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terça-feira, junho 30, 2015

Deixai os doidos governar entre comparsas

Deixai os doidos governar entre comparsas!
Deixai-os declamar dos seus balcões
Sobre as praças desertas!
Deixai as frases odiosas que eles disserem,
Como morcegos à luz do Sol,
Atónitas baterem de parede em parede,
Até morrerem no ar
Que as não ouviu
Nem percutiu
À distância da multidão que partiu!
Deixai-os gritar pelos salões vazios,
Eles, os portentosos mais que os mares,
Eles, os caudalosos mais que os rios,
O medo de estar sós
Entre os milhares
De esgares
Reflectidos nos colossais
Cristais
Hílares
Que a sua grandeza lhes sonhou!


(poeta português falecido em Lourenço Marques faz hoje 56 anos)

segunda-feira, junho 29, 2015

Dente de leão

Na beira do passeio
No fim do mundo
Olho amarelo da solidão

Cegos pés
Apertam-lhe o pescoço
No abdômen de pedra

Cotovelos subterrâneos
Empurram suas raízes
Para o húmus do céu

Pata canina ereta
Faz-lhe troça
Com o aguaceiro recozido

Contenta-o apenas
O olhar sem dono do passante
Que em sua coroa
Pernoita

E assim
A ponta de cigarro vai queimando
No lábio inferior da impotência
No fim do mundo


(poeta sérvio nascido faz hoje 93 anos) 

Tradução de Aleksandar Jovanovic

domingo, junho 28, 2015

Trevas

Quando não aguento mais o tédio,
Saio para o sol em disparada,
Asa esvoaçando pelo éter,
A virtude e o vício misturados.
Morro, eu morro, o sangue escorre a cântaros
Na couraça do meu corpo.
Caio em mim - e então, de novo,
Só enxergo a guerra em teu olhar.


(poeta russo falecido faz hoje 93 anos) 

Tradução de André Vallias

sábado, junho 27, 2015

Alaranjado

No campo seco, a crepitar em brasas,
dançar as últimas chamas da queimada,
tão quente que o sol pende no ocaso,
bicado,
pelos sanhaços das nuvens,
para cair, redondo e pesado,
como uma tangerina temporã madura...

 (escritor brasileiro nascido faz hoje 107 anos)

sexta-feira, junho 26, 2015

quinta-feira, junho 25, 2015

Anjo dos Abismos

Quero chegar diante de ti
não como o vulto familiar que doura o teu sossego,
não como a imagem do sonho
que se perde na bruma,
mas como o fantasma de dentro de ti mesmo.
Quero chegar diante de ti,
e olharás minha longa cabeleira,
minhas faces esvoaçantes,
meus olhos incolores
e adivinharás que atravessei
os limites do eterno.
Ó esta noite todas as luzes estarão veladas pelo sono,
todos os silêncios serão devorados pela eternidade,
todas as chagas ressurgirão das dores,
todos os olhos estarão desmesuradamente abertos
mas não poderemos sentir
a Sua presença
porque então passamos à pátria das essências.
Esta noite chegarei diante de ti,
nossas almas se confundirão na grande viagem,
nossos olhos se alongarão ao paraíso dos símbolos
onde nasce o grande mar das almas moribundas.
Chegarei sobre a tranqüilidade dos teus cânticos
e te assombrarás com este vulto notívago de morto
que se suspende milagrosamente além dos tempos
e que conduz as asas multicores
no derradeiro vôo das espécies.
Ó sim sou eu por sobre as nebulosas,
fantasma que povoa quatro mundos,
imagem perdida e mais tarde encontrada
no limitado céu da poesia. 


(poeta paraense nascido faz hoje 95 anos)

quarta-feira, junho 24, 2015

Como um louco de navalha na mão

Todo o instante que passávamos juntos
Era uma celebração, uma Epifania,
No mundo inteiro, nós os dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais leve que a asa de um pássaro,
Estonteante como uma vertigem, corrias escada abaixo
Dois degraus por vez, e me conduzias
Por entre lilases húmidos, até ao teu domínio
No outro lado, para além do espelho.

