sábado, dezembro 31, 2011

ESPERANÇA

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
- ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
- Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
- O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

Mario Quintana
E para entrar em 2012…

















… a companhia de um Charles Mignon Brut Rosé Cru surripiado à sanha açambarcadora do vitinho da mirra.
Façam o favor de ser felizes

Para os amigos que se têm dado ao trabalho de me visitar 


sexta-feira, dezembro 30, 2011

A mesma voz 28 depois

em 1978

...e em 2006

Patti Smith nasceu a 30 de Dezembro de 1946
O Pai

1
Um pai morto talvez tivesse
Sido um pai melhor. Melhor ainda
É um pai nado-morto.
Volta sempre a crescer erva sobre a fronteira.
Tem de ser arrancada a erva
Sempre sempre a erva que cresce sobre a fronteira.

2
Gostava que o meu pai tivesse sido um tubarão
E despedaçado quarenta pescadores de baleias
(E eu aprendido a nadar no seu sangue)
A minha mãe uma baleia azul o meu nome Lautréamont
Falecido em Paris
Incógnito em 1871


(escritor alemão falecido em 30 de Dezembro de 1995)

Tradução de João Barrento

quinta-feira, dezembro 29, 2011

Centenário

Retrato de Alves Redol

Porém se por alguém não foi ninguém
cantou e disse  flor  canção  amigo
a si o deve. A si e mais a quem
floriu  cresceu  cantou  lutou consigo.

Homem que vive só não vive bem
morto que morre só é negativo
morrer é separar-se de ninguém
e contudo  com todos  ficar vivo.

Nado-vivo da morte. É isso. É isso.
Uma espécie de forno de bigorna
de corpo imorredoiro que transforma
em fusão o metal do compromisso:
Forjar o conteúdo pela forma:
marrar até morrer.  E dar por isso.

Ary dos Santos

(Alves Redol nasceu a 29 de Dezembro de 1911)
O prazo de validade da escola

o prazo de validade da Escola
está fora do Um
entrego-me nas horas a polir as unhas ao Todo

o buraco da fechadura do mundo
está sujo

as empregadas
fecham as portas e marcam faltas
no supermercado onde vivo

escrevo no quadro está calada vânia
sem a metafísica do sujeito além do mais
o teorema de pitágoras foi de certeza roubado
da internet para testar a professora do armazém

deviam todos vestir a mesma bata para não se distinguir
a bélgica da alemanha da espanha e por aí fora
e também o país às terças feiras
quando toda a gente vai fazer compras
ao armazém de george orwell

as refeições continuam a ser repressivas
ninguém sabe o que come "está bem"
mas ficámos uns com os outros
por causa da noção do todo


(Maria Azenha nasceu em Coimbra a 29 de Dezembro de 1945)

quarta-feira, dezembro 28, 2011

URGÊNCIA DE SER

É urgente inventar
Novos atalhos
Acender novos archotes
E descobrir novos horizontes.

É urgente quebrar o silêncio
Abrir fendas ao tempo
E passo a passo
Habitar outras noites
Coalhadas de pirilampos.

É urgente içar novos versos
Escalar novas metáforas
E trazer esperanças
Realçadas pela angústia.

É urgente partir
Sem medo e sem demora
Para onde nascem os sonhos
Buscar novas artes
De esculpir a vida.


(Armando Artur nasceu em Moçambique a 28 de Dezembro de 1962)

terça-feira, dezembro 27, 2011

VOZ

Voz modelada na certeza irreal
da montanha que respira o húmus do vento,
espalha as sementes vegetais do sal,
nos lagos da terra, único alimento!

E os lagos se vestem de ondas que assaltam
a parede lisa deste quarto fechado:
a abóboda celeste que os anjos asfaltam
dum visgo babado...


