How many times must a man look up, Before he can see the sky? How many ears must one man have, Before he can hear people cry? The answer, my friend, is blowin' in the wind. The answer is blowin' in the wind.
quinta-feira, janeiro 31, 2008
O ditador modelo
John Pilger, nascido em 9 de Outubro de 1939, é um jornalista e realizador de documentários australiano, actualmente com base em Londres.
Mais conhecido pelos seus mais de vinte documentários de investigação, principalmente os realizados no Cambodja e em Timor Leste, foi correspondente de guerra em conflitos tão diferentes como o Vietname, Cambodja, Egipto, Índia, Bangladesh e Biafra, tendo escrito para os principais jornais de língua inglesa no Reino Unido, Austrália e Estados Unidos.
Autor de mais de uma dezena de livros, tem vindo a coleccionar sucessivos prémios de jornalista e escritor, desde 1966 até à actualidade.
A propósito da morte de mais um carniceiro, ofereceu-nos no dia 28 de Janeiro, nas páginas do Guardian, um retrato compacto mas implacável da carnificina iniciada em 1965, na Indonésia, com o alto patrocínio dos Estados Unidos, da Inglaterra e da Austrália (acolitados por actores menores) e prolongada até ao fim da década de noventa, na terra mártir de Timor Leste.
Mais de um milhão de mortos e quarenta anos depois, o carniceiro morreu sem ter sido julgado (mais um considerado inimputável), rodeado dos cuidados que aos outros recusou e submerso nas riquezas que roubou ao seu povo. E, para cúmulo, teve direito a honras de estado e a feriado nacional.
Quem disse que o outro lado do mundo era já ali?
quarta-feira, janeiro 30, 2008
Liberdade de Imprensa
A imprensa é uma grande potência, mas como uma torrente em fúria submerge a planície e devasta as colheitas, da mesma forma uma pena sem controle serve para destruir. Se o controle vem do exterior, o efeito é ainda mais nocivo do que a falta de controle; só pode ser aproveitável se for exercido interiormente.
Mahatma Gandhi (in Memórias)
60 anos após o seu assasinato, quão actuais se mantêm estas suas palavras!
A imprensa é uma grande potência, mas como uma torrente em fúria submerge a planície e devasta as colheitas, da mesma forma uma pena sem controle serve para destruir. Se o controle vem do exterior, o efeito é ainda mais nocivo do que a falta de controle; só pode ser aproveitável se for exercido interiormente.
Mahatma Gandhi (in Memórias)
60 anos após o seu assasinato, quão actuais se mantêm estas suas palavras!
terça-feira, janeiro 29, 2008
O Corvo
“O Corvo” (“The Raven”) é um poema notável do escritor e poeta norte-americano Edgar Allan Poe, que foi publicado pela primeira vez em 29 de Janeiro de 1845, no jornal New York Evening Mirror.
Das traduções para português, as mais conhecidas são as de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Por mim, prefiro a segunda, que aqui reproduzo. Apesar da sua extensão, julgo que vale a pena lê-la na íntegra:
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um Corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho Corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o Corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".
Mas o Corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o Corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o Corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demónio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o Corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demónio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o Corvo, "Nunca mais".
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o Corvo, "Nunca mais".
E o Corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demónio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais,
E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
Edgar Allan Poe
tradução de Fernando Pessoa
segunda-feira, janeiro 28, 2008
O senhor Mercado
O senhor Mercado está à solta nos últimos dias. Abre-se o jornal, liga-se a televisão, ouvem-se os comentários econômicos e lá está ele. "Hoje o mercado acordou sobressaltado"; "o mercado teve soluços", "o FED americano deu um forte calmante para o senhor mercado"; hoje o mercado acordou de bom humor". Segundo os analistas, não se sabe bem porque o mercado está nervoso, em sobressaltos, se é porque a economia americana caminha para a recessão, se a China está crescendo demais, se o petróleo aumentou de preço. A verdade é que o Mercado está descontrolado, oscilando, dando pulos a cada dia, e os bancos centrais buscando remédios e injetando bilhões para acalmá-lo..
O mercado parece gente. Parece alguém de nós em grave crise na vida, porque perdeu um amor, porque morreu alguém, porque não passou no vestibular, ou por uma noite mal dormida. Fica-se nervoso, a cabeça dói, tem-se dificuldade de concentração, o coração ameaça disparar, o desconforto é geral.
Selvino Heck
Artigo completo, aqui.
domingo, janeiro 27, 2008
Peixe na água!
A um pobre não se dá peixe, ensina-se a pescar. As velhas receitas não servem. Pelo menos, não servem para os pobres. Os peixes gordos, os “pescanovos”, têm a exclusividade. Pescar, arrasar. Uma faina. Um roubo. A um pobre não se dá peixe, ensina-se a patrulhar. O presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, disse esta semana em Madrid: “procuro um sócio para vigiar as águas senegalesas e acabar com a pesca clandestina”. Precisamos de guardas costeiros. “Esses jovens que vêm para Espanha em barcos são, em muitos casos, pescadores que não podem pescar um único peixe nas águas do meu país, espoliadas por barcos europeus e asiáticos” – denuncia o presidente do Senegal. “Tínhamos um dos bancos pesqueiros mais ricos do mundo, mas essa riqueza foi esgotada por piratas que capturam tudo o que apanham, até alevinos”. Para Abdoulaye Wade, tanto mal, até o mar, ainda tem remédio: “se nos aliássemos para desenvolver o sector pesqueiro e acabar com a pesca ilegal, a situação podia mudar e os pescadores podiam ficar no Senegal” – insiste o presidente.
