domingo, fevereiro 28, 2010

Pensamentos

No tempo da ditadura havia algumas dezenas de jornalistas, pessoas de uma estirpe intelectual fora do vulgar e que mantinham a coluna vertebral direita contra ventos e marés, que utilizavam todos os artifícios da língua para fazerem passar a sua mensagem de liberdade.

Nos dias que correm há centenas de auto-intitulados jornalistas, seres invertebrados rastejantes e intelectualmente abaixo de cão, que utilizam as artimanhas mais ignóbeis para conspurcar e caluniar quem não concorda com aqueles a que se vendem por uns patacos.

Ao tempo do jornalismo sério, pago tantas vezes com prisão e tortura, naturalmente prefiro o tempo dos caluniadores acéfalos e impunes, que agora até se reclamam de defensores de uma tal liberdade de expressão pela qual nunca tiveram de lutar; apenas deixei de cheirar a tinta dos jornais transformados em cloacas de galinhas sem tino. Felizmente, o digital ainda não transmite fedores físicos.
Pesquisa

A gaivota determinada mergulha na água
Verde. Há um tempo para o peixe
E um tempo para o pássaro
E dentro e fora do homem
Um tempo eterno de solidão.
Muitas vezes, fixando o meu olhar no morto,
Vi espaços claros, bosques, igapós,
O sumidouro de um tempo subterrâneo
(Patético, mesmo às almas menos presentes)
Vi, como se vê de um avião,
Cidades conjugadas pelo sopro do homem,
A estrada amarela, o rio barrento e torturado,
Tudo tempos de homem, vibrações de tempo,  vertigens.

Senti o hálito do tempo doando melancolia
Aos que envelhecem no escuro das boîtes,
Vi máscaras tendidas para o copo e para o tempo.
Com uma tensão de nervos feridos
E corações espedaçados.
Se acordamos, e ainda não é madrugada,
Sentimos o invisível fender do silêncio,
Um tempo que se ergue ríspido na escuridão.
Cascos leves de cavalos cruzam a aurora.
O tempo goteja
Como o sangue.
Os cães discursam nos quintais, e o vento,
Grande cão infeliz,
Investe contra a sombra.

O tempo é audível; também se pode ouvir a eternidade.

sábado, fevereiro 27, 2010

Poncha da paz
















Disse o imperador da Madeira que estava enterrado o machado de guerra com o governo do contenente.  Como nem ele nem Sócrates devem fumar cachimbo, provavelmente vão para o Pico do Areeiro beber a poncha da paz.
Esta situação

E a senhora dos filhos e dos gritos e da malha
não falha nenhum dia chega sempre à mesma hora
Poderás ser feliz: basta mudar de esplanada
mas acredita não resolve nada
a mesma água vem na mesma calha
e é tudo como antes para aquele que chora:
a mudança é fatal até para a face mudada
Já nela havia rugas e era fresca e corada
A cara da senhora? Não. Mas espera, talvez
o que eu disse estivesse já dito de vez
E eu só amanhã me vou ontem embora

sexta-feira, fevereiro 26, 2010

Jogo sujo

Depois das notícias de que o Goldman Sachs e outros bancos ajudaram a mascarar a dívida pública da Grécia, foi agora posta a nu a existência de um esquema que é uma espécie de pescadinha de rabo na boca ou, como disse um especialista alemão, “é como comprar um seguro de incêndio para proteger a casa do vizinho - cria-se um incentivo para queimar a casa”.

Através de contratos conhecidos como credit-default swaps, os bancos e gestores de fundos de cobertura apostam na bancarrota de uma empresa ou, no caso da Grécia, de um país. Se a Grécia falhar o pagamento da dívida, os que possuírem tais derivados ganham (muito) dinheiro.

