terça-feira, setembro 16, 2008

O vôo da garça pequena No final do dia abandonava a guarda. Encostava a arma no muro, limite entre a paisagem e o posto, para sacar a máquina escondida na mochila. Dava as costas para o pátio onde os detentos abasteciam-se de um pouco de luz, pitavam baganas gritando truco, coçavam o saco tramando fugas. Dava as costas ao portão por onde a esperança pouca das esposas circulava e firmando o fuzil entre os tijolos e a coxa – o calo do mingo latejando na botina – fotografava os restos do dia. O contorno alaranjado dos armazéns no cais. As embarcações talhando as águas em linhas paralelas afastarem-se sempre mais. Fotografava as ilhas. A densidade da vegetação escondendo os casebres e os casebres escondendo uma gente sem sustento. Sem consolo. Merda de vida. Foi há tanto tempo. Era moleque, ainda, quando a tia Cida entendeu por bem fazer negócio com a caçula. Três gurias, como é que eu faço? Vai tu que és a mais ajeitadinha, com essa pinta de atriz em cima da boca, esses tornozelos finos, diz que égua de tornozelo fino é boa de lida, e segurando-a pelas pontas dos dedos, óia que formosura, a fez girar em torno de si mesma. Vai, vai com o moço de chapéu branco, tens sorte, dono de tantos anéis, pode que seja de garantir futuro. Ela não disse sim. Nem disse não. Como de costume, obedeceu. Cravou os olhos no chão e desceu os cinco degraus que protegiam o barraco contra as cheias no quintal. Sentada no banco traseiro da caminhonete nem fez sinal, nenhum adeus, eu já tinha dezesseis anos, era o irmão mais velho, covarde, não mexeste um dedo pra impedir. Fotografava o rosa e o violeta contra o azul em degradê no céu. A ponte todinha rebordada de faróis. Nunca mais a vira. Nenhuma notícia. Em março ela completa 25 anos, se estiver viva... por que não evitaste a partida? Já não eras um rapaz? Um verme, isso sim... Daria qualquer coisa para reencontrá-la, poder sentar sob os eucaliptos e chupar laranja do céu, depois segurar firme sua mãozinha e correr até o trapiche, saltar sobre as águas, a garça pequena ensaiando o vôo, VOAR... De noite rir, baixinho / contra a luz da vela projetar sombras nas tábuas carcomidas / rir, apesar do frio que rompe as nossas peles desnutridas / rir, apesar da precocidade das feridas / rir, que rir é sina de criança mal nascida. De repente, tiros e gritaria devolvem-no ao presente. Parece que um dos detentos venceu o muro farpado e correu na direção do rio. Foge, por caridade, bate as asas pra bem longe do que te condena, volta pra casa! Deslizou as costas no muro, lentamente, até sentar sobre o cimento. Minha garça pequena. Dela guardo uma fotografia três por quatro: Atenção, olha o passarinho! Faltam estes dois dentes aqui na frente, mas se eu espremer um pouco a boca, assim, acho que ninguém percebe, né? Minha menina sem caninos. Beijou a imagem desgastada trancando de novo aquele tempo entre as dobras da carteira. Com os olhos apertados como quem reza por perdão, esperou a calmaria. Mais alguns minutos e haverá a troca da guarda. Um último registro: o diretor encarando-o, furioso. Close nas sobrancelhas de marandová. Myrian Beck Publicado no jornal digital VIAPOLÍTICA