A metade do peixe que se consome hoje na Europa foi capturada nos países pobres de forma ilegal. São peixes de contrabando. O nosso continente converteu-se no principal mercado da pesca pirata, um negócio que todos os anos movimenta mais de 14.000 milhões de euros. E a procura aumenta. Devora. Devasta. Esgota os mares.
Um camponês moçambicano contou esta história ao escritor Mia Couto: “um macaco estava perto dum rio, viu um peixe dentro da água e pensou ‘este animal está a afogar-se’. O macaco meteu a mão na água, apanhou e tirou o peixe da água. E quando o peixe se começou a agitar o macaco disse: ‘que pena, se tivesse chegado antes’.” Assim estamos, continuamos. Oferecemos canas. Formamos pescadores. Patrocinamos os iscos. Fazemos alianças de civilizações. Chegamos tarde, mais uma vez. E ainda nos dá pena. Que macacada!
Gorka ANDRAKA
Traduzido por Cristina Santos para a TLAXCALA, a rede de tradutores pela diversidade linguística.
sábado, janeiro 26, 2008
Grandes obras
no país da democracia
uma enorme obra tornou-se
absolutamente necessária
para que a hipocrisia
junto com a inveja e a bobagem
tomassem posse do estado
e mal fizessem às pessoas de bem
Todo Mundo
grão-mestre daquela nação
convocou Alguém para executar
a inadiável tarefa
Alguém
embolsou 40 % da verba
e ofereceu o restante para que
Qualquer Um
tocasse a obra à sua maneira
Qualquer Um
cobrou 30% de comissão
e dividiu o que sobrou com
Alguém
que ofereceu-se para suar a camisa
e tocar a obra até o fim no fim: deu tudo errado
e Todo Mundo culpou Alguém
porque Ninguém fez
o que Qualquer Um
poderia ter feito
mas não fez ...mesmo assim
Ninguém foi preso
pelo grande fracasso
Tavinho Pães*
*Poeta brasileiro (no dia do seu 53º aniversário)
publicado no panfleto O KÚMPLICE DO TARADO (1979)
sexta-feira, janeiro 25, 2008
quinta-feira, janeiro 24, 2008
Os horrores do rating
Muitos aspectos do nosso "eficiente" capitalismo combinaram-se para produzir o cataclismo do crédito que agora ameaça cada vez mais aspectos da economia global. Um deles foi o fracasso das companhias privadas de notação (rating) em avaliar com precisão e revelar honestamente os riscos de títulos baseados num "pacote" de empréstimos (títulos que garantem aos seus possuidores uma fatia daquele pacote principal e/ou juros). Isto foi especialmente verdadeiro para títulos com base em empréstimos hipotecários emitidos nos anos de euforia do boom habitacional. Investidores por todo o mundo compraram aqueles títulos com base nas classificações daquelas companhias. As suas compras financiaram a bolha habitacional estado-unidense que agora rebentou . Agora sabemos que tais classificações eram profundamente erradas. Os proprietários destes títulos em todo o mundo estão a incorrer em perdas incríveis e a reduzir os seus empréstimos a todos os tomadores. A ansiedade acerca de riscos de todas as espécies de empréstimos aumentou paralelamente ao aprofundamento da desconfiança para com todas as avaliações de risco. Aumentam os incumprimentos, bancarrotas e arrestos juntamente com as probabilidades de recessão em 2008 .
Rick Wolff
O artigo completo pode ser lido aqui.
quarta-feira, janeiro 23, 2008
Canto dos emigrantes
Com seus pássaros
ou a lembrança de seus pássaros,
com seus filhos
ou a lembrança de seus filhos,
com seu povo
ou a lembrança de seu povo,
todos emigram.
De uma quadra a outra
do tempo,
de uma praia a outra
do Atlântico,
de uma serra a outra
das cordilheiras,
todos emigram.
Para o corpo de Berenice
ou o coração de Wall Street,
para o último templo
ou a primeira dose de tóxico,
para dentro de si
ou para todos, para sempre
todos emigram.
Alberto da Cunha Melo*
*poeta pernambucano
terça-feira, janeiro 22, 2008
Pico petrolífero e mercados financeiros
Chama-se Gail Tverberg, é Master of Science em Matemática pela Universidade de Ilinóis, Associada da Casualty Actuarial Society e Membro da Academia Americana de Actuários.
Começou a interessar-se pela questão do pico petrolífero em fins de 2005 e escreve regulamente sobre questões relacionadas com o petróleo no sítio The Oil Drum, um dos sítios de topo em questões relacionadas com o pico petrolífero, a escassez de energia e os impactos esperados no futuro dos cidadãos estado-unidenses (e, por tabela, de toda a humanidade), assinando com o nome de Gail, a Actuária.