Tudo começou em Setembro quando uma pouco conhecida empresa londrina, com o apoio do Goldman Sachs, do JP Morgan Chase e de mais um dúzia de outros bancos lançou um índice (iTraxx SovX Western Europe Índex), criando a tal pescadinha de rabo na boca: à medida que os bancos e outras entidades se apressam a investir naquele derivado, o custo de segurar a dívida grega cresce; alarmados por este sinal de baixa do mercado, os investidores em obrigações fogem das obrigações do tesouro gregas, tornando mais difícil a emissão de dívida para o governo se financiar; isso, por sua vez, aumenta a ansiedade e tudo recomeça, numa espiral de afundamento permanente, como é claramente explicado neste artigo. E se a Grécia se afunda, há outros candidatos a seguirem-lhe o exemplo, a começar pelos outros membros do grupo chamado dos PIIGS (um acrónimo insultuoso que joga com o termo inglês “porcos”) do qual fazemos parte, embora pela minha experiência pessoal sejamos muito menos porcos do que outros que se consideram limpinhos.

Entretanto, pressionada pelo criticismo generalizado dos líderes europeus, a Reserva Federal, numa atitude nunca vista, vai analisar o que andam a fazer a este respeito os malabaristas de Wall Street. Espero que a mão não lhe doa.
A candura

Vê tu, disse eu comigo lendo o Poeta,
quanto é rica e feliz a ingenuidade
e quanto é pobre e vã a sapiência.
Onde a idade ensinou a acautelar-nos
decresceu a fortuna e estreita a vida,
e facilmente desditosa e inerte
basta a nuvem sombria para a deter.
E onde a candura virgem não sonhou
conselhos timoratos da experiência,
logo a vida é perene e esparge bênçãos.
quer o céu brilhe no fulgor do sol,
quer tormentosas nuvens o escureçam.

quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Na corda bamba

Decorre desde as 10 da manhã (hora de Washington) de hoje uma espécie de cimeira entre Democratas e Republicanos, presidida por Obama e televisionada para todos o país, com vista a encontrar uma solução para a prestação de cuidados de saúde, uma das bandeiras da campanha do actual Presidente.

Goste-se ou não de Barack Obama, é necessário reconhecer que é muito o que está em causa, não só para os Estados Unidos mas também para o resto do mundo.

Por um lado, os Estados Unidos já gastam 17% do seu PIB na prestação de cuidados de saúde, o que corresponde a mais do dobro da média dos países desenvolvidos, e continua a ter perto de 50 milhões de cidadãos fora do sistema, aparecendo no 37º lugar na lista da OMS em termos de cobertura dos cidadãos. Na mortalidade infantil, por exemplo, caíram da 12ª posição, em 1960, para a 30ª, em 2005. Se não for encontrada uma solução que aumente drasticamente a eficiência, prestando cuidados de saúde a muitas mais pessoas com custos significativamente reduzidos, poderá estar em causa a bancarrota de centenas ou milhares de empresas (os males da GM e da Chrysler tiveram a sua origem, em grande parte, na incapacidade de fazer face aos custos com cuidados de saúde contratualmente garantidos aos seus empregados) e, em última instância, do próprio país, o que só alguém completamente louco e fanático poderá desejar.

Por outro lado, se Obama não conseguir fazer aprovar legislação significativa neste particular, dificilmente conseguirá fazê-lo noutras áreas fulcrais da governação, desde o emprego à regulação bancária, passando pela energia, pela responsabilidade orçamental ou outras políticas macro económicas. E todos estamos a sentir na pele aquilo a que pode conduzir a desregulação das instituições financeiras.

O economista e colunista britânico Anatole Kaletsky dá-nos, no Times de hoje, uma panorâmica do que pode estar em causa a nível global se a cimeira de hoje falhar. Para ler e meditar.
Sentir

Amor não é paixão
Às vezes vem de lá
Às vezes, não.

Paixão não é amor
Às vezes chega lá
Às vezes, não.

Sexo não é paixão nem amor
Às vezes toca lá
e às vezes, não.


*poetisa, compositora, escritora, jornalista e intérprete brasileira

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

A cavalo no vento 

A cavalo no vento sobrevoo
o destino sombrio deste porto,
aonde um rio vem morder o vulto
do mar confuso.
                           Ó mar despedaçado,
mordido em tanto flanco, o sobressalto
dos teus ombros nervosos já sacode
a terra toda!

