saracoteando a fralda, desceu em espiral. Poisou em cima duma fraga, ligeiro como um tira-olhos. Mas novo pé-de-vento atirou com ele para a banda, quase de escantilhão, e a aleta, tomando-se de imprevisto fôlego, arrebatou-o para mais longe. Foi cair numa mancheia de terra, removida de fresco pelos roçadores do mato, e ali permaneceu à espera que pancada de água ou calcanhar de homem o mergulhasse no solo, dado que um pombo bravo o não avistasse e engolisse. Aquilino Ribeiro In A Casa Grande de Romarigães - Círculo de Leitores - 1983

sexta-feira, setembro 12, 2008

Retrato de si "Tenho quarenta e seis anos, moreno, cabelos pretos, com meia dúzia de fios brancos, um metro e 74 centímetros, casado, com três filhas e um genro, 86 quilos bem pesados, muita saúde e muito medo de morrer. Não gosto de trabalhar, não fumo, durmo com muitos sonhos, e já escrevi 11 romances. Se chove, tenho saudades do sol, se faz calor, tenho saudades da chuva. Vou ao futebol, e sofro como um pobre diabo. Jogo tênis, pessimamente, e daria tudo para ver meu clube campeão de tudo. Sou homem de paixões violentas. Temo os poderes de Deus, e fui devoto de Nossa Senhora da Conceição. Enfim, literato da cabeça aos pés, amigo de meus amigos e capaz de tudo se me pisarem nos calos. Perco então a cabeça e fico ridículo. Não sou mau pagador. Se tenho, pago, mas se não tenho, não pago, e não perco o sono por isso. Afinal de contas, sou um homem como os outros. E Deus queira que assim continue." José Lins do Rego, escrevendo sobre si próprio em Dezembro de 1947

quinta-feira, setembro 11, 2008

Conservar a memória Há 35 anos Salvador Allende foi barbaramente assassinado a mando do torcionário Augusto Pinochet, o tal "democrata" elevado ao poder através de um golpe de estado patrocinado pela também "democrática" CIA. Perante a certeza da morte, deixou uma mensagem de coragem e esperança, consubstanciada nas suas últimas palavras transmitidas por rádio durante o cerco ao palácio de La Moneda: "Não vou renunciar. Colocado no caminho da História pagarei com a minha vida a lealdade do povo. E digo que tenho a certeza de que a semente que deixamos na consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser ceifada definitivamente. Eles têm a força, poderão submeter-nos, porém não deterão os processos sociais nem com crimes nem com a força. A história é nossa e é feita pelo povo". Depois de muitas dezenas de milhares de mortos e muitos mais desaparecidos, o futuro deu-lhe razão. Pena que o seu carrasco não tenha sido devidamente castigado.

quarta-feira, setembro 10, 2008

Sapatos novos A Situação estava razoavelmente sob controle: se minha condição de extramensalista do IAPC me sujeitava a um salário baixo, o cartão falso de estudante, que me permitia almoçar no Calabouço por dois cruzeiros, aliviava a barra. Uma vaga de quarto na pensão da rua Carlos Sampaio não custava muito. E ainda havia os trocados que pingavam da colaboração eventual no suplemento literário do Correio da Manhã ou do Diário de Notícias. O meu único terno, comprado a prestações num alfaiate da rua do Resende, estava pago. O problema grave no momento eram os sapatos, cujos solados gastos já me deixavam sentir diretamente no pé a aspereza das calçadas do Rio. Em bom português: estavam furados. Por isso mesmo, não resisti ao ver, na vitrine de uma sapataria da Lapa, um par de sapatos por 150 cruzeiros. Maravilha! Hoje, após tantos cortes de zeros no cruzeiro e até a mudança do nome da moeda, será difícil para o leitor avaliar o preço desses sapatos. Mas eram baratos, sem dúvida alguma. Entrei, experimentei-os e decidi que devia comprá-los, embora estivessem um pouco apertados. Um pouco, foi o que disse a mim mesmo, porque aquela pechincha era minha salvação. Estavam de fato muito apertados, tanto que, ao chegar à redação da revista do IAPC, onde trabalhava, ali na rua Alcindo Guanabara, meus pés ardiam em brasa. Com alívio, tirei-os dos pés e calcei de novo os sapatos furados que, providencialmente, trouxera comigo. Fui até o banheiro, molhei bem os sapatos novos e deixei-os ali, certo de que, quando secassem, estariam mais macios. Era verão e foi sob um sol de fogo que caminhei até o Calabouço para almoçar aquele dia. À tarde dei uma volta pelas livrarias, só pra ver os livros, e à noite tomei o meu cuba-libre com os amigos no então famoso Vermelhinho, em frente à ABI. Dormi pensando em meus sapatos novos. Acordei pensando neles. Certamente ia poder calçá-los agora. Quase aflito, rumei para o IAPC, subi de elevador, abri a porta da repartição, dirigi-me ao banheiro onde deixara os sapatos sobre a pia. E lá estavam eles, secos, melhor dizendo: ressequidos, isto é, duros, rijos como casco de burro. Mesmo assim, tratei de calçá-los, o que só consegui com enorme esforço. "Pronto", disse, terminando de lhes amarrar o cordão. Meu pé soltava faísca espremido ali dentro. Senti que não conseguiria dar um passo. Só há um jeito, pensei, e fui logo à prática: bati violentamente com o pé calçado no chão para forçar o couro a alargar-se. Foi uma patada só e o sapato explodiu. Ferreira Gullar* *crónica retirada do sítio do autor, no dia do seu 78º aniversário