(escritor amarantino nascido a 27 de Dezembro de 1923)
happy end

o meu amor e eu
nascemos um para o outro

agora só falta quem nos apresente


(poeta brasileiro falecido a 27/12/1987)

segunda-feira, dezembro 26, 2011

A visita do papa (excerto)

Enquanto o papa não chega
Todos  dão a sua achega*
  
POR  EXEMPLO:

As autoridades convencem com os dentes.

Os deputados erguem as nádegas
para lhes serem metidas moedas na ranhura

Os investidores apostam na sementeira
de guardas republicanos.

Os magistrados justificam o uso
da força com a força do uso.

Os militares apoiam a democracia em
geral e o cão-polícia em particular.

Os tecnocratas correm o fecho-éclair
para fazer luz sobre o assunto.

Os psiquiatras metem o dedo no olho do
cliente para lhe aprofundar os desvios.

Os mestres ensinam os cães particulares
a defecar nos passeios públicos.

Os escritores erguem a voz acima de todas para
dizer que todas as vozes se devem fazer ouvir.

Os funcionários públicos zelam por que tudo
o que não é proibido seja obrigatório.

Os sacerdotes encaminham a alma
para o sétimo céu.

Os internados no manicómio recebem
coleiras novas com o número fiscal.

Os jornalistas dão peidos que abalam a
qualidade de vida da cidade.

O povo digere tudo porque tem
dentes até ao cu.

Os polícias de choque referem-se
às conquistas de Abril.

Os anjos da guarda interceptam os
pacotes com as bombas e explodem.

*Em espírito de profunda caridade pelas legítimas aspirações e valores autênticos da humanidade


(escritor portuense nascido a 23 de Dezembro de 1937)

domingo, dezembro 25, 2011

Jogos de sombras 

Sempre que me procuro e não me encontro em mim,
pois há pedaços do meu ser que andam dispersos
nas sombras do jardim,
nos silêncios da noite,
nas músicas do mar,
e sinto os olhos, sob as pálpebras, imersos
nesta serena unção crepuscular
que lhes prolonga o trágico tresnoite
da vigília sem fim,
abro meu coração, como um jardim,
e desfolho a corola dos meus versos,
faz-me lembrar a alma que esteve em mim,
e que, um dia, perdi e vivo a procurar
nos silêncios da noite,
nas sombras do jardim,
na música do mar...


(poeta brasileiro falecido a 25 de Dezembro de 1930)
Natal

Hoje é dia de Natal.
O jornal fala dos pobres
em letras grandes e pretas,
traz versos e historietas
e desenhos bonitinhos,
e traz retratos também
dos bodos, bodos e bodos,
em casa de gente bem.

Hoje é dia de Natal.

- Mas quando será de todos?

Sidónio Muralha

sábado, dezembro 24, 2011

Puer natus est de Cristóbal de Morales (1500-1553)
Cantam os Wellesley Chamber Singers
The little drummer


enquanto é tempo

ninguém foi ver se eu estava na esquina
ou se, pelo menos, minha palavra estava
e dizia a que veio
batendo de frente
de perfil
de quina

a poesia é um escândalo
atrás do outro
o poeta, um bando
movido à cicatriz
e perdigoto

misto de mártir e meretriz
um poço
um passo
carne de pescoço
alma que foi pro espaço

todo santo dia
morre um de tanto beber
outro de atrofia
poucos de tanto escrever
muitos que ainda iriam ser
e não foram nem sombra
do que poderiam ter sido

ah! não farei um último pedido
a vida é um não sei
e a gente sabe
que é de lei
usar antes que acabe

antes que o peito
como um pneu furado
se esvazie, de tal jeito,
que o coração
ainda vivo
seja prensado, paralisado
sem emoção
sem motivo
sem ar
sem ter conjugado
na primeira pessoa
o verbo amar

