How many times must a man look up, Before he can see the sky? How many ears must one man have, Before he can hear people cry? The answer, my friend, is blowin' in the wind. The answer is blowin' in the wind.
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sábado, maio 31, 2008
Monólogo
Anseio por uma infância perdida.
Foi-se a sinceridade encontrada apenas
nos gestos imaturos,
e com ela minha alegria.
Almejo uma loucura incoerentemente sóbria,
que finalmente traga minha alma à tona
e desatole tantas emoções contidas.
Cultivo pequenos momentos de minha existência
e não sou exigente, pois sei que a mediocridade
é inerente a todos os sonhadores.
Busco minha própria sombra,
alguém que me complete.
Que me faça ver que valeu a pena encarar o desconhecido,
descobrir que não há nenhum prêmio
por bom comportamento...falsos ícones.
Só um jovem do outro lado da linha.
Ana Maria Ramiro*
*poetisa brasileira
sexta-feira, maio 30, 2008
João & Joaquim
Joaquim Maria Machado de Assis faleceu há 100 anos. João Guimarães Rosa nasceu há 100 anos. Os dois imprimiram dimensão estética ao enigma do feminino: Capitu, por Joaquim; Diadorim, por João. Os dois morreram no Rio, os dois em casa, os dois sozinhos. Joaquim no Cosme Velho, viúvo; João em Copacabana, a 19 de Novembro de 1967, quando a mulher saíra para a missa.
Carioca, autodidata, fundador da Academia Brasileira de Letras, Joaquim construiu uma obra de inesgotável polissemia. Seu estilo revela a leveza da pena, graças às suas crônicas para jornais. Seus textos parecem, à primeira vista, ao alcance de qualquer leitor. Porém, exigem acuidade para serem captados em sua profusão de símbolos, subterfúgios, entrelinhas e aparentes tautologias.
Mineiro de Cordisburgo - "cidade do coração" -, poliglota, médico e diplomata, João reinventou a língua portuguesa, abrasileirou-a, potencializou-a, implodiu as regras da narrativa convencional, fez do sertão uma epopéia.
João observa o mundo pela cerca do pasto; Joaquim, pela janela do sobrado. O primeiro é rural; o segundo, urbano. João se solta nas águas límpidas dos grandes rios para pescar, nas profundezas, as metafísicas interrogações do humano. Joaquim é intimista, realista, encontra nos salões, numa conversa banal, a matéria-prima que lhe permite desvelar recônditos segredos da alma.
João encara o mundo de baixo para cima, situado no lugar social dos anônimos; pisa em bosta de vaca para descrever infinitudes. Joaquim é quase dândi, apresenta-se de luvas e cartola e, aos poucos, rasga-nos a fantasia, perfura a pele, escancara o coração, expõe as vísceras.
João é teólogo, apocalíptico; Joaquim, filósofo, irreverente. João é assombro; Joaquim, ironia. Este ergue seu bico de pena e penetra nos meandros de nossa inelutável insensatez; João, mete a foice e desbasta, abre veredas em direções inesperadas.
Joaquim é cartesiano, explora a dúvida, o suspense, a ambigüidade, o contraditório. João é barroco, retorce a gramática, subverte a sintaxe, arranca o vocabulário de seu perfilar ordenado e o atira no corpo de baile dos entremeios do espírito.
Joaquim faz de sua literatura uma caprichosa renda; vista à distância, sua obra parece impecável toalha sobre a mesa, cuja beleza resulta de seus intrincáveis bordados, só apreciados pelo leitor arguto.
João prefere juntar os cacos espalhados pelo chão da vida e expor o vitral de tantas sagas e aventuras. Seu talento é inalcançável, pois isolou-se num universo vocabular e semântico único, singular; melhor comparando, apagou o idioma da lousa e nos labirintos da sintaxe reconstruiu-o letra por letra, palavra por palavra, num tecido radicalmente local, esplendorosamente universal.
Nos dois, o domínio impecável da língua, o estilo cativante, o ritmo preciso. Os dois são inimitáveis. Joaquim nos convida a um jogo repleto de surpresas; João a uma viagem através do misterioso sertão que cada um de nós traz dentro de si.
Este é um ano de muitas comemorações literárias. Há 400 anos nascia o Padre Vieira (6/2/1608), que nos ensinou a reverenciar o idioma português e, há 120 anos, Fernando Pessoa (13/6/1888), para quem "o poeta é um fingidor/ finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente". Há 60 anos nos deixava Monteiro Lobato, que encantou a minha infância e habituou-me aos livros.
Antonio Candido, o maior crítico literário vivo, autor do clássico Parceiros do Rio Bonito, faz 90 anos. E há 90 anos transvivenciou Olavo Bilac, que nos convida a ouvir estrelas. E Manuel Bandeira falecia há 40 anos, ele que nos induz a surfar na poesia: "A onda anda / aonde anda / a onda? / a onda ainda / ainda onda / ainda anda / aonde? / aonde? / a onda / a onda".
Frei Betto
Retirado daqui
quinta-feira, maio 29, 2008
Y yo me iré
Y yo me iré. Y se quedarán los pájaros
cantando;
y se quedará mi huerto, con su verde árbol,
y con su pozo blanco.
Todas la tardes, el cielo será azul y plácido;
y tocarán, como esta tarde están tocando,
las campanas del campanario.