No passado dia 9 de Janeiro publicou um texto no The Oil Drum intitulado Pico petrolífero e mercados financeiros: uma previsão para 2008, cuja leitura recomendo vivamente. Apesar de imbuído de alguma tecnicidade, o artigo é muito acessível mesmo para não iniciados e dá-nos uma perspectiva muita clara daquilo que os americanos (e todo o mundo, por força do chamado "efeito borboleta") podem esperar nos próximos tempos. Começa assim:
Nesta altura do ano, lemos muitas previsões financeiras para o ano que temos pela frente. Quase todas elas são redigidas com o "filtro" da certeza do crescimento infinito. "Os problemas da produção petrolífera são uma dificuldade temporária; depois de uma curta baixa, é provável que a economia continue, de novo, a crescer rapidamente. Podemos ter uma ligeira recessão, mas voltaremos brevemente ao caminho certo, como sempre". Etc.
Para quem tiver alguma dificuldade com o original em inglês, já está disponível uma boa tradução em português.
segunda-feira, janeiro 21, 2008
O subprime
Nos últimos meses temos sido bombardeados a torto e a direito com a “crise do subprime”, mas as indicações que nos dão é que isso é uma coisa dos americanos que tem a ver com hipotecas de alto risco e que pouco ou nada nos afectará. Mas será mesmo assim?
Em termos muito chãos, para não maçar a(o)s amiga(o)s que se dão ao trabalho de me visitar, subprime é um tipo de crédito de alto risco para a compra de casa, típico dos Estados Unidos e sem um paralelismo exacto na Europa, concedido a pessoas que, pelo seu mau historial de crédito ou pelo seu baixo rendimento, não conseguiriam ter acesso ao crédito em condições normais ( o chamado crédito prime). Digamos, que, de um modo simplista e apenas como ilustração, é algo semelhante ao crédito ao consumo que por cá se pratica, só que numa perspectiva de longo prazo, dado que estamos a falar de valores elevados por prazos muito dilatados no tempo e, por isso mesmo, muito mais perigoso.
Neste tipo de crédito, em que a única garantia é a hipoteca da casa, os credores correm um risco muito maior, já que os mutuários podem entrar em incumprimento a qualquer momento, pelo que as taxas de juro são bastante mais elevadas do que no crédito dito normal.
O subprime teve um desenvolvimento enorme quando a Reserva Federal dos Estados Unidos (FED) começou a baixar as taxas de juro para estimular o mercado imobiliário, com vista a controlar os efeitos dos ataques de 11 de Setembro na economia do país. Em 2003 a taxa de juro tinha descido ao nível do 1% e várias instituições bancárias tinham passado a ser muito menos exigentes na concessão de crédito.
Com a subida das taxas de juros e a queda dos preços das casas (uma casa que, por exemplo, tinha sido adquirida por 400.000 dólares, passou a valer menos de 300.000) muita famílias deixaram de poder pagar as prestações, levando à falência dezenas de instituições de crédito imprudentes que operavam nesse segmento.
Tais instituições de crédito, para terem dinheiro para emprestar, tinham emitido títulos com base em cabazes de empréstimos, títulos esses comprados por instituições financeiras e fundos de investimento de todo mundo. Como resultado, quando o sistema do subprime entrou em ruptura e tais títulos passaram a ser lixo ou quase, a crise de liquidez atingiu também a Europa, com o Banco Central Europeu e o Banco de Inglaterra a terem de injectar no sistema financeiro mais de cem mil milhões de euros.
Neste momento, as consequências para a economia global ainda não estão totalmente calculadas, mas estima-se que os prejuízos se situem na casa das centenas de milhares de milhões de euros ( Só o Citigroup reconheceu, em 2007, prejuízos de dezanove mil milhões de dólares motivados pelo colapso do subprime).
Em Portugal ainda não se conhece publicamente a dimensão das consequências, mas é de admitir que algo de negativo se possa verificar ao nível dos fundos de investimento, da banca e dos seguros (neste último caso mais por via do eventual agravamento das condições internacionais de resseguro – que é o seguro do seguro – dado que as grandes resseguradoras europeias têm alguma exposição ao mercado norte americano).
A ver vamos!
domingo, janeiro 20, 2008
Utopias concretizadas
Aquilo que mais se teme acontece sempre, dizia Kafka. Muito pior: aquilo que mais se deseja, também.
Era uma vez um homem que ansiava por trabalhar menos e o capitalismo deixou-o no desemprego.
Era uma vez um homem que sonhava com viajar mais e o capitalismo meteu-o numa balsa.
Era uma vez uma mulher que procurava amor e o capitalismo atirou-a para a prostituição.
Era uma vez uma mulher que desejava uma máquina de costura e o capitalismo acorrentou-a a uma máquina numa fábrica têxtil.
Era uma vez um menino que queria que o seu pai não lhe desse um tabefe e o capitalismo deixou-o órfão.