Antonio Thadeu Wojciechowski

(poeta paranaense nascido a 24 de Dezembro de 1950)

sexta-feira, dezembro 23, 2011

Nova factura da EDP

长江三峡水利枢纽工程



Potência contratada                   13,30

Consumo                                        25,30

Taxa fixa resíduos sólidos         1,15

Taxa fixa águas residuais           ,75

Taxa variável resíduos sólidos  23,41

Taxa variável água residuais     30,00


Total                                      94,91
 




PARA
TODOS OS AMIGOS DA BLOGOSFERA
UM


 Jolis Sapins


Carla Bruni (palavras e voz) nasceu a 23 de Dezembro de 1967
Boletim Meteorológico

Céu muito nublado   vento
Fraco moderado de sudoeste

Soprando forte nas terras
Altas   aguaceiros em especial

Nas regiões do Norte e Centro
E que serão de neve nos

Pontos mais altos da Serra
Da Estrela e no teu coração.


(poeta vila-verdense nascido a 23 de Dezembro de 1957)

quinta-feira, dezembro 22, 2011

Tudo mudo

A vida muda, muda o ano,
o som, as cores... mudam
e eu aqui, inteiramente mudo,
a contemplar essa mudança,
e mudo eu, nessa mudança,
e muda o mundo, e muda a vida.
Tudo muda, tudo mudo.


(poeta pernambucano nascido a 22 de Dezembro de 1947)

Júlio Pereira nasceu a 22 de Dezembro de 1953

Joe Strummer faleceu a 22 de Dezembro de 2002
Epitáfio para um poeta

As asas não lhe cabem no caixão!
A farpela de luto não condiz
Com seu ar grave, mas, enfim, feliz;
A gravata e o calçado também não.
Ponham-no fora e dispam-lhe a farpela!
Descalcem-lhe os sapatos de verniz!
Não vêem que ele, nu, faz mais figura,
Como uma pedra, ou uma estrela?
Pois atirem-no assim à terra dura,
Ser-lhe-á conforto:
Deixem-no respirar ao menos morto!


(José Maria dos Reis Pereira faleceu a 22 de Dezembro de 1969)

quarta-feira, dezembro 21, 2011

Combate


Carta ao Pai Natal

querido pai natal como poupei um nico de papel e um toco de lápis no ano passado e o rectângulo ainda existe embora pouco cá estou eu novamente para te dizer que o candidato bolo rei voltou a ganhar o governo foi à viola e veio outro que ainda é pior uns paus mandados da troika chefiados por uma alheira de mirandela vinda directamente do tratamento do lixo pela mão do ângelo dos pregos que escolheu para ministro da falta de dinheiro o mago gaspar que não interessou nem ao menino jesus e teve de abandonar belém à pressa para não levar com o cajado do josé não a belém onde se acomoda a esfíngica e eucaliptal figura mai-la sua maria mas a outra belém ali para o médio oriente sabes que quando eu era pequeno nunca ouvi falar de ti era só do presépio dos pastores e dos magos e continuo a pensar que tu não existes e mesmo que esteja enganado os verdadeiros finlandeses devem ter-te enfiado numa espécie de campo de concentração com barreiras de arame farpado para que tu não possas receber cartas nem viajar para a terra dos calaceiros que vegetam no sul da europa isto por aqui já passou de esgoto a céu aberto há muito há duques para todos os gostos o primeiro diz que nós temos de empobrecer para o governo ficar rico e mandou os profs emigrarem para os palops ou para o brasil o gaspar só serve para substituir o vitinho do vamos lá dormir por causa da crise na rtp o álvaro que veio de vancouver quer acabar com os transportes públicos para as respectivas empresas passarem a dar lucro e diz que o problema do desemprego se resolve através dos despedimentos à balda acrescentando que este ano excepcionalmente o natal será no dia 25 de dezembro e o ano terminará às 24 horas do dia 31 o homem da lambreta acha que  quantos mais miseráveis houver mais caridadezinha pode praticar a loira da justiça separou-se do opus dei e agora anda à guerra com o bastonário a catraia das vacas dos peixes e do mau ambiente acha que o ar condicionado tira o cheiro a macho aos homens do ministério e quer facilitar os despejos para aumentar o número dos sem abrigo o gajo das pastagens relvas de seu nome e primeiro de facto põe toda a gente a gargalhar com as suas tiradas tão anedóticas que até as vacas se riem o homem das polícias já as treinou para a bastonada o aguiar anda à volta com os submarinos que metem água o macedo defende que os problemas da saúde se resolvem deixando morrer metade da população e enchendo os bolsos dos melos e dos espírito santo amém do beijoqueiro das feiras ninguém sabe pôs-se na alheta por causa das necessidades e do inquérito aos submarinos do crato não falo cá por coisas mas acho que vamos ficar cada vez mais ignorantes as ministeriais abéculas juntaram-se num episódio especial da teresa dentinhos no forte de são julião da barra para descobrirem novas formas de nos sugarem o tutano desculpa mas tenho de acabar pois tenho de enviar a carta num envelope minúsculo porque  me falta o cuspo e só tenho dinheiro para um quarto de selo se realmente existires e receberes esta manda uma renas leiteiras que estes gajos já exauriram as tetas que havia disponíveis por aqui se houver próximo ano pode ser que isto ainda não seja um “land” do dona de casa “fritz” e encontre um tico de papel para te escrevinhar até lá adeus
O Leão e o Porco