E para quê mais portos
agressores, estaleiros rancorosos,
onde em surdina e sombra se conspira
contra a vida. . .?

. . . Contra a vida do mar e o seu poder
que só um corpo nu deve merecer!

terça-feira, fevereiro 23, 2010

A palavra

A palavra gatinha
Sem nada por cima
A palavra rompe
              investe
                    perfura
Comprida a palavra perde-se
Em redor da mesa reveste-se organiza-se
A palavra precisa de ternura

Excesso insuportável de palavras inúteis



Pedro Tadeu, no Diário de Notícias de hoje.

Até há poucas semanas nunca tinha ouvido falar de Pedro Tadeu. Continuo a desconhecer em absoluto quem é, a não ser que escreve, esporadicamente, umas crónicas no DN. Mas está carregado de razão, neste país de necrófagos.

segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Perguntas

Onde estavas tu quando fiz vinte anos
E tinha uma boca de anjo pálido?
Em que sítio estavas quando o Che foi estampado
Nas camisolas das teen-agers de todos os estados da América?
Em que covil ou gruta esconderam as suas armas
Para com elas fazer posters cinzeiros  e emblemas?
Onde te encontravas quando lançaram mão a isto?
E atrás de quê te ocultavas quando
Mataram Luther King para justificar sei lá que agressões
Ao mesmo tempo que víamos Música no Coração
Mastigando chiclets numa matinée do cinema Condes?
Por onde andavas que não viste os corações brancos
Retalhados na Coreia e no Vietname
Nem ouviste nenhuma das canções de Bob Dylon
Virando também as costas quando arrasaram Wiriammu
E enterraram vivas
Mulheres e crianças em nome
De uma pátria una e indivisível?
Que caminho escolheram os teus passos no momento em que
Foram enforcados os guerrilheiros negros da África do Sul
Ou Alende terminou o seu último discurso?
Ainda estavas presente quando Victor Jara
Pronunciou as últimas palavras?
E nem uma vez por acaso assististe
Às chacinas do Esquadrão da Morte?
Fugiste de Dachau e Estalinegrado?
Não puseste os pés em Auschwitz?
Que diabo andaste a fazer o tempo todo
Que ninguém te encontrou em lugar algum.

Joaquim Pessoa, in Os dias da Serpente - 1981

(no seu 62º aniversário)

domingo, fevereiro 21, 2010

Manifestações

Houve ontem duas manifestações, separadas por algumas horas, mais de 300 quilómetros de distância e grandes diferenças em número de manifestantes, mas cujos objectivos se distinguiram por uma letrinha apenas: uma, na capital, com a finalidade de discriminar todos aqueles que não vêem o casamento como uma instituição cujo único fim é procriar; a outra, na invicta e convocada expressamente para os média, promovida por jogadores, equipa técnica e dirigentes de um clube de futebol, com vista a descriminar os seus jogadores que se portam dentro do campo e seus anexos como se estivessem a actuar nas noites brancas.

Por mim, não vou à bola nem com uns nem com outros.

sábado, fevereiro 20, 2010

Vómitos

Vómito cor de rosa, chamou-lhe o saudoso Mário Castrim quando o defunto Comércio do Funchal, com pergaminhos na luta contra a ditadura, passou a ser dominado pelos defensores da revolução a todo o vapor, do grande educador da classe operária e companhia, objectivamente postos ao serviço dos homens de monóculo.

Hoje vivemos rodeados de vómitos de muitas cores: o da cor do sol, o expressamente dito, o descaradamente público, o que é entregue pelos CTT com o correio da manhã, o que dura 24 horas, os que trazem escândalos mascarados de notícias, o da uma, o das treze, o das vinte, o da noite, o tele qualquer coisa, o jornal das tantas. Gómitos, golfadas, vomições e nós sem antieméticos.
Ratos

Tem sempre um chato
em cada canto
multiplicando-se
hipócrita
falso santo.

Tem sempre um tonto
em cada sala
multiplicando-se
perdida bala
babando sangue.