Era uma vez uma menina que não tinha vontade de estudar matemática e o capitalismo bombardeou a sua escola.
Era uma vez um homem, uma mulher, um menino e uma menina que queriam viver felizes e livres de preocupações e o capitalismo deu-lhes a televisão.
Era uma vez um presidente dos Estados Unidos que tinha no seu gabinete um lâmpada, esfregou-a com a manga e saiu um génio que disse: “Pede três desejos e conceder-tos-ei”. “O nosso desejo”, respondeu o magnata em nome do seu país, “é ter mais desejos. Depois, nós próprios nos encarregaremos de que se cumpram”. E o génio concedeu-lhe todos os sonhos, todos os pensamentos bons, todas as imagens nobres da Humanidade para que consumasse a sua destruição à face da terra.
Santiago Alba Rico
sábado, janeiro 19, 2008
Um ano de ausência
A porta branca
Por detrás desta porta,
uma de todas as portas que para mim se abrem e se fecham,
estou eu ou o universo que eu penso.
Deste meu lado, dois olhos que vigiam
os fenómenos naturais, incluindo a celeste mecânica
e as sociedades humanas, sedentárias e transumantes.
Mas podem os olhos fazer a sua enumeração,
e pode o pensado universo infindamente ir-se,
que para mim o que hoje importa
é aquela olhada vaga porta.
Que ela seja só como a vejo, a porta branca,
com duas almofadas em recorte,
lançada devagar sobre o vão do jardim,
onde o gato, por uma fenda aberta
pela sua pata, tenta ver-me,
tão alheio a versos e a universos.
Fiama Hassa Pais Brandão
(Cena Vivas - Relógio d´Água)
sexta-feira, janeiro 18, 2008
In memoriam
Poesia-Orgasmo
De sílabas de letras de fonemas
se faz a escrita. Não se faz um verso.
Tem de correr no corpo dos poemas
o sangue das artérias do universo.
Cada palavra há-de ser um grito.
Um murmúrio um gemido uma erecção
que transporte do humano ao infinito
a dor o fogo a flor a vibração.
A poesia é de mel ou de cicuta?
Quando um poeta se interroga e escuta
ouve ternura luta espanto ou espasmo?
Ouve como quiser seja o que for
fazer poemas é escrever amor
a poesia o que tem de ser é orgasmo.
José Carlos Ary dos Santos
quinta-feira, janeiro 17, 2008
Comunicado
Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.
Miguel Torga*
*no 13º aniversário do falecimento
quarta-feira, janeiro 16, 2008
Viva o Gordo, abaixo o regime!
O Gordo, um autêntico homem dos sete instrumentos, perfaz hoje 70 anos. Embora afirme que já não os festeja, aqui fica, por ele mesmo, a descrição dos seus aniversários de antanho:
Aniversário
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
Jô Soares
terça-feira, janeiro 15, 2008
De Tonquim ao Golfo Pérsico
O título desta posta poderia ter algo a ver com os nossos descobrimentos, mas não tem. Nem com os descobrimentos nem connosco directamente, mas sim com toda a humanidade.
O Golfo de Tonquim fica no Mar da China e banha o nordeste do Vietname e o Sudeste da China. O Golfo Pérsico é quase dez mil quilómetros mais perto de nós e está ligado ao Oceano Índico pelo Estreito de Ormuz.
Em 1964, dois destruidores dos Estados Unidos, o USS Maddox e o USS Turner Joy, informaram as suas chefias militares de que tinham sido atacados por embarcações do Vietname do Norte, respectivamente nos dias 2 e 4 de Agosto.
Tal alegação levou a que o presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, conseguisse fazer aprovar no Congresso a Resolução do Golfo de Tonquim, a qual lhe serviu de álibi para a Guerra do Vietname, onde houve mais de dois milhões de militares e cerca de cinco milhões de civis mortos.
Em 2005, foi revelado por um relatório da Agência de Segurança Nacional, entretanto desclassificado, que o alegado primeiro ataque ao Maddox tinha acontecido de facto, mas só depois de o Maddox ter disparado primeiro, e que o segundo alegado ataque nunca se tinha verificado. Consta que o próprio Jonhson tinha reconhecido que os militares dos destruidores tinham confundido peixes voadores com torpedos do Vietname do Norte.
44 anos decorridos, acontece nova encenação, desta feita no estreito de Ormuz, onde, alegadamente, de acordo com imagens obtidas por manipulação digital, cinco “barquinhos” iranianos terão ameaçado fazer explodir um porta aviões estado-unidense.
Embora isto seja tão credível como afirmar que uma formiga ameaçou matar um elefante com uma bomba de mau cheiro de Carnaval, o Sr. Bush, antes de ir dar umas cabeçadas no Muro das Lamentações, advertiu o Irão sobre tal “provocação”, enquanto as autoridades iranianas afirmavam que se tratava de uma manipulação e que não tinha havido qualquer incidente.