O rei dos animais, o rugidor leão,
Com o porco engraçou, não sei por que razão.
Quis empregá-lo bem para tirar-lhe a sorna
(A quem torpe nasceu nenhum enfeite adorna):
Deu-lhe alta dignidade, e rendas competentes,
Poder de despachar os brutos pretendentes,
De reprimir os maus, fazer aos bons justiça,
E assim cuidou vencer-lhe a natural preguiça;
Mas em vão, porque o porco é bom só para assar,
E a sua ocupação dormir, comer, fossar.
Notando-lhe a ignorância, o desmazelo, a incúria,
Soltavam contra ele injúria sobre injúria
Os outros animais, dizendo-lhe com ira:
«Ora o que o berço dá, somente a cova o tira!»
E ele, apenas grunhindo a vilipêndios tais,
Ficava muito enxuto. Atenção nisto, ó pais!
Dos filhos para o génio olhai com madureza;
Não há poder algum que mude a natureza:
Um porco há-de ser porco, inda que o rei dos bichos
O faça cortesão pelos seus vãos caprichos.

Bocage, in Fábulas

(Manuel Maria Barbosa du Bocage faleceu a 21 de Dezembro de 1805)

terça-feira, dezembro 20, 2011

In memoriam - II


Sérgio Borges (lembram-se do Conjunto Académico João Paulo?) faleceu no Sábado, aos 67 anos de idade.
In memoriam


Carlos Menezes (em primeiro plano), introdutor da guitarra eléctrica em Portugal e primeiro músico de jazz português a obter reconhecimento internacional, faleceu no Domingo, com 91 anos de idade.

Autobiografia

Estive convosco em muitas palavras.
Algumas levaram-me ainda mais perto.
Com outras fiquei apenas mais só.

De muitas não vi que rosto as guardava.
Por outras me dei a quem não pedia.
Onde foram mentira alguém me faltava.
Mas todas cumpri por quem me cumpria.

E passaram ardendo em novos combates,
cobriram silêncios, provaram mistérios,
fizeram amigos que nunca terei.

Por serem verdade me trazem aqui.
E quando as sonhais na vossa esperança,
Um irmão me procura por entre as cidades
com todos os rostos que perdi.