Tem sempre um chato
multiplicando-se
como rato tonto

Frederico Barbosa

(no 49º aniversário do autor)

Retirado do seu sítio pessoal

sexta-feira, fevereiro 19, 2010

Jornalismo

O jornalismo é uma catapulta imensa, posta em movimento por ódios mesquinhos.

Honoré de Balzac
DIDÁTICA

A poesia é a lógica mais simples.
Isso surpreende
Aos que esperam ser um gato
Drama maior que o meu sapato.
Ou aos que esperam ser o meu sapato,
Drama tanto mais duro que andar descalço
E ainda aos que pensam não ser o meu andar descalço
Um modo calmo.

(Maior surpresa terão passado
Os que julgam que me engano:
Ah, não sabem o quanto quero o sapato
Nem sabem o quanto trago de humano
Nesse desespero escasso.
Não sabem mesmo o que falo
Em teorema tão claro.

Como não se cansariam ao me buscar os passos
Pois tenho os pés soltos e ando aos saltos
E, se me alcançassem, como se chocariam ao saber que faço
A lógica da verdade pelos pontos falsos).

Jose Carlos Capinan

(no seu 69º aniversário)

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Disparates

Afirma com energia o disparate que quiseres, e acabarás por encontrar quem acredite em ti.

Virgílio Ferreira, in "Escrever"
Quadra

Eu não sei porque razão
certos homens, a meu ver,
quanto mais pequenos são
maiores querem parecer.

António Aleixo

quarta-feira, fevereiro 17, 2010

Ignorância

Ignorância e arrogância são duas irmãs inseparáveis, com um só corpo e alma.

Giordano Bruno,  teólogo, filósofo, padre e escritor italiano queimado na fogueira da inquisição há 410 anos, no dia 17 de Fevereiro de 1600.
A poesia que desce ao poeta

Poeta, ser estranho, ser enigmático entre os seres!
Vejo-o, isolado das cores, das formas e das idéias,
Isolado, nessa crepuscular solidão que o acompanha.

E é então que vejo descer sobre ele
Uma como sombra de celestiais eflúvios:
- A Poesia, a Poesia de inesperadas ressonâncias,
A grande Poesia, que é uma exalação indefinível,
Que é um som infinito, vindo de outras esferas,
Que é a comunicação miraculosa de outros seres
e de outras regiões.

Múcio Leão*

*poeta brasileiro

terça-feira, fevereiro 16, 2010

Carnaval

Que ideia a de que no Carnaval as pessoas se mascaram. No Carnaval desmascaram-se.

Virgílio Ferreira
CHAMA

Um menino
cruzou o meu caminho.
Despido de tudo,
até quase de vida,
restava-lhe, apenas,
no fundo dos olhos,
uma chama pequena,
quase apagada,
de pura inocência.
Dei-lhe um sorriso,
velho e surrado,
de esmola
e fui procurar
a minha chama
perdida...

Luiz Carlos Amorim*

*poeta brasileiro que hoje comemora 57 anos

segunda-feira, fevereiro 15, 2010

Carnaval a dois

Cartoon: Peter Brookes/Times
Meio-dia

Choque de claridades
Palmas paradas
Brilhos saltando nas pedras enxutas.
Batendo de chofre na luz
as andorinhas levam o sol na ponta das asas!

Ronald de Carvalho

domingo, fevereiro 14, 2010

A rotura

Dando o dito por não dito, um candidato a líder da oposição vindo de Bruxelas afirmou que a sua candidatura seria uma rotura com a política socialista que vem a ser seguida nos últimos quinze anos.

Considerando que, nesse período, durante três anos houve dois desgovernos do seu partido, ficámos a saber que considera socialistas as políticas de Barroso e Santana Lopes. Como será mais fácil enfiar um camelo no cu da agulha do que o putativo governo de Rangel fazer algo de diferente, para melhor, daquilo que fizeram os seus comparsas, talvez a apregoada rotura não se refira a uma ruptura com o pensamento dominante mas sim à liderança de um grupo de rotos, quem sabe?!

sábado, fevereiro 13, 2010

Retrato de Catarina Eufémia

Da medonha saudade da medusa
que medeia entre nós e o passado
dessa palavra polvo da recusa
de um povo desgraçado.

