quinta-feira, setembro 04, 2008

A rua "... e há uma rua encantada, que nem em sonhos sonhei..." Mário Quintana Quatro andares de esquina, em frente ao arvoredo do Hospital Militar. Neste prédio dá-se fé da vida alheia. Uma mulher cheia de mistérios, alta pra caramba, pés quarenta ou quarenta e um, moradora do último andar; às vezes morena, às vezes loura, uma camaleoa que desce à noite pra circular. Dizem que há alguns meses voltou de mala e cuia do estrangeiro, que fazia strip-tease em Barcelona. Passa grande parte do tempo no banheiro, ouço as descargas enquanto assisto ao mundo na TV... qualquer hora eu bato lá pra perguntar “que tanta merda é essa, minha senhora”, mas e se eu topar com algum cenário de horror? Vai saber! Quatro andares de frente pra encruzilhada. Suspensa, no meio do nada, lá em cima, a sinaleira. Sozinha, fica vermelha, depois verde, e então volta a ser vermelha e assim pra sempre, insatisfeita, vai trocando a cor. Restos de despacho, chutados por quem despreza anseios, espalham-se pela calçada e com a chuva sufocam os bueiros. Eu acho isso uma ofensa grave aos orixás. Do outro lado, uma pastelaria pintadinha de amarelo, a cor do apetite. As luzes do letreiro invadem meu quarto tipo disco-voador. Quando há muitos pedidos, os motoboys disputam até a morte quem é o top gun da tele-entrega. Tem cliente que toda noite devora mais de dez variedades de pastéis. Volta e meia estão quebrando o asfalto pra livrar o encanamento da gordura. Qualquer dia a nossa rua sofre um AVC. De repente, ouvem-se tiros vindos da escadaria da Couto – PÁ!PÁ!PÁ! – e a gente fica com o coração na mão. Os hóspedes da petshop da outra quadra imediatamente dão sinal. Custam tanto a se aquietar...Nunca sei se os latidos abafam os estampidos ou vice-versa. Na lojinha do posto, a rapaziada faz plantão. Fica ali, curtindo o trabalho dos frentistas e o barato da gasolina, as portas dos automóveis abertas para as FMs, os trafis forrando o pala de dinheiro sob o olho branco da PM, mas será que ninguém dorme nesta porra de cidade? Quatro andares voltados para o nascente. Enquanto o sol rola na direção da cabeça da gente, os pássaros decolam dos ninhos. São inúmeros. Parecem felizes. Afinal, estão vivos. Milagrosamente, nós também estamos. Myrian Beck Publicado no jornal digital VIAPOLÍTICA

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