Após os iranianos mostrarem as suas próprias imagens e som, o Pentágono lá reconheceu que o som e as imagens que tinha divulgado anteriormente tinham sido captados em separado e montados. Os próprios comentadores mais apologistas da estratégia do complexo militar-industrial começaram a fazer marcha atrás e o assunto, por enquanto, parece estar em “banho maria”, se bem que haja sempre “crentes” dispostos a alinhar pelos lado dos “bons”, contra os apelidados de “maus” (ou “nós” contra “eles”, no dizer do inefável Mr. W.).
segunda-feira, janeiro 14, 2008
Ficaram-me as penas
O pássaro fugiu, ficaram-me as penas
da sua asa, nas mãos encantadas.
Mas, que é a vida, afinal? Um vôo, apenas.
Uma lembrança e outros pequenos nadas.
Passou o vento mau, entre açucenas,
deixou-me só corolas arrancadas...
Despedem-se de mim glórias terrenas.
Fica-me aos pés a poeira das estradas.
A água correu veloz, fica-me a espuma.
Só o tempo não me deixa coisa alguma
até que da própria alma me despoje!
Desfolhados os últimos segredos,
quero agarrar a vida, que me foge,
vão-se-me as horas pelos vãos dos dedos.
Cassiano Ricardo*
*poeta, ensaísta e jornalista brasileiro
domingo, janeiro 13, 2008
Bizarrias Judiciais (VI)
Em 2005, Pavel M., um prisioneiro romeno a cumprir 20 anos de pena por homicídio, processou Deus, baseando a sua pretensão num contrato. Alegou que o seu baptismo tinha sido um acordo entre ele e Deus ao abrigo do qual, em troca de um valor como a oração, Deus mantê-lo-ia livre de problemas.
***
Em 1964, o Tribunal Tributário do Canadá foi chamado a decidir se as despesas de administrar uma “empresa” de “call girls”, em Vancouver, eram dedutíveis ao rendimento bruto para efeitos do Imposto Sobre o Rendimento. A dona e sete “call girls” foram todas condenadas e encarceradas. E depois foram tributadas. As pretensões de dedução nos impostos relativamente a despesas correntes do negócio, tais como as contas de telefone, foram autorizadas. Para outro tipo de despesas não foram permitidas deduções, porque a “empresa” não pôde prová-las com os devidos recibos, incluindo $ 2.000,00 gastos em bebidas alcoólicas para funcionários locais e $ 1.000,00 pagos a “certos homens dotados de força física e alguma astúcia, atributos que tiveram de utilizar para conseguirem tirar uma rapariga de dificuldades”.
sábado, janeiro 12, 2008
sexta-feira, janeiro 11, 2008
A importância do Latim
Um recente editorial aberto do jornal The New York Times, intitulado A Vote for Latin, e uma ainda mais recente análise a um manual inglês de Latim, publicada na Slate Magazine com o título de The Renaissance of Latin, trouxe-me à memória um episódio velho de 24 anos relativo ao estado da nossa iliteracia.
Corria o ano de 1983 (sei-o porque a minha filha tinha um ano de idade) e fui convidado para a casa de uma casal amigo, onde almocei, jantei e pernoitei.
Ao serão, o anfitrião, doutorado em línguas clássicas e professor da Faculdade de Letras, foi corrigir provas de português de alunos seus do 5º ano, os quais, no ano lectivo seguinte, seriam lançados no mercado de trabalho como professores de português do ensino secundário. Obtido o seu consentimento para olhar para algumas provas (não houve quebra de sigilo porque não estavam assinadas com os nomes verdadeiros), verifiquei, com estupefacção, que havia erros ortográficos a rodos, pontuações inadequadas e construções sintácticas sem pés nem cabeça.
Quando lhe disse que, se fosse eu o professor, nenhum daqueles seis ou sete alunos cujas provas analisara obteria aprovação, respondeu-me que tinha a mesma opinião, mas não podia apresentar uma taxa de reprovações superior a dez por cento. Falámos sobre a falta de formação daqueles alunos nas línguas-mãe do português (Latim e Grego) e a pouca sorte dos que viriam a ser os alunos de tais professores e concluímos que o mal radicava numa realidade que mais tarde viria a ser popularizada por um dirigente do nosso futebol: o sistema.
Que, pelos vistos, não melhorou nada. Ao procurar informações sobre o ensino do Latim em Portugal, deparei-me com este texto, de uma aluna do ensino secundário que teve contacto com aquela língua por mero acaso: o seu testemunho é revelador!
As nossas crianças e adolescentes saem do ensino básico e secundário sem saberem ler nem escrever e os nossos especialistas o que é que fazem? Ensinam-lhes o inglês desde tenra idade. Eu não sou contra o ensino do inglês no primeiro ciclo do ensino básico e até lamento não ter tido oportunidade de o aprender convenientemente quando era menino e moço. Sou, sim, contra o deficiente ensino do português às nossas crianças e jovens, por sua vez resultante do mau ensino do português nas universidades.
Mas, se não prestamos qualquer atenção ao Latim, donde provem mais de noventa por cento do nosso léxico, seja por via erudita seja por via popular, ou ao Grego, que deu origem à quase totalidade da linguagem científica, como queremos que as nossas crianças e jovens saibam ler e escrever português? Não será, certamente, injectando-lhes doses maciças de telenovelas brasileiras, submetendo-as a uma terminologia caricata que só serve para alguns pseudo-especialistas contemplarem o próprio umbigo ou indo a reboque de um acordo ortográfico ridículo.
