quarta-feira, setembro 24, 2008

Vocação de rédea Deu um passo ágil e certeiro feito um bote, se não ficaria para trás. Foi a última a entrar no elevador. Cheio que nem compota. Foi a única a ficar de costas para a porta que, ao fechar, mergulhou-a ainda mais naquele caldo de ruídos e odores. O constrangimento da proximidade imposta disfarçada em olhares que passeiam pela ventilação no teto, pelas luzinhas dos botões que marcam os andares - térreo, por favor. Restava encarar o compacto grupo de frente. Vibra um celular. Parece uma cigarra aprisionada no bolso de alguém. É do homem que está com a gravata rubra, o cara alto com a gravata impecavelmente disposta sobre o peito. Vibra, de novo. Ele se espreme, pede licença - ela, pois não -, dá um passo a frente, tira o aparelho do bolso, atende. A distância, antes de um palmo e meio, fica nenhuma. O homem fala, ele fala discretamente, é verdade, mas não tira os olhos de mim, será? Claro, ele está falando com alguém e me encarando, mesmo sem eu devolver o olhar posso sentir, igual à avidez dos operários da construção civil que estendem um tapete de frases toscas enquanto se vai passando. Depende das oscilações hormonais, essas coisas arrepiam a alma ou a pele da gente. O homem da gravata rubra exposta sobre o tórax, distinto como diria minha avó, ali sussurrando com a boca encostada no aparelho “... a gente pode...” uma pausa mínima potencializa a próxima fala “...te pego depois ...” e foi dizendo outras coisas que não deu pra escutar bem... Nisso, uma bolinha de rimel colou minha pestana de cima na pestana de baixo fazendo-as grudar feito as asas de uma borboleta molhada. Com os dedos em pinça, rápido, pus a pálpebra no lugar, mas ao tentar voltar a mão - desculpa aí, gente, licença -, ao tentar relaxar o cotovelo, cadê espaço? os tornozelos buscando novos pontos de equilíbrio sobre o salto dez que acabou virando, e a mão? a mão teve que firmar-se e fez isso no tecido. Suave. Vermelho. Nele. Por vergonha ou desejo repentino quase me desfaço. Uma fisgada no peito enquanto a saliva desce meio areia na garganta. De repente, meus sonhos recorrentes de ser folha e voar entre os edifícios espionando performances que a madrugada esconde, atravessa que nem espada na mente. O homem sorriu e pôs o aparelho de volta no bolso interno do casaco. Com os dedos foi subindo da ponta mais alargada da gravata até o pescoço e ficou ali brincando com o nó, o exibido, com aquela gravata descarada, bem na minha frente, gostando de ser tocada, então é isso, um pano desses nasceu pra ser rédea, é isso o que ele quer, uma ou duas voltas bem firmes nas minhas mãos, prontas pra doma. Pois ela ergueu o queixo, decidida, e sustentou aquele olhar de baio. Desceu na sobreloja. De dois em dois degraus ganhou a rua. Oxigênio. Ao chegar em casa alisou a careca do marido, seu cão doméstico de unhas mal cortadas e patas mal acostumadas sobre a mesinha do centro. Uma coleção de latas de skol decorando o ambiente ao som do futebol. Tomou um valium e deitou quietinha, só esperando que lhe invadisse o torpor de folha perdida. Mas, naquela noite, sobrevoando a cidade num grande tapete púrpura, mergulhou ao encontro do crepúsculo que incendiava o Cais. Nos galpões do Porto, espremia-se uma multidão, alheia às chamas vertidas do cálice de Tanat que somente ela provara. Aterrissou, então, na Caldas Júnior, enrolada no tapete púrpura para arderem juntos no fogo que consumia os quartos do Grande Hotel. Pela manhã, rompeu o casulo de edredon. Renascida, feito borboleta. Myrian Beck Publicado no jornal digital VIAPOLÍTICA

1 comentário:

Tula disse...

Oi Lino!
Também gosto muito dos contos da Myrian Beck!
Você já leu o conto "Light my fire", também dela, que está publicado no site viapolítica?
Eu vi que o The Doors é uma de suas bandas favoritas... acho que você vai gostar do conto.
Saudações!
Tula