terça-feira, setembro 09, 2008

A vitória do Napoleão - Ô Dengo, vem beber uma cerveja aqui com a gente, estamos comemorando a vitória do Napoleão – gritou Tonho Rafante de dentro de uma venda, ao lado de Tião Péia. – Vitória do Napoleão? Que vitória? – Ele morreu ontem. – E isso é lá vitória? – É sim, uai, ele sofreu do coração a vida inteira e morreu de cirrose. Mouzar Benedito Publicado no jornal digital VIAPOLÍTICA

segunda-feira, setembro 08, 2008

SER E NÃO SER Ser vaga nuvem ou pássaro liberto ter espumas asas ou condensações de infinito possuir todas as praias todos os espaços poder voar bem alto poder erguer os braços poder erguer a voz poder lançar um grito ou fosse apenas canto prece ou gargalhada amar só por amor só por amar mais nada ser nauta vagabundo menestrel cigano ou mesmo - que não mais - um cavaleiro andante poder viver um ano inteiro em cada instante e um século de vida viver em cada ano Não ser jamais algoz de um sonho ou de um anseio fazer da vida um fim e não somente um meio de alcançar um fim por todo meio incerto não ser jamais estéril e árido deserto onde não floresce sequer a flor selvagem não ser árvore seca despida de folhagem por onde o vento passe a murmurar baixinho onde a ave pouse e possa ter um ninho de onde brote o fruto rubro sumarento Não ser jamais a pedra fria do convento que mesmo ouvindo preces permanece fria não ser jamais a rocha abrupta sem harmonia não ser jamais o ódio a inveja o desengano poder ouvir no mar uma eterna sinfonia e no soprar dos ventos escutar um hino ser um pouco da terra para ser divino e ser dos céus um pouco para ser humano. Augusto Severo Netto* *poeta brasileiro

domingo, setembro 07, 2008

Camilo Pessanha: os mitos destruídos Que as histórias de vida de nossos grandes poetas sempre andaram mal contadas, ninguém duvida. Que muitos foram vítimas de historiadores literários apressados, que preencheram com a imaginação as lacunas que a falta de documentos deixava, também já se sabia. Agora, que outros foram alvo de picuínhas ou vinganças tardias de que já não puderam se defender só o tempo, senhor da razão, vai deixando perceber. No dia do aniversário do nascimento do autor da Clepsidra vale a pena ler este interessante artigo do jornalista, pesquisador e escritor brasileiro Adelto Gonçalves, especialista em Literatura Portuguesa.

sábado, setembro 06, 2008

A sombra das palavras As palavras nos recriam. Às vezes, belas, nos reconciliam com o vôo das cousas em mistério ou o magistério da solidão das nuvens do Sião. Elas guardam a prenhez de lobas solitárias. A lividez das cousas fontanárias. E as albas e os montes cobrindo o descolor de velhos horizontes. Ou de nossas feridas e súbitas partidas para o nunca mais. E tudo nelas é um velho cais onde tentamos amar. E ancorar. Podemos ir a Tebas, dançar em Babilônia, ou ter uma alma dórica ou jônia. E partir para o desconhecido. Ou sermos apenas um gemido por não havermos beijado os seios da Donzela em sua cidadela. As palavras são fendas de onde vemos palomas descerem sobre lendas e canções emoldurarem as moças nas varandas, ou as plumas da tarde, as cousas mais brandas e as pedras sagradas em que se escondem as cartas das Amadas. Em ritmo e verdade celebram a desventura de nosso desviver e a incessante loucura do entardecer fatal da Poesia. Às vezes, têm o cristal puríssimo do dia, mas chegam com leveza de pés de bailarinas ou de róseas algas vespertinas dormindo sobre espumas. E são brumas abrindo-se no verso como rosas, frágeis e formosas, quais luzes de estrelas num rondó. E mesmo poucas e loucas estão nos sete anos de Jacó. Os poetas são seus turiferários, que êxtases ofertam, nos itinerários, com um canto a prolongar por terras de Aragão, ou às margens do Jordão, fazendo do sonho uma estrela polar. Em seu ir e vir pelos campos desertos ou as tardes de Ofir, tentam limpar a pátina e o bolor do tempo interior. Ou fazem renascer o perfume e o lume da espera e da vida. E essa é sua glória. Sua lida. Seu barco, a descer, lento pelos rios de nosso pensamento, enquanto em sedução e solidão transformam-se em abismo ou alumbramento. Artur Eduardo Benevides* *poeta brasileiro