Como diz muito bem a Cláudia, os Lusíadas nunca teriam sido escritos se Camões não dominasse os clássicos. E eu acrescento que nem sequer podem ser entendidos por quem não tenha formação clássica. Os Lusíadas e a maior parte da nossa literatura.
Numa visita de trabalho a Kansas City, Missouri, em 1991, um colega actuário estado-unidense dizia-me que nós, os europeus, éramos uns privilegiados, porque se andássemos cinco mil quilómetros contactávamos com meia dúzia de culturas, línguas e culinárias diferentes, enquanto eles, percorrendo seis mil quilómetros de costa a costa, comiam a mesma junk food e ouviam o mesmo inglês mal falado. Sorri e fechei-me em copas, mas espero que se ele vier a realizar o grande sonha da sua vida – fazer uma viagem pela Europa na companhia da mulher – e passar por Portugal, não se aperceba da desgraça profunda que grassa por aqui, pelos menos em termos culturais e linguísticos (com recuperação aprazada para as calendas gregas) , pois de culinária ainda vamos entendendo, apesar de a saloiice da alta cozinha francesa, a moda das iguarias orientais e a deseducação da comida rápida já irem abastardando muitos dos nossos tesouros da arte de bem comer. Que é diferente de comer bem, mas isso parece que não interessa para nada.
quinta-feira, janeiro 10, 2008
Esta Quinta Feira
Manuel Alcántara, poeta, escritor e jornalista andaluz, cumpre hoje 80 anos. Sendo quinta feira, que melhor homenagem do que postar um poema seu assim intitulado?
Este Jueves
Este jueves depende de tu boca.
Debes cuidarlo igual que un parque a un niño,
como cuida el otoño cada hoja
y le procura el aire necesario
para que se reúna con las otras.
Mira este jueves. No lo sabe. Míralo
acercarse a nosotros entre sombras.
y ocupar la ciudad como un ejército
que no pensara nunca en su derrota.
Será jueves en todo. Está de paso
pero quiere vivir de luces propias.
Entrará en la oficina de mañana,
a mediodía contará sus horas
y se quedará al norte de las cartas
que desde que se escriben son remotas.
Mira cómo se acerca hasta nosotros:
viste de azul y herencias sigilosas,
establece su número y su luna
el tiempo siendo jueves en las cosas!
Cuídalo tú que puedes, no le dejes
que tal día haga un año en la memoria.
Mira cómo se acerca a la ventana
sin saber que depende de tu boca.
Para pasar un día con nosotros
ha salido este jueves de sus sombras.
Manuel Alcántara
quarta-feira, janeiro 09, 2008
Uma mulher à frente do seu tempo
“Viver é envelhecer, nada mais”
Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir, mais conhecida como Simone de Beauvoir, nasceu em Paris há exactamente um século, no dia 9 de Janeiro de 1908.
Originária de uma família burguesa e educada segundo uma rígida moral cristã, esta romancista, ensaísta, memorialista, dramaturga e filósofa existencialista francesa haveria de marcar grande parte do século XX, não só pela sua relação aberta e livre de peias com outro “monstro sagrado” da cultura francesa e mundial - Jean-Paul Sartre – mas, sobretudo, pela sua obra, de que se destaca “O segundo sexo”, considerado um dos livros filosóficos mais relevantes do século, cuja publicação ocorreu em 1949 (por coincidência, o ano em que eu nasci) e que constituiu um rotundo êxito de vendas.
Num mundo acabado de sair da II Guerra Mundial, ainda longe do “make love not war” dos anoos sessenta e do Maio de 68, uma mulher falar, como refere Ana Marques Leitão no DN de hoje, em “sensibilidade vaginal", "espasmo clitoridiano" ou "orgasmo masculino", escandalizou muita gente conservadora mas também alguma esquerda (como Albert Camus), para não falar da Igreja Católica, que colocou a obra no Index Librorum Prohibitorum.
Eu já tive a obra em português de Portugal mas, de momento, não sei onde para, pelo que me permito reproduzir duas passagens que encontrei por aí:
“É certo que o papel sexual da mulher é, em grande parte passivo; viver imediatamente essa situação passiva não é tão masoquista como a actividade do macho é sádica; a mulher pode transcender as carícias, a comoção, a penetração para o seu próprio prazer…; ela pode também procurar a união com o amante e entregar-se-lhe, o que significa uma superação de si e não uma abdicação.”
“O casamento incita o homem a um imperialismo caprichoso; a tentação de dominar é a mais universal, a mais irresistível que existe; entregar o filho à mãe, entregar a mulher ao marido é cultivar a tirania na terra.”
“Uma ligação, ao estabilizar-se, acaba por assumir frequentemente um carácter familiar e conjugal; nela se reencontram o tédio, o ciúme, a prudência, o ardil, todos os vícios do casamento. E a mulher sonha com outro homem que a tire dessa rotina”
terça-feira, janeiro 08, 2008
INDESCRIPTIBLE
Esperar es peor que nacer,
porque solamente espera el que se muere
de esperar sin hacerse con la vida
otra cosa que esperar. El esperarte.