Se morirán aquellos que me amaron;
y el pueblo se hará nuevo cada año;
y en el rincón aquel de mi huerto florido y encalado,
mi espíritu errará, nostálgico…
Y yo me iré; y estaré solo, sin hogar, sin árbol
verde, sin pozo blanco,
sin cielo azul y plácido…
Y se quedarán los pájaros cantando.
Juan Ramón Jiménez*
*no cinquentenário da sua morte
quarta-feira, maio 28, 2008
Especuladores e...especuladores!
O multi-milionário estado-unidense de origem húngara, George Soros, famoso pela sua actividade como especulador nos mercados financeiros, assegurou que os especuladores são os grandes responsáveis pelos altos preços do petróleo, em entrevista publicada na passada segunda feira pelo jornal inglês The Daily Telegraph.
O Sr. Soros disse que, embora o dólar fraco, o declínio no abastecimento do Médio Oriente e a procura da China talvez possam explicar algum do aumento nos preços da energia, o mercado petrolífero tem sido significativamente afectado pela especulação. “A especulação está a afectar crescentemente o preço do crude”, disse. “O preço tem esta forma parabólica que é característica das bolhas”, acrescentou.
Apesar de se tratar de uma realidade óbvia, mesmo para pessoas com escassa informação sobre os mecanismos de formação dos preços das mercadorias, não deixa de ser importante que o especulador mor venha fazer tal denúncia e que tenha instado os reguladores a que tomem medidas mais agressivas tendentes a uma melhor supervisão do mercado.
O multi-milionário estado-unidense de origem húngara, George Soros, famoso pela sua actividade como especulador nos mercados financeiros, assegurou que os especuladores são os grandes responsáveis pelos altos preços do petróleo, em entrevista publicada na passada segunda feira pelo jornal inglês The Daily Telegraph.
O Sr. Soros disse que, embora o dólar fraco, o declínio no abastecimento do Médio Oriente e a procura da China talvez possam explicar algum do aumento nos preços da energia, o mercado petrolífero tem sido significativamente afectado pela especulação. “A especulação está a afectar crescentemente o preço do crude”, disse. “O preço tem esta forma parabólica que é característica das bolhas”, acrescentou.
Apesar de se tratar de uma realidade óbvia, mesmo para pessoas com escassa informação sobre os mecanismos de formação dos preços das mercadorias, não deixa de ser importante que o especulador mor venha fazer tal denúncia e que tenha instado os reguladores a que tomem medidas mais agressivas tendentes a uma melhor supervisão do mercado.
terça-feira, maio 27, 2008
Primavera
a poesia não ancorou nesta tarde de primavera
ah, cansaço de não ser nada
nem inverno
nem garoa , nem céu azul
ter o cinza na alma
e nem assim poder ser completamente cinza
este canto esquisito de pássaro
estaria numa gaiola ?
como um pássaro pode ter um canto tão feio !
cansaço de também não ser pássaro !
a poesia recria, toma tudo emprestado e belo
viagem de onde se volta achando tudo engraçado
ah, e hoje nem a poesia ...
nem ancora nem naufraga
navio sem rumo
veleiro sem velas
ombros curvados
ah, que cansaço de também não ser poeta
serei passageiro
que não seja eu o comandante de nada ...
se nem ao menos a primavera
é primavera
Ana Lamanna*
*poetisa brasileira
segunda-feira, maio 26, 2008
Nem os deles escapam
Norman Gary Finkelstein, conhecido cientista político, escritor e historiador judeu estado-unidense, especializado em assuntos relacionados com os judeus, especialmente o Holocausto e o conflito Israelo-Palestiniano, cuja mãe, filha de um judeu ultra-ortodoxo, sobreviveu ao Gueto de Varsóvia e ao Campo de Concentração de Majdanek e cujo pai sobreviveu também ao Gueto de Varsóvia e ao Campo de Concentração de Auschwitz, viu recusada a sua entrada em Israel na passada sexta-feira, dia 23, por suspeita de ter tido contactos com elementos “hostis” a Israel, de acordo com agentes de segurança israelitas não identificados. Finkelstein foi interrogado após a sua chegada ao aeroporto Ben Gurion, em Tel Aviv, e recambiado num voo para Amesterdão, de onde tinha partido, tendo sido banido de entrar em Israel durante 10 anos.
É caso para dizer que nem aos seus perdoam as críticas.
Norman Gary Finkelstein, conhecido cientista político, escritor e historiador judeu estado-unidense, especializado em assuntos relacionados com os judeus, especialmente o Holocausto e o conflito Israelo-Palestiniano, cuja mãe, filha de um judeu ultra-ortodoxo, sobreviveu ao Gueto de Varsóvia e ao Campo de Concentração de Majdanek e cujo pai sobreviveu também ao Gueto de Varsóvia e ao Campo de Concentração de Auschwitz, viu recusada a sua entrada em Israel na passada sexta-feira, dia 23, por suspeita de ter tido contactos com elementos “hostis” a Israel, de acordo com agentes de segurança israelitas não identificados. Finkelstein foi interrogado após a sua chegada ao aeroporto Ben Gurion, em Tel Aviv, e recambiado num voo para Amesterdão, de onde tinha partido, tendo sido banido de entrar em Israel durante 10 