Vítor Matos e Sá,  in Esparsos

(poeta português nascido em Lourenço Marques a 20 de Dezembro de 1927 e falecido em Espanha em 1975, de acidente de viação)

segunda-feira, dezembro 19, 2011

Semântica Electrónica

Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado
Ordeno ao ordenador que me ordenhe o ordenhado
Ordinalmente
Ordenadamente
Ordeiramente.
Mas o desordeiro
Quebrou o ordenador
E eu já não dou ordens
coordenadas
Seja a quem for.
Então resolvo tomar ordens
Menores, maiores,
E sou ordenado,
Enfim - o ordenado
Que tentei ordenhar ao ordenador quebrado.
- Mas - diz-me a ordenança -
Você não pode ordenhar uma máquina:
Uma máquina é que pode ordenhar uma vaca.
De mais a mais, você agora é padre,
E fica mal a um padre ordenhar, mesmo uma ovelha
Velhaca, mesmo uma ovelha velha,
Quanto mais uma vaca!
Pois uma máquina é vicária (você é vigário?):
Vaca (em vacância) à vaca.
São ordens...
Eu então, ordinalmente ordeiro, ordenado, ordenhado,
Às ordens da ordenança em ordem unida e dispersa
(Para acabar a conversa
Como aprendi na Infantaria),
Ordenhado chorei meu triste fado.
Mas tristeza ordenhada é nata de alegria:
E chorei leite condensado,
Leite em pó, leite céptico asséptico,
Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético!


(Vitorino Nemésio nasceu a 19 de Dezembro de 1901)

Édith Piaf nasceu a 19 de Dezembro de 1915
Poema Pouco Original do Medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos


(Alexandre O’Neill nasceu a 19 de Dezembro de 1924)

domingo, dezembro 18, 2011

O poder do burburinho

As palavras se prestam
a múltiplos fins

Cravo-as com força
na mudez do tempo

Umas, em ruínas
murmuram inaudíveis

Outras vão além e
à beira-chuva -

por brancura -
morrem comigo

Comigo morre
a tagarelice

Jorge Lúcio de Campos

(poeta carioca)

sábado, dezembro 17, 2011

Peneirando estrelas

O açude é um enorme espelho,
prata pura,
emoldurado pelo pampa.
A névoa cai no campo,
vai envolvendo a alma,
e aprofundando a minha soledade.
Olhar na lua, peneiro tristezas.
As pequenas se espalham no breu da noite,
transmutadas em vagalumes.
As grandes ficam presas na rede da saudade.
E, quem sabe,
para mitigar a minha solidão,
o Velho Patrão vai peneirando estrelas,
que riscam o quadro-negro do universo,
deixando-as cair,
estrelas cadentes,
traços dourados de giz na imensidão.


(poeta gaúcho nascido a 17 de Dezembro de 1935)
Partida


sexta-feira, dezembro 16, 2011


Rafael Alberti nasceu a 16 de Dezembro de 1902
O pássaro cativo

Armas, num galho de árvore, o alçapão
E, em breve, uma avezinha descuidada,
Batendo as asas cai na escravidão.
Dás-lhe então, por esplêndida morada,
Gaiola dourada;

Dás-lhe alpiste, e água fresca, e ovos e tudo.
Por que é que, tendo tudo, há de ficar
O passarinho mudo,
Arrepiado e triste sem cantar?
É que, criança, os pássaros não falam.

Só gorjeando a sua dor exalam,
Sem que os homens os possam entender;
Se os pássaros falassem,
Talvez os teus ouvidos escutassem
Este cativo pássaro dizer:

"Não quero o teu alpiste!
Gosto mais do alimento que procuro
Na mata livre em que voar me viste;
Tenho água fresca num recanto escuro

Da selva em que nasci;
Da mata entre os verdores,
Tenho frutos e flores
Sem precisar de ti!

Não quero a tua esplêndida gaiola!
Pois nenhuma riqueza me consola,
De haver perdido aquilo que perdi...
Prefiro o ninho humilde construído

De folhas secas, plácido, escondido.
Solta-me ao vento e ao sol!
Com que direito à escravidão me obrigas?
Quero saudar as pombas do arrebol!
Quero, ao cair da tarde,
Entoar minhas tristíssimas cantigas!
Por que me prendes? Solta-me, covarde!
Deus me deu por gaiola a imensidade!
Não me roubes a minha liberdade...
Quero voar! Voar!”

Estas cousas o pássaro diria,
Se pudesse falar,
E a tua alma, criança, tremeria,
Vendo tanta aflição,
E a tua mão tremendo lhe abriria
A porta da prisão...


