Ode ao
desejo
Desejo,
Desejo de
outrem que não eu.
Caminho pela
cidade nevoenta
E tudo é um
reflexo abominável de mim.
Aquele homem
apressado cruzando uma praça,
aquele
garoto chorando com a cara entre as mãos,
aquele jovem
gesticulando, veemente…
Tudo é eu
num espelho deformado,
todo o
universo é um sarcasmo,
a chuva
goteja trágicas gargalhadas,
estou só,
sou só,
só dentro da
imensa solidão,
só, ilha sem
mar,
só, ilha sem
continentes do outro lado do mar,
só, ilha sem
naus que não levariam a parte alguma,
inútil,
estéril,
irreconhecível
sem o espelho
inconcebível
de uns olhos, outros,
apenas
pressentidos.
É preciso,
é
absolutamente necessário inventar uma presença,
é preciso
imitar,
ó ardência,
ó ímpeto, ó desejo,
é preciso
imitar Deus e criar
ó desejo,
outrem que
não eu fora de mim,
outro ser
diferente
atraente ardente
que me faça
quebrar o círculo fatal,
que me fale
com outro silêncio,
que me
conforte por ser apenas o sinal
de que a
palavra ilha é uma abstracção,
outro ser
que receba, ó desejo,
a força e o
frémito e a substância e a vida
e o acto
que há em
mim
e assim me
cumpra enfim
não Deus mas
criador
no êxtase
pressentido do amor,
no fruir
conceber ser,
na cisão
legítima que te peço,
ó desejo,
ó verbo,
na
enigmática cisão,
mãe da união
de todo o
morrer e renascer.
(António
Quadros nasceu faz hoje 93 anos)
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