sexta-feira, setembro 05, 2008

A fome A fome age não apenas sobre os corpos das vítimas da seca, consumindo sua carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em sua pele, mas também age sobre seu espírito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta moral. Nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e num sentido tão nocivo quanto a fome, quando atinge os limites da verdadeira inanição. Excitados pela imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos primários são despertados e o homem, como qualquer outro animal faminto, demonstra uma conduta mental que pode parecer das mais desconcertantes. Josué Apolônio de Castro, nascido no Recife há exactamente 100 anos, foi um influente médico, professor, nutricionista, antropólogo, geógrafo, sociólogo, escritor, político, intelectual, humanista e activista brasileiro, que se notabilizou, sobretudo, pela denúncia do fenómeno da fome. A passagem acima reproduzida faz parte do seu trabalho FOME COMO FORÇA SOCIAL: FOME E PAZ, publicado na revista francesa Pourquoi, número especial de Março de 1967, mas podia ter sido escrito em 2008, tal a sua aderência à realidade actual, já que todas as causas da fome denunciadas pelo grande humanista não só se mantêm como se agravaram. No dia do seu centenário, vale a pena visitar o sítio que lhe é dedicado.
Pássaro ferido O poeta magoado não luta não vive o dia não tece seus sonhos, vai em desfilada contra o tempo percorrido contra a corrente natural das coisas importantes que não param nem podem parar por razões algumas. Vai contra si mesmo quando se desama e faz disso pretexto de existência. O poeta magoado sofre a cada instante como uma necessidade e não como um castigo, até que suas chagas sangrentas se revelem a horas de sarar por si, qual pássaro ferido voando sem destino à procura de uma réstea de Sol promessa mais que redentora breve tão mais quanto possível mas desde logo esperança renovada. Um poeta, mesmo magoado, não chora, deixa antes que seu canto triste seu lamento mais profundo e doloroso tomem conta de sua alma sonhadora. E quem vir por essas ruas fora uns olhos mortiços e distantes, carregados de uma secular resignação, pode estar certo de que pertencem a um poeta magoado. António Pires Vicente* *poeta bragançano No dia do seu 45º aniversário

quinta-feira, setembro 04, 2008

A rua "... e há uma rua encantada, que nem em sonhos sonhei..." Mário Quintana Quatro andares de esquina, em frente ao arvoredo do Hospital Militar. Neste prédio dá-se fé da vida alheia. Uma mulher cheia de mistérios, alta pra caramba, pés quarenta ou quarenta e um, moradora do último andar; às vezes morena, às vezes loura, uma camaleoa que desce à noite pra circular. Dizem que há alguns meses voltou de mala e cuia do estrangeiro, que fazia strip-tease em Barcelona. Passa grande parte do tempo no banheiro, ouço as descargas enquanto assisto ao mundo na TV... qualquer hora eu bato lá pra perguntar “que tanta merda é essa, minha senhora”, mas e se eu topar com algum cenário de horror? Vai saber! Quatro andares de frente pra encruzilhada. Suspensa, no meio do nada, lá em cima, a sinaleira. Sozinha, fica vermelha, depois verde, e então volta a ser vermelha e assim pra sempre, insatisfeita, vai trocando a cor. Restos de despacho, chutados por quem despreza anseios, espalham-se pela calçada e com a chuva sufocam os bueiros. Eu acho isso uma ofensa grave aos orixás. Do outro lado, uma pastelaria pintadinha de amarelo, a cor do apetite. As luzes do letreiro invadem meu quarto tipo disco-voador. Quando há muitos pedidos, os motoboys disputam até a morte quem é o top gun da tele-entrega. Tem cliente que toda noite devora mais de dez variedades de pastéis. Volta e meia estão quebrando o asfalto pra livrar o encanamento da gordura. Qualquer dia a nossa rua sofre um AVC. De repente, ouvem-se tiros vindos da escadaria da Couto – PÁ!PÁ!PÁ! – e a gente fica com o coração na mão. Os hóspedes da petshop da outra quadra imediatamente dão sinal. Custam tanto a se aquietar...Nunca sei se os latidos abafam os estampidos ou vice-versa. Na lojinha do posto, a rapaziada faz plantão. Fica ali, curtindo o trabalho dos frentistas e o barato da gasolina, as portas dos automóveis abertas para as FMs, os trafis forrando o pala de dinheiro sob o olho branco da PM, mas será que ninguém dorme nesta porra de cidade? Quatro andares voltados para o nascente. Enquanto o sol rola na direção da cabeça da gente, os pássaros decolam dos ninhos. São inúmeros. Parecem felizes. Afinal, estão vivos. Milagrosamente, nós também estamos. Myrian Beck Publicado no jornal digital VIAPOLÍTICA