Da palavra saudade a mais bonita
a mais prenha de pranto a mais novelo
da língua portuguesa fiz a fita encarnada
que ponho no cabelo.

Trança de trigo roxo
Catarina morrendo alpendurada
do alto de uma foice.
Soror Saudade Viva assassinada
pelas balas do sol
na culatra da noite.

Meu amor. Minha espiga. Meu herói
Meu homem. Meu rapaz. Minha mulher
de corpo inteiro como ninguém foi
de pedra e alma como ninguém quer.

José Carlos Ary dos Santos

sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Os necrófagos

Quando me levantei de madrugada pensei falar de necrófagos, não sei bem porquê, talvez pelo cheiro a cadáver que se sente no ar da baixa pombalina. Hienas que riem, urubus e abutres à espreita ou corvos na bandeira da capital nunca me seduziram, apesar de serem animalejos cada vez mais presentes nos vários níveis da sociedade portuguesa. Mas o céu plúmbeo (um comportamento criminoso do sol, em linguagem popular) alterou-me de tal modo o humor que prefiro ficar-me pelo céu muito nublado com aguaceiros frequentes. E se estivesse sozinho em casa, ia ouvir as quatro missas de requiem que tenho numa caixa de cêdês tripla. Como há boa companhia, vai um tinto alentejano para desanuviar a mente.
As marmotas














Uma já saiu da toca a outra espera a sua vez.

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

O salva, não salva

Sempre que um Estado-Membro se encontre em dificuldades ou sob ameaça de dificuldades devidas a calamidades naturais ou ocorrências excepcionais que não possa controlar, o Conselho, sob proposta da Comissão, pode, sob certas condições, conceder ajuda financeira da União ao Estado-Membro em questão. O Presidente do Conselho informará o Parlamento Europeu da decisão tomada.

É isto que dispõe o artigo 122 do Tratado de Lisboa e a Grécia alega que os ataques dos especuladores se enquadram nas ocorrências excepcionais que não pode controlar. Por isso não percebo porque é que os líderes da UE andaram este tempo todo a encanar a perna à rã e permitiram os disparates do senhor Almunia – que, em nada contribuindo para minorar os problemas gregos, prejudicaram grandemente Portugal (porque é que os deputados do PS não se manifestaram na votação sobre a Comissão Barroso II ?) - para agora se reunirem a correr para discutir a situação grega. Quanto mais que não se trata de arriscar dinheiro dos contribuintes, como se apressaram a fazer com os bancos. Os próprios gregos lembraram que uma antecipação dos fundos estruturais que estão previstos resolveria o problema, havendo ainda várias outras possibilidades, desde a emissão de euro-obrigações até à compra de títulos do Tesouro grego.

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

Liberdade, eis a questão

A questão é esta: há liberdade de imprensa em Portugal? É ociosa, a pergunta, para quem, como eu, vem do tempo em que se escrevia baixinho, tão baixinho que perdêramos muitas das palavras, por mudez e falta de uso. Já me não surpreende a desvergonha de alguns daqueles que têm desfilado nas televisões a proclamar que vivemos numa asfixia. Mas indigna-me o silêncio calculado dos que se não erguem a protestar contra a ambiguidade do assunto.

***

Há algo de torpe neste alvoroço. Um ex-ministro, agora protestador grave e atroz, foi, na sombria década cavaquista, controleiro da RTP. E um dos agora acusadores da falta de liberdade era o zeloso varejeiro do noticiário. Não cauciono, de forma alguma, tentativas de domínio da imprensa pelo poder político. Mas não colaboro neste imbróglio, que tem estimulado a perda do sentido das coisas e a adulteração da verdade histórica. A reabilitação de falsos fantasmas apenas serve para se ocultar a medonha dimensão do que ocorreu na década de 80. Os saneamentos, a extinção de títulos, a substituição de direcções de jornais e a remoção de jornalistas incómodos por comissários flutuantes eram o pão nosso de cada dia. Já se esqueceram?