Enquanto isso o destino seguia nossos passos
Como um louco de navalha na mão.


(poeta russo nascido a 24 de Junho de 1907)

terça-feira, junho 23, 2015

Tédio

Ah! esse torpor
         à fome insaciável do passado
desconfortável dor do que era tudo
e não é nada.

                   Ah!
esse verbo peçonhento
                            ser
a se fazer agora outrora.

                            Ah! essa hora
ruminando-me pacientissimamente.

Ah!
         essa flor abrindo-se de fora para dentro
                                                        Ah! esse...


(poeta paraense que hoje faz 76 anos)

segunda-feira, junho 22, 2015

Vigília

E nunca nunca mais poder
falar a taça, o casco, a coisa
que partiu o vidro, inútil
peso das imagens de ontem.

Nenhuma destruição de linho
poderá dizer a cor da rosa
que esmaga na pupila fechada
o triunfo da luz de um clarim.

Nunca mais isto poder dizer,
não poder dizer pelo avesso
a ternura da pele clara,

os lábios, os sulcos, o beijo, o ventre,
os corpos ao assalto; e depois
não poder nunca repetir!


(poeta catalão que hoje faz 70 anos) 

Tradução de Egito Gonçalves

domingo, junho 21, 2015

Movimento

No movimento do meu olhar
Passeei pelo teu corpo,
Andei no canto da tua alma
e (co)movi meu coração.


(poetisa carioca que hoje faz 52 ano)

sábado, junho 20, 2015

O Estranho

Não entenderás o meu dialeto
nem compreenderás os meus costumes.
Mas ouvirei sempre as tuas canções
e todas as noites procurarás meu corpo.
Terei as carícias dos teus seios brancos.
Iremos amiúde ver o mar.
Muito te beijarei
e não me amarás como estrangeiro.


(poeta paraense nascido faz hoje 89 anos)

sexta-feira, junho 19, 2015

ARTE DE FURTAR

O poeta declarou que toda criação é tributária de outras
criações no permanente processo de linguagem da poesia

O poeta afirmou que todo criador é tributário de outros no
processo de linguagem da poesia

O poeta se confessou um criador tributário de outros na
linguagem de sua poesia

O poeta não esconde que sua poesia é tributária da linguagem
de outros criadores

O poeta não esconde que sua poesia é influenciada pela
linguagem de outros criadores

O poeta não faz segredo de que se utiliza da linguagem de
outros poetas

O poeta fala abertamente que se apropria da linguagem de
outros poetas

O poeta é um deslavado apropriador de linguagens

O POETA É UM PLAGIÁRIO


(poeta mineiro nascido faz hoje 87 anos)

quinta-feira, junho 18, 2015

Processo

As palavras mais simples, mais comuns,
As de trazer por casa e dar de troco,
Em língua doutro mundo se convertem:
Basta que, de sol, os olhos do poeta,
Rasando, as iluminem.


(José Saramago faleceu faz hoje 5 anos)

quarta-feira, junho 17, 2015

a rectidão da água; o crescimento

a rectidão da água; o crescimento
das avenidas, ao anoitecer, sob a nua
vibração dos faróis;

o laço, mesmo, das portas só
entreabertas, onde a luz
silenciosa se demora;

são memórias, decerto, de um anterior
esquecimento, uma inocente
fadiga das coisas,

como os corpos calados, abandonados
na véspera da guerra, o teu
jeito para

o desalinho branco das palavras,
altas as
asas de nuvens no clarão do céu

em vão rigor abrindo
o destinado enigma: assim
desconhecer-te cada dia mais

ausente de recados e colheitas,
em assustado bosque, em sombra
clareira,

ao risco dos rios frívolos descendo
seixos polidos, desinscritos,
imóveis movendo

a luz do dia;
a margem recortada, aonde vivem
ausentes e seguros, os luminosos

animais do inverno;
assim são na verdade os muros claros;
assim respira o tempo, a terra intensa.