quarta-feira, setembro 03, 2008

Ele quer voltar O Tribunal Cível da Catânia (Sicília) retirou a custódia de um rapaz de 16 anos (M.P.) à sua mãe, médica, para a entregar ao pai, com quem o jovem não quer viver. O principal motivo parece ser o facto de o menor se ter filiado na juventude do Partido Refundação Comunista (PRC). O pai do jovem encontrou entre os pertences do seu filho o cartão de membro da juventude do PRC e uma bandeira com a imagem do Che Guevara e entregou os objectos aos serviços sociais da Catânia, como prova da má influência da mãe. Os serviços sociais apresentaram-nos ao tribunal que devia decidir a qual dos progenitores entregar a custódia e entre os argumentos a favor da sua concessão ao pai foi assinalado o facto de o menor possuir o “cartão de membro de um grupo extremista”. A Refundação Comunista é um partido legal que fez parte da ampla coligação que apoiou o Governo de centro esquerda de Romano Prodi até à sua queda, no passado mês de Janeiro. Segundo os assistentes sociais, os comunistas “são extremistas e o secretário geral do grupo é um adulto que tem utilizado artimanhas para convencer outros jovens a inscreverem-se e a serem activistas”. “Para o meu pai os comunistas são todos drogados e perigosos”, explicou M.P. “Pensa que a minha mãe não está em condições de tomar conta de mim e para demonstrá-lo arranjou como pretexto o meu cartão de jovem comunista. Com eles sinto-me bem. E não me drogo”, acrescentou, manifestando a sua surpresa por se ter tornado um caso nacional. Para confirmá-lo, submeteu-se voluntariamente a um teste de despistagem de drogas, que deu negativo. Fausto Bertinotti, ex-secretario do PRC e ex-presidente do Congresso na legislatura anterior, já lhe expressou a sua solidariedade e o actual secretário, Paolo Ferrero, pediu ao presidente da República, Giorgio Napolitano, que intervenha fazendo uso da sua função de garante da Constituição. Informação recolhida aqui e confirmada a sua veracidade em vários jornais italianos.

terça-feira, setembro 02, 2008

as coisas As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade, sentido. As coisas não têm paz. Arnaldo Antunes* *poeta paulista (no dia do se 48º aniversário)

segunda-feira, setembro 01, 2008

Blasfémia?
Esta é a escultura em madeira do artista alemão Martin Kippenberger, representando um sapo crucificado com uma caneca de cerveja na mão direita e um ovo na esquerda, que tanto tem exaltado a Itália, ao ponto de levar Bento XVI a escrever à direcção do museu de Bolzano, cidade do norte da Itália onde se encontra exposta temporariamente, clamando contra a exibição da obra, que classificou de blasfema. Por mim, não entendo onde está a blasfémia. Vários países ostentam uma cruz na sua bandeira e já cometeram atrocidades sem que tenham sido apelidados de blasfemos. Os nazis também usavam uma cruz nas bandeiras e nos uniformes e foi o que se viu. E o que não se ouviu. Por cá, para já não falar das equipas nacionais, há um clube de futebol que até é alcunhado “da cruz de Cristo” e ostenta uma cruz bem visível na camisola dos seus atletas. Isto não os impede de dizerem palavrões, chamarem nomes aos árbitros, agredirem os adversários de vez em quanto, sem que daí advenha qualquer protesto do pároco de Belém - muito menos de Roma - por causa disso. Parece que o pobre do sapo verde crucificado nem sequer fala - quanto mais dizer impropérios, chamar nomes aos visitantes ou agredir as esculturas vizinhas - pelo que muito bem andou a direcção do museu de Bolzano ao não ceder totalmente às pressões, embora não devesse ter retirado a escultura da entrada para um terceiro andar.