Homens do futuro  
Homens do futuro:   
ouvi, ouvi este poeta ignorado 
que cá de longe fechado numa gaveta 
no suor do século vinte 
rodeado de chamas e de trovões, 
vai atirar para o mundo 
versos duros e sonâmbulos como eu. 
Versos afiados como dentes duma serra em mãos de injúria. 
Versos agrestes como azorragues de nojo. 
Versos rudes como machados de decepar. 
Versos de lâmina contra a Paisagem do mundo 
- essa prostituta que parece andar às ordens dos ricos 
para adormecer os poetas.   
Fora, fora do planeta, 
tu, mulher lânguida 
de braços verdes 
e cantos de pássaros no coração! 
Fora, fora as árvores inúteis 
- ninfas paradas 
para o cio dos faunos 
escondidos no vento...   
Fora, fora o céu 
com nuvens onde não há chuva 
mas cores para quadros de exposição!   
Fora, fora os poentes 
com sangue sem cadáveres 
a iludir-nos de campos de batalha suspensos!   
Fora, fora as rosas vermelhas, 
flâmulas de revolta para enterros na primavera 
dos revolucionários mortos na cama!   
Fora, fora as fontes 
com água envenenada da solidão 
para adormecer o desespero dos homens! 
Fora, fora as heras nos muros 
a vestirem de luz verde as sombras dos nossos mortos sempre 
de pé!   
Fora, fora os rios 
a esquecerem-nos as lágrimas dos pobres!   
Fora, fora as papoilas, 
tão contentes de parecerem o rosto de sangue heróico dum 
fantasma ferido!   
Fora, fora tudo o que amoleça de afrodites 
a teima das nossas garras 
curvas de futuro!   
Fora!  Fora!  Fora!  Fora! 
Deixem-nos o planeta descarnado e áspero 
para vermos bem os esqueletos de tudo, até das nuvens. 
Deixem-nos um planeta sem vales rumorosos de ecos húmidos 
nem mulheres de flores nas planícies estendidas. 
Um planeta feito de lágrimas e montes de sucata 
com morcegos a trazerem nas asas a penumbra das tocas. 
E estrelas que rompem do ferro fundente dos fornos! 
E cavalos negros nas nuvens de fumo das fábricas! 
E flores de punhos cerrados das multidões em alma! 
E barracões, e vielas, e vícios, e escravos 
a suarem um simulacro de vida 
entre bolor, fome, mãos de súplica e cadáveres, 
montes de cadáveres, milhões de cadáveres, silêncios de cadáveres 
e pedras!   
Deixem-nos um planeta sem árvores de estrelas 
a nós os poetas que estrangulamos os pássaros 
para ouvirmos mais alto o silêncio dos homens 
- terríveis, à espera, na sombra do chão 
sujo da nossa morte.
(José Gomes Ferreira faleceu a 8 de Fevereiro de 1985)