(poeta viseense que hoje faz 71 anos)

terça-feira, junho 16, 2015

Paraíso

Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.


(David Mourão-Ferreira faleceu faz hoje 19 anos)
Nós e as nuvens

Nuvens somos
como somos cromosssomos:
no parecer iguais: seu volúvel
de volumes e volutas
ou reentrâncias.

Mal nascemos, somos sonho,
mal subtraímos já somamos.
Mal andados, já tropeços.

A vida chega cheia
de veias, consciente.
E já desaparece na noite,
à moita das águas subterrâneas
dos crânios ocos:
- Mal cheirosa, mal sulfurosa,
semi-séria, cemitéria...

As nuvens quando
em bando
se distraem
e se misturam com carbono
e com iodo, com matéria de cometa...

Nuvens já não somos.


(poeta piauiense que hoje faz 82 anos)

segunda-feira, junho 15, 2015

nós e as palavras

Nós não somos do século de inventar as palavras.
As palavras já foram inventadas. Nós somos do século
de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas.


(Almada Negreiros faleceu faz hoje 45 anos)

domingo, junho 14, 2015

Não amar

A dor
de não amar
é faca
de serra.
Corta
e dilacera.
Enferrujada,
deixa o tétano
em gotas de indiferença.


(poeta carioca que hoje faz 45 anos)

sábado, junho 13, 2015

O Silêncio 

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.
.

(Eugénio de Andrade faleceu faz hoje 10 anos)
Fantasmas

bateram à porta - não abriste
estavas a convocar nesse instante a brancura
dos dados por lançar e o corvo do sr. poe mais
o maléfico negrume dos mares de melville e
as mulheres da patagónia que estão sentadas
ao fim da tarde
à beira de insondáveis glaciares

seguias absorto o percurso daquele que comprava
revistas tabaco souvenirs e via os comboios
sumirem-se na gare de munique - mais a rua onde
te encontro e te perco rapaz
a quem se esqueceram de dizer que tinha um corpo
de papel bom para amachucar com os dentes
é verdade - bateram à porta
mas não podias abrir
nesta casa só sobrevive a memória turva

dos poemas amados - mais ninguém mais nada
além da parede de lodo e da caixa de sapatos
cheia de sílabas preciosas - e uma mesa pequena
com um albatroz empalhado para te vigiar a alma

a um canto da sala o cigarro continua a arder
na ponta dos dedos do teu retrato escondido
atrás do sofá - virado parar a parede
como tu
coberto de bolor de sustos e de aborrecimentos


(Al Berto faleceu faz hoje 18 anos)
Enigma

No fundo de tudo quanto pensamos
Há a caverna do que nós vemos
Sonhos lhe bóiam na sombra aberta.
Uma árvore vela-a com rede-ramos
Terá de ramos luzindo pomos
Pomos-estrelas na noite deserta.

Por trás das costas do visto mundo
Por trás de nós se sonhamos ver,
Fogem de um onde ladeando estar,
Ramos sem sede cruzando o fundo
Do pensamento e caverna ser
Com sonhos boiando no cavernar.

Quadro - boiando do fundo da alma,
Com pomos luzindo na árvore-parte,
Com o segredo por trás de aquém...
Brilha um instante na luz sem calma
Como um relâmpago de ‘standarte,
E em tudo isto não há ninguém.


(Fernando Pessoa nasceu faz hoje 127 anos)

sexta-feira, junho 12, 2015

Este Corpo

Este corpo que aperto (e me aperta)
tem um sabor de estrelas e de lodo.
E eu não sei quem agora me tinge
(profundíssimo jogo) de vermelho
as estrelas.