Baptista-Bastos, In Diário de Notícias
Tempos Sombrios

Realmente, vivemos tempos sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.
Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes,
pois implica em silenciar
sobre tantos horrores.

Bertold Brecht

terça-feira, fevereiro 09, 2010

Podia-ó-calá-lo???


























É inqualificável a intervenção de Paulo Rangel no PE sobre um alegado plano do Governo para controlar os órgãos de comunicação social. A existir mesmo tal plano - o que carece de ser provado, não bastando as diarreias mentais (e logo pela pena de quem!!!) do órgão oficioso do PSD detido pela Opus Dei e por Isabel dos Santos - a sua discussão e respectivas consequências políticas são um assunto interno do país, não tendo qualquer cabimento ou justificação que políticos portugueses o arrastem para palcos internacionais.

A troglodita atitude de Rangel revela duas coisas: primeiro, que para ele tudo vale na política; e depois, que se comporta no Parlamento Europeu como o marido que desconfia que a mulher lhe põe os cornos e, em lugar de averiguar os factos e discuti-los em casa, vai para o café da esquina fazer queixinhas dela.

Imagem: Karim Sahib/AFP/Getty
refeição

lambe a palavra

pelo canto
da boca
escorre
um verbo líquido

o papel não absorve mais
a tinta
das veias

saliva impaciente
por uma página vazia

Andreia Laimer*

*poetisa gaúcha

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Tê-los no sítio

Seja o que for quem pensem acerca dele como pessoa, este é o homem que saiu para o campo no último Sábado, possivelmente o pior dia da sua vida, e teve os “tomates” para marcar o golo da vitória.

Esta é a forma como a colunista Carol Midgley termina um curiosíssimo artigo da passada quinta feira sobre o assunto do momento em Inglaterra: um alegado caso entre o capitão do Chelsea e da selecção, John Terry, e uma modelo de roupa interior que tinha sido companheira de um ex-colega de clube, actualmente no Manchester City. Um caso que incendiou os media ingleses, desde os tablóides aos mais circunspectos (com um coro de indignação a pedir o afastamento do jogador do seu lugar de capitão - pressão a que Fabio Capello já cedeu, manifestações de jogadores do City em apoio do colega que já não vivia com a modelo à data dos alegados factos, invejas mesquinhas pelo ordenado do “mau”, a honra da pátria em perigo, etc.) e chegou, até, à intelectualidade estado-unidense, passando por diversos países europeus.

Quer para quem goste do jogo da bola quer para quem o deteste ou lhe seja indiferente, este artigo é uma verdadeira pedrada no charco e, para mim, fez-me sentir bem por viver no meu país, apesar da porcaria que por ai vai. Afinal, por cá pode ser quase tudo uma grande rasquice mas, parafraseando um dito célebre, sempre é a nossa rasquice e não atinge um nível tão baixo.
Vazio

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo -
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo -
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.

Augusto Frederico Schmidt*

*poeta carioca

domingo, fevereiro 07, 2010

Meu País Desgraçado

Meu país desgraçado!...
e no entanto há Sol a cada canto
e não há Mar tão lindo noutro lado.
Nem há Céu mais alegre do que o nosso,
Nem pássaros, nem águas…

Meu país desgraçado!...
Por que fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram?

Meu Povo
de cabeça pendida, mãos caídas,
de olhos sem fé
- busca, dentro de ti, fora de ti, aonde
a causa da miséria se te esconde.

E em nome dos direitos
que te deram a terra, o Sol, o Mar,
fere-a sem dó
com o lume do teu antigo olhar.

Alevanta-te, Povo!
Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,
a calada censura
que te reclama filhos mais robustos!

Povo anémico e triste,
meu Pedro Sem forças, sem haveres!
- olha a censura muda das mulheres!
Vai-te de novo ao Mar!
Reganha tuas barcas, tuas forças
e o direito de amar e fecundar
as que só por Amor te não desprezam!

