quarta-feira, janeiro 18, 2012

A Cortiça

É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal
há gente que arrefece             que arrefece
de sol a sol
de mal a mal.
É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal.

Passando o Tejo          para além da ponte
que não nos liga a nada
só se vê horizonte
horizonte
e tristeza queimada.

É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
uma fome tão grande que trespassa
o ventre de quem a leva.
É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:

mal finda a noite        escurece logo o dia
e uma espessa energia
feita de pus no sangue
de lama na barriga
nasce da terra exangue e inimiga.

É o vapor da sede       é o calor do medo
a cama do ganhão
a casca do sobredo.
É o suor com pão
que se come em segredo.

É preciso dizer-se o que nos dão
no meu país de boa lavra
aonde um homem morre como um cão
à míngua de palavra:

Por cada tronco desnudado   um lado
do nosso orgulho ferido
e por cada sobreiro despojado
um homem esfomeado e mal parido.

Ah, não, filhos da mãe!
Ah, não, filhos da terra!
Os enjeitados também vão à guerra.


(Ary dos Santos faleceu a 18 de Janeiro de 1984)

Nota: mantive o alinhamento que consta do volume "Vinte anos de poesia", de 1984 - Círculo de Leitores

1 comentário:

jrd disse...

Grande, grande é a poesia.