(poeta italiano nascido faz hoje 109 anos)

Tradução de David Mourão-Ferreira

quinta-feira, junho 11, 2015

neoplatônica

a boca é o lugar onde se engendra
o silêncio e se proferem sentenças
de morte e colhem blasfêmias
e serpenteiam sortilégios
e se enfunam as flores da fala
até forjar a ficção de outra boca
de onde se extrai a idéia do beijo


(poeta mineiro que hoje faz 63 anos)

quarta-feira, junho 10, 2015

Arte

Poemas são palavras e presságios,
pardais perdidos sem direito a ninho.
Poemas casam nuvens e favelas
e se escondem depois no próprio umbigo.

Poemas são tilápias e besouros,
ar e água à beira de anzóis e riscos.
São begônias e petúnias,
isopor ou mármore nas colunas,

rosas decepadas pelas hélices
de vôos amarrados ao chão.
Cinza do que foi orvalho,

poema é carta fora do baralho,
milharal pegando fogo
pelo berro do espantalho.


(poeta carioca nascido a 10 de Junho de 1952)

terça-feira, junho 09, 2015

Chove!

Chove...

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.


(José Gomes Ferreira nasceu faz hoje 115 anos)

segunda-feira, junho 08, 2015

A Sofreguidão de um Instante

Tudo renegarei menos o afecto,
e trago um ceptro e uma coroa,
o primeiro de ferro, a segunda de urze,
para ser o rei efémero
desse amor único e breve
que se dilui em partidas
e se fragmenta em perguntas
iguais às das amantes
que a claridade atordoa e converte.

Deixa-me reinar em ti
o tempo apenas de um relâmpago
a incendiar a erva seca dos cumes.

E se tiver que montar guarda,
que seja em redor do teu sono,
num êxtase de lábios sobre a relva,
num delírio de beijos sobre o ventre,
num assombro de dedos sob a roupa.

Eu estava morto e não sabia, sabes,
que há um tempo dentro deste tempo
para renascermos com os corais
e sermos eternos na sofreguidão de um instante.


(José Jorge Letria faz hoje 65 anos)

domingo, junho 07, 2015

Nara Leão faleceu faz hoje 26 anos
Prosa de Domingo

A máquina do corpo, resumida nos sentidos,
dissolve a tempestade num cheiro de chuva:
recorda-me, qual súbita visagem
(sutilmente engastada
no tempo presente),
a dor de ser
sem ter
sido.

Nada
(nem cheiro
nem tempestade),
mesmo que reviva,
num segundo abençoado,
a sensação de uma outra vida (frágil
como a própria infância, dor secreta do poema),
pode, fugaz, dar-me a garantia de ter vivido.


(poeta gaúcho que hoje faz 42 anos)

sábado, junho 06, 2015

Tática moderna

Dobradiça de mola e parafusos,
Abre a porta da escola à da caserna
E, em casos complicados e confusos,
Com a tarimba o gabinete alterna.

Dirige a pasta conhecendo os usos
E os segredos da tática moderna;
Governa a sós, não atendendo a intrusos,
Mas a vaidade, às vezes, o governa.

Tem serviços e estudos às centenas.
Bravo, se o instinto do guerreiro o guia,
Tem na paz qualidades não pequenas.

Porém, ó raio da burocracia!
Sendo Faria, o que ele faz é apenas,
Como ministro, o que qualquer... faria.


(poeta brasileiro falecido faz hoje 97 anos)

sexta-feira, junho 05, 2015

Gazel do Amor Imprevisto

O perfume ninguém compreendia
da escura magnólia de teu ventre.
Ninguém sabia que martirizavas
entre os dentes um colibri de amor.

Mil pequenos cavalos persas dormem
na praça com luar de tua fronte,
enquanto eu enlaçava quatro noites,
inimiga da neve, a tua cinta.

Entre gesso e jasmins, o teu olhar
era um pálido ramo de sementes.
Procurei para dar-te, no meu peito,
as letras de marfim que dizem sempre,

sempre, sempre; jardim em que agonizo,
teu corpo fugitivo para sempre,
teu sangue arterial em minha boca,
tua boca já sem luz para esta morte.


(poeta andaluz nascido faz hoje 117 anos) 

Tradução de Óscar Mendes