quarta-feira, dezembro 11, 2013

Canção última

É um tempo em que já não haveria memórias partilháveis
partilhadas. Ou só enterradas nas areias dos poços.
Vestígios no deserto: a surdez dos ecos – a água só imaginada.

Chegou esse tempo.

Não aquele outro em que a espécie, o humano citaria
como suas todas as impossíveis imagens de todos os mundos
que habitara, perdera e inventara: a declinação da rosa

disparando e constelando o fogo sem nome e sem número.

Não esse tempo em que o humano devolveria à espécie
o horizonte do imenso poema inacabado
que no perpétuo regresso de cada verso repete a origem.

Antes este tempo do constante regresso ao tempo
que nos dividiu e divide e
dividirá ainda; que uns contra os outros atira os nossos
e os vira de costas, herdeiros perdidos da sua herança.

Chegou esse tempo.

Chegou. Não pára de chegar o tempo extremo
o tempo da ofensa e do extermínio. O tempo
de ninguém.

E se alguém viesse agora ao teu encontro?

E com toda a música que do mundo resta chegasse?
A mais ténue que fosse: essa seria só a memória
de uma flauta nocturna ou aquela que lembrasse o eco

dessa viola chinesa e não chinesa que ele ouvia

e não ouvia dentro de si, vinda em vão do lado de lá
dos desertos oceânicos, da pátria falsa, e do nome
de amor que tantas vezes em falso ao amor damos.

Ou só que levíssima uma aragem fosse por entre os juncos.

Se alguém viesse     pudesse vir
Poderiam ser estes jovens de minas vestidos e explodindo.
Estas crianças que ríspidas e assombradas crescem velozmente

no desastre do ódio.

Nos seus braços transportam, por todo o corpo se vestem
de amorosas armas poucas, de explosivos que são as suas almas.
Como vimes que se enfloram cedo e cedo ardem entre ruínas.

Minuciosas vão, plantando em seu redor o sangue estilhaçado.

Depois irão ocupar os seus retratos sagrados
que já depois de mortas serão ainda beijados pela morte
que entre os seus sem tréguas sem cessar floresce

por vontade dos deuses pestilentos.

- Mas é isto uma criança? Um filho dos humanos?

Serão elas e o seu povo os bárbaros? Mas quem
o diz? De quem se não de bárbaros poderiam ser elas
e ele “os bárbaros” se sequer o fossem?

Como pagarão aqueles que assim os tendo feito assim os chamaram?

Chegou. Não pára de chegar o tempo extremo
o tempo da ofensa e do extermínio. O tempo
das grandes migrações.

O tempo de ninguém.


(poeta eborense que hoje faz 68 anos)

1 comentário:

jrd disse...

Um tempo de tanta gente que é afinal um tempo de ninguém.

Abraço