(Olavo Bilac nasceu a 16 de Dezembro de 1865)
Vidro escuro

A mente tudo pode
não deixes que o teu rosto
seja um vitral
onde nem a luz penetra


(Yolanda Morazzo Lopes da Silva nasceu em São Vicente, Cabo Verde, a 16 de Dezembro de 1927 e faleceu em Lisboa em 28 de Janeiro de 2009)

quinta-feira, dezembro 15, 2011

Arte sem idade
















Oscar Niemeyer faz hoje 104 anos
Errante
 
Erra
na areia do alfabeto
o teu desejo
 
entre pedra, céu e linguagem
extrai o vocábulo tardio
 
a claridade rasga a folhagem
e cristaliza tua mão
errante
 
Suor e solidão.

Jorge Henrique Bastos

(poeta paraense

quarta-feira, dezembro 14, 2011


Jane Birkin nasceu a 14 de Dezembro de 1946
Gritar

Aqui a acção simplifica-se
Derrubei a paisagem inexplicável da mentira
Derrubei os gestos sem luz e os dias impotentes
Lancei por terra os propósitos lidos e ouvidos
Ponho-me a gritar
Todos falavam demasiado baixo falavam e escreviam
Demasiado baixo

Fiz retroceder os limites do grito

A acção simplifica-se

Porque eu arrebato à morte essa visão da vida
Que lhe destinava um lugar perante mim

Com um grito

Tantas coisas desapareceram
Que nunca mais voltará a desaparecer
Nada do que merece viver

Estou perfeitamente seguro agora que o Verão
Canta debaixo das portas frias
Sob armaduras opostas
Ardem no meu coração as estações
As estações dos homens os seus astros
Trémulos de tão semelhantes serem

E o meu grito nu sobe um degrau
Da escadaria imensa da alegria

E esse fogo nu que me pesa
Torna a minha força suave e dura

Eis aqui a amadurecer um fruto
Ardendo de frio orvalhado de suor
Eis aqui o lugar generoso
Onde só dormem os que sonham
O tempo está bom gritemos com mais força
Para que os sonhadores durmam melhor
Envoltos em palavras
Que põem o bom tempo nos meus olhos

Estou seguro de que a todo o momento
Filha e avó dos meus amores
Da minha esperança
A felicidade jorra do meu grito

Para a mais alta busca
Um grito de que o meu seja o eco.


(poeta da Resistência francesa, nascido a 14 de Dezembro de 1895)

Tradução de António Ramos Rosa

terça-feira, dezembro 13, 2011


Amy Lee nasceu a 13 de Dezembro de 1981
Impressionista

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.


(poetisa mineira nascida a 13 de Dezembro de 1935)

segunda-feira, dezembro 12, 2011

A Luz que Vem das Pedras

A luz que vem das pedras, do íntimo da pedra,
tu a colhes, mulher, a distribuis
tão generosa e à janela do mundo.
O sal do mar percorre a tua língua;
não são de mais em ti as coisas mais.
Melhor que tudo, o voo dos insectos,
o ritmo nocturno do girar dos bichos,
a chave do momento em que começa o canto
da ave ou da cigarra
- a mão que tal comanda no mesmo gesto fere
a corda do que em ti faz acordar
os olhos densos de cada dia um só.
Quem está salvando nesta respiração
boca a boca real com o universo?

Pedro Tamen

Posta dedicada à minha companheira, com quem casei faz hoje 35 anos

domingo, dezembro 11, 2011

Paisagens

o verão estende a sua sombra até aos joelhos
em que a luz se dobra: a isso chamávamos Outono

Na campânula do nevoeiro o plátano
incendeia a cinza: oiro e vermelho
inverosímeis como uma tempestade
eléctrica no écran da janela;
uma floração delirante do olhar
afectado pelo crepúsculo
recordado na paixão.
Depois
a água gris lavará tudo
excessivamente.