Sebastião da Gama

sábado, fevereiro 06, 2010

GUMES DE NÉVOA

Lágrimas?
Ou apenas dois intoleráveis
ardentes gumes de névoa
acutilando-me cara abaixo?

*****
TERRA DE CANAÃ

Não, piloto israelita.
Inútil procurares nos incêndios de Beirute
E nos inocentes corpos mutilados pelos estilhaços ardentes
As belas palavras do Cântico dos Cânticos.

E voa mais baixo.
Desce velozmente mais baixo no teu caça-bombardeiro.
Voa mais baixo. Desce ainda mais baixo piloto hebreu.
Desce até Eichman. Voa até ao fundo dos ascos.
Acelera até os motores e as bombas de fósforo
Contigo oscularem sofregamente o chão sagrado.

Foi para este holocausto que sobreviveste
Ao teu genocídio nos tempos da Nazilândia?
Achas que é esta a tua ambicionada Terra de Canaã?
Tu achas que assim ganhas a paz na Terra Prometida?

José Craveirinha

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

A Irresponsabilidade da Multidão

A multidão que se chama parlamento nunca se sente tão feliz como quando pode calar com gritos um orador e derrubar um ministro; a multidão que se chama comício agita-se e exalta-se, mal um grito a incita a bradar «Abaixo!» sob as janelas de um inimigo ou a reclamar a cabeça de um indivíduo odiado ou ainda a queimar qualquer símbolo do poder, quer se trate de um panfleto, quer de um palácio de justiça; a multidão reunida num teatro que dá pelo nome de público pode aplaudir uma peça nova, mas, quando estimulada, não hesita em condenar e precipitar à força de uivos e assobios quem supunha tê-lo conquistado e ser-lhe, pelo engenho, superior.

No fundo, toda a multidão é um público, que não quer dispersar sem ter assistido a um espectáculo. No entanto, selvagem como é, prefere os espectáculos trágicos; sente o circo dos gladiadores ou o torneio, mais do que a fábula pastoral. Quando se animaliza, quer sangue - pelo menos, vê-lo.

Estar entre muitos incute a sensação de força, ou seja, da prepotência e, ao mesmo tempo, a certeza da irresponsabilidade e da absolvição.

Giovanni Papini, in Relatório Sobre os Homens
Ao Bater da Chuva

A porta fechada é uma obsessão.
As vozes caladas em torno de nós,
as pausas alongadas em silêncios de uma angústia
nova,
são a descontinuidade do tempo interrompido
dentro da casa que arrombaram ontem,
no coração da aldeia do Mazozo.
A chuva cai em bátegas doces, a chuva bate o capim
molhado,
e soa...
A humanidade é fria.

As mulheres já choraram tudo
- A Mãe Gonga comandou o coro.
Esvaem-se agora em surdina muda,
que agudiza o bater da chuva.
Os homens dizem de quando em quando
um nome obstinado.

Chamava-se Infeliz
aquele rapaz
que levaram ontem
do coração da aldeia.

A chuva matraqueia ainda e sempre
na porta fechada como uma obsessão.
Como ela nos lembra o som odiado
que dia após dia
nos sobressalta!
Como ela recorda o som da metralha,
que dia após dia
desce o morro da Calomboloca
e bate naquela porta fechada,
obcecada de protecção!

A gente conhece o som da metralha
quando ela vem no fim do dia.
Quando ela vem, silencia a aldeia,
então, em sobressalto, o povo diz:
- Foram fuzilados...

E ninguém sabe do Infeliz,
aquele rapaz que levaram ontem...


*escritor angolano, falecido a 5 de Fevereiro de 2006

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

A cassandra

Como se não fossem suficientes as parvoíces das agências de notação a que os mercados internacionais dão muita credibilidade, teve de vir o agoirento Joaquin Almunia dizer que a situação de Portugal era igual à da Grécia - prejudicando gravemente o nosso país, já que é o Comissário Europeu para os Assuntos Económicos e Monetários - dando-se, no entanto, ao trabalho de esclarecer que a situação do seu próprio país devia ser analisada separadamente, já que era de menos risco.