Y atada a esa tu espera que me gasta
y que gasta tu vida sin traerte,
aquí me estoy muriendo de ansiedades
porque cabe, tremenda, esta esperanza.
Cada día, oh tú que te retrasas!
sin saber que nos vamos alejando,
es menor la distancia irreparable
de pensar, de esperar, que nos aleje.
Y aquí sigo esperando, nada intento
por huir al tormento de tu espera.
Ya no sé si allá fuera de mi vida
quedan otros o no, queda quien ande!
solamente por ti, por cuando llegues,
a solas esperándote te espero.
Carmen Conde*
*poetisa espanhola
(no 12º aniversário do seu falecimento)
segunda-feira, janeiro 07, 2008
Biografia Sintática
Eu, substantivo, na ação verbal
Como objeto jamais quis permanecer.
Nutri em vida o ledo sonho
De como sujeito me enternecer.
Fui infeliz na sintaxe da vida,
Pois primeiro me coube a função
Completiva de outro nome
Por imposição de um Ser.
Tornei-me passivo e subordinado,
Com deveras esforço, galguei novo cargo.
Como adjunto caracterizei um cognato
Desses mais aclamados.
Tempos passados me coordenaram
E por meros instantes me orgulhei,
Mas quis o sádico destino alomorfizado
Que eu fosse somente um derivado.
No processo verbal, deixaram-me,
Sem me consultar, no predicado.
Tolo eu fui, pois não me permitiram nuclear...
Completei, assim, um indiferente verbo irregular.
Sofri a farfalhada zombaria
De ingratas preposições....
Delas nada mais se pode esperar,
E a pena caridosa das interjeições
Suspirando seus ai, ais!
Ao meu lugar me pus
E aceitei a passividade do termo,
Quando me promoveram à categoria
De objeto direto, mas por não confiarem,
Fui impiedosamente pleonastiquizado.
A pena, cumpri sem questionar,
Pois esperanças mantive de me verbalizar;
E na diferente construção,
Enfim me realizar.
Não tive a sorte
E no período vaguei
Sem fixa posição,
Totalmente sem lugar.
Quando por fim a notícia tive,
Estava a me deslocar.
Convidaram-me para sujeito
E nem pude acreditar.
De gala me vesti
Todo, inteiro e aprumado
Com o sorriso exposto compareci
Para ser apenas indeterminado.
Magoado com os termos
Faltando a concordância
Brigado com a regência
Desisti da sintaxe...
E fui ser anacoluto na vida.
Alberto da Cruz*
*poeta brasileiro contemporâneo
domingo, janeiro 06, 2008
Cenas da vida brasileira
Marques Rebelo é o pseudónimo literário de Edi Dias da Cruz, nascido no Rio de Janeiro em 6 de Janeiro de 1907.
Escritor, jornalista, contista, novelista, romancista e membro da Academia Brasileira de Letras, publicou inúmeros livros, quase todos dedicados à sua cidade natal.
De "Cenas da Vida Familiar" reproduzo os textos intitulados Cenas da vida brasileira:
1. Como o governador enjoasse de ovos, correram os amigos e coseram as bundinhas de todas as galinhas.
2. — Na sua casa há muitos escorpiões?
E João Alfonsus:
— Para o gasto.
3. O homem nunca tinha visto o mar. Um dia, viu-o.
— Então?
— Muito chique, muito distinto...
4. Conversinha:
— Que tal a estrada?
— Boa para avião.
5. Há uma razão para que o povo não goste muito do Sr. Rubem Braga:
— Que tal acha a nossa terra? perguntaram-lhe.
— Bom lugar para se construir uma cidade.
6. A casa mais colonial de Sabará foi construída no ano passado.
7. O café do falecido Aristides ficava na praça mais importante, daí sua freguesia ser numerosa.
As moças chegavam, sentavam e pediam:
— Sorvete de chocolate, seu Aristides.
Aristides era amável, tinha coisas engraçadas:
— O sorvete acabou, mas tem guaraná geladinho, muito bom, muito diurético.
Marques Rebelo
sábado, janeiro 05, 2008
Contra os Julgadores
Este poema tem mais de 300 anos, pois o seu autor, Manuel Botelho de Oliveira, faleceu em 5 de Janeiro de 1711. Mas, mutatis mutandis (o que em português, com evolução semântica por via popular, se pode traduzir por “chamar os bois pelos nomes”), é perfeitamente aplicável ao que se passa, hoje em dia, em Portugal, quer no dito cujo Ministério, quer em tantos outros, não só ao nível dos detentores do mandato popular mas, principalmente, ao nível dos restantes intervenientes, os que estão nos vários níveis da cadeia dos Serviços Públicos (Esmeralda, quem é? Casa Pia, o que é? Corporação dos Juízes, existe? Morrer à espera de um atendimento de urgência, onde se viu? A TLEBS, que quer isso dizer? Deserto ao sul do Tejo, onde? Etc, etc, ect…).