(poeta eborense nascido a 11 de Dezembro de 1945)

sábado, dezembro 10, 2011

DESERTO URBANO

se me derem um deserto para viver.
do deserto selecciono a minha independência
para ver ao longe aquilo que ao perto
já não amanhece.
e no grande livro do nada
uma conjunção avermelhece
como estrutura transitiva,
como massa de água que resolve as luzes
e ainda assim ilumina todas as raízes.
e por fim desejo não ter de escolher as palavras.
que os dias sejam levados com os astros.
que o meu segredo seja um exercício infinito,
mapa para nenhuma coisa.


(poetisa farense nascida a 10 de Dezembro de 1984)

sexta-feira, dezembro 09, 2011

Dá-me a Tua Mão

Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.

De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.


(poetisa brasileira de origem ucraniana, falecida a 9 de Dezembro de 1977)

quinta-feira, dezembro 08, 2011

An American Prayer

Do you know the warm progress under the stars?
Do you know we exist?
Have you forgotten the keys to the Kingdom?
Have you been borne yet and are you alive?

Let's reinvent the gods, all the myths of the ages
Celebrate symbols from deep elder forests
[Have you forgotten the lessons of the ancient war?]

We need great golden copulations
The fathers are cackling in trees of the forest
Our mother is dead in the sea

Do you know we are being led to slaughters by placid admirals
and that fat slow generals are getting obscene on young blood?
Do you know we are ruled by T.V. ?

The moon is a dry blood beast
Guerilla bands are rolling numbers in the next block of green vine
amassing for warfare on innocent herdsmen who are just dying

Oh great creator of being grant us one more hour to perform our art & perfect our lives

The moths and atheists are doubly divine and dying
We live, we die and death not ends it

Journey we more into the Nightmare
Cling to life our passion'd flower
Cling to cunts and cocks of despair

We got our final vision by clap
Columbus' groin got filled with green death
(I touched her thigh & death smiled)

We have assembled inside this ancient and insane theatre
To propagate our lust for life  flee the swarming wisdom of the streets
The barns are stormed
The windows kept and only one of all the rest
To dance and save us
With the divine mockery of words

Music inflames temperamento

(When the true King's murderers are allowed to roam free a 1000 magicians arise in the land)

Where are the feasts we were promised
Where is the wine
The New Wine?
(dying on the vine)


(Jim Morrison nasceu a 8 de dezembro de 1943)



Alma a Sangrar

Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?

Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?

Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Teresa em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?

Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
- Sem nos dar braços para os alcançar?!...


(Florbela Espanca nasceu a 8 de Dezembro de 1894 e faleceu a 8 de dezembro de 1930)

quarta-feira, dezembro 07, 2011

Meu Camarada e Amigo

Revejo tudo e redigo
meu camarada e amigo.
Meu irmão suando pão
sem casa mas com razão.
Revejo e redigo
meu camarada e amigo

As canções que trago prenhas
de ternura pelos outros
saem das minhas entranhas
como um rebanho de potros.
Tudo vai roendo a erva
daninha que me entrelaça:
canção não pode ser serva
homem não pode ser caça
e a poesia tem de ser
como um cavalo que passa.

É por dentro desta selva
desta raiva   deste grito
desta toada que vem
dos pulmões do infinito
que em todos vejo ninguém
revejo tudo e redigo:
Meu camarada e amigo.

Sei bem as mós que moendo
pouco a pouco trituraram
os ossos que estão doendo
àqueles que não falaram.

Calculo até os moinhos
puxados a ódio e sal
que a par dos monstros marinhos
vão movendo Portugal
- mas um poeta só fala
por sofrimento total!

Por isso calo e sobejo
eu que só tenho o que fiz
dando tudo mas à toa:
Amigos no Alentejo
alguns que estão em Paris
muitos que são de Lisboa.
Aonde me não revejo
é que eu sofro o meu país.


(José Carlos Ary dos Santos nasceu a 7 de Dezembro de 1937)