Sucede que o insuspeito Paul Krugman escreveu, no dia 2 de Fevereiro, que a verdadeira ameaça para a zona euro não é a Grécia mas a Espanha, coincidindo, assim, com afirmações anteriores de Nouriel Roubini (o economista que previu a crise com a antecedência de 2 anos), segundo o qual é a Espanha que constitui o verdadeiro risco para a euro zona, acrescentando que “se a Grécia se afunda é um problema” mas “se a Espanha se afunda é um desastre”.

É por isso que uns são professores de prestígio, reputados escritores de livros sobre economia e prémios Nobel e outros não passam de burocratas pagos a peso de ouro.
Passeio

Não haverá um equívoco em tudo isso?
O que será em verdade transparência
Se a matéria que vê, é opacidade?
Nesta manhã sou e não sou minha paisagem
Terra e claridade se confundem
E o que me vê
Não sabe de si mesmo a sua imagem.

E me sabendo quilha castigada de partidas
Não quis meu canto em leveza e brando
Mas para o vosso ouvido o verso breve
Persistirá cantando.
Leve, é o que diz a boca diminuta e douta.

Serão leves as límpidas paredes
Onde descansareis vosso caminho?
Terra, tua leveza em minha mão.
Um aroma te suspende e vens a mim
Numas manhãs à procura de águas.
E ainda revestida de vaidades, te sei.
Eu mesma, sendo argila escolhida
Revesti de sombra a minha verdade.

Hilda Hilst*

*poetisa paulista

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

In memoriam

E de novo a armadilha dos abraços

E de novo a armadilha dos abraços.
E de novo o enredo das delícias.
O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada de carícias.
As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.
De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.
Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e silêncios
a ecoar no som dos precipícios.
E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.

Rosa Lobato de Faria

terça-feira, fevereiro 02, 2010

O monstro de duas cabeças

O NEGÓCIO está registado em nome de Binyamin Netanyahu. Mas a realidade é diferente.

Netanyahu nunca foi mais do que um vendedor de medicamentos manhoso. Uma daquelas figuras que aparece frequentemente nos filmes do Oeste americanos a vender um elixir que é bom para tudo: para a gripe e para a tuberculose, para os ataques cardíacos e para a loucura intermitente. A principal arma do vendedor é a língua: a sua torrente de palavras constrói castelos no ar, rebenta bolhas cintilantes e silencia todas as dúvidas.

Desde a eleição, há quase um ano, a sua maior (literalmente) proeza foi constituir um gabinete: 30 ministros e uma mão cheia de adjuntos, a maioria dos quais sem quaisquer funções perceptíveis, alguns deles encarregues de ministérios para os quais são os mais incapazes de todos os candidatos possíveis. A partir daí, a sua principal tarefa tem sido aquela em que é perito: a sobrevivência política.

Neste jardim zoológico governamental, a única criatura realmente Importante é o Liebarak – um monstro de duas cabeças que aterroriza todos os outros animais. Esse animal é 50% Lieberman, 50% Barak e 0% humano.

Uri Avnery


Um olhar implacável sobre a política de “Ocupação Eterna” nazi-sionista, racista e anti-semita* do estado de Israel, pela pena de alguém que a conhece muito bem por dentro.

*(Quem apelida de anti-semita todo aquele que ousa criticar as políticas de Israel é bom que saiba que os palestinos são tão semitas como os judeus; assim, a actuação de Israel é duplamente anti-semita, não só porque quer erradicar outro povo semita, mas também porque é a principal causa de ressentimentos contra os seus próprios cidadãos.)

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

As putas da Avenida

Eu vi gelar as putas da Avenida
ao griso de Janeiro e tive pena
do que elas chamam em jargão a vida
com um requebro triste de açucena

vi-as às duas e às três falando
como se fala antes de entrar em cena
o gesto já compondo à voz de mando
do director fatal que lhes ordena

essa pose de flor recém-cortada
que para as mais batidas não é nada
senão fingirem lírios da Lorena

mas a todas o griso ia aturdindo
e eu que do trabalho tinha vindo
calçando as luvas senti tanta pena

Fernando Assis Pacheco