Que julgas, ó ministro de Justiça?
Por que fazes das leis arbítrio errado?
Cuidas que dás sentença sem pecado,
Sendo que algum respeito mais te atiça?
Para obrar os enganos da injustiça,
Bem que teu peito vive confiado,
O entendimento tens todo arrastado
Por amor, ou por ódio, ou por cobiça.
Se tens amor, julgaste o que te manda;
Se tens ódio, no inferno tens o pleito,
Se tens cobiça, é bárbara, execranda.
Oh miséria fatal de todo o peito!
Que não basta o direito da demanda,
Se o julgador te nega esse direito.
Manuel Botelho de Oliveira
sexta-feira, janeiro 04, 2008
A Venezuela vista do México (II)
Remar contra a corrente
Hugo Chávez não pode ganhar a prova de força pela décima-primeira vez consecutiva. Seu projeto de reforma constitucional foi derrotado nas urnas. Alcançou 49,29% dos votos. Muito aquém do apoio que teve quando foi eleito presidente com 63% dos sufrágios, ou quando do referendo sobre a continuidade de seu mandato, quando conseguiu 59%.
Aqueles que acusavam o mandatário de ditador e de tirano tiveram todas as garantias para fazer campanha contra a reforma constitucional. A televisão, o rádio, a imprensa disseram o que quiseram contra ela. Uma ou outra vez a oposição ocupou as ruas. Seus questionamentos sobre a imparcialidade do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) foram infundados. O presidente aceitou sua derrota sem hesitação e com rapidez.
Luis Hernández Navarro
Artigo completo aqui.
quinta-feira, janeiro 03, 2008
Sabia que...(esclarecimento)
Quando iniciei a série de postas intituladas Sabia que..., um anónimo pediu-me, na caixa de comentários, que indicasse os artigos dos códigos onde tais leis estavam, pois levava a cabo um estudo sobre o assunto. Como lhe retorqui que não dispunha dessa informação, afirmou que, provavelmente, se tratava de lendas urbanas, pelo que não lhe interessavam.
Terminada a série, posso garantir-lhe que, quase de certeza, não são lendas urbanas. As curiosas leis que aqui tenho reproduzido foram recolhidas pelo escritor, colunista e advogado ocasional de meios de comunicação social Alex Wade, com a colaboração de amigos de várias firmas de advogados, e publicados na edição digital do jornal inglês The Times. Eu encontrei-as por mero acaso e pensei que seria divertido publicá-las aqui, em português. No mesmo jornal e por outros colunistas foram publicadas as situações referidas nas séries de postas Bizarrias Judiciais e Disputas laborais insólitas, cuja afixação ainda não terminei.
Caso o referido anónimo esteja a elaborar algum trabalho científico, como depreendi da sua mensagem, poderá contactar o Alex Wade através da sua página pessoal, referindo as 25 leis estranhas por ele divulgadas em 15/08/2007, que certamente obterá ajuda. Até hoje, contactei pessoas de todo o mundo por correio electrónico e sempre obtive resposta, com excepção de dois bem pensantes (eu julgo que eles pensam que são bem pensantes) portugueses, que provavelmente não terão lido as mensagens por pensarem (a repetição é intencional) que tentava vender-lhes algo.
Entretanto, talvez fosse útil procurar na legislação cá do burgo, pois encontrei centenas de leis absurdas de dezenas de países, mas nenhuma de Portugal. Como não acredito que os nossos legisladores sejam menos obtusos do que os seus pares além fronteiras e porque haverá leis com que a ralé nem sonha, dado não serem cumpridas, seria um bom serviço académico prestado ao país.
quarta-feira, janeiro 02, 2008
O paradoxo andante
Eduardo Hughes Galeano é um renomado jornalista e escritor uruguaio, muitas vezes comparado a John Dos Passos e Gabriel García Marquez, mas, infelizmente, pouco conhecido entre nós.
Publicou recentemente (dia 30/12/2007) um interessantíssimo artigo no jornal digital argentino Página 12, intitulado o paradoxo andante, cuja leitura recomendo vivamente. Aqui fica o naco inicial para aguçar o apetite.
Todos os dias, ao ler os diários, assisto a uma aula de história.
Os diários ensinam-me pelo que dizem e pelo que calam.
A história é um paradoxo andante. A contradição move-lhe as pernas. Talvez por isso os seus silêncios dizem mais do que as suas palavras e muitas vezes as suas palavras revelam, mentindo, a verdade.
Dentro em breve será publicado um livro meu chamado Espejos. É algo assim como um história universal, desculpem o atrevimento. "Posso resistir a tudo, menos à tentação", dizia Oscar Wilde, e confesso que sucumbi à tentação de contar alguns episódios da aventura humana no mundo, do ponto de vista dos que não ficaram na fotografia.
Pode-se dizer que se trata de factos não muito conhecidos.
Aqui resumo alguns, apenas uns poucos.
Continue a ler o paradoxo andante
terça-feira, janeiro 01, 2008
Receita de Ano Novo
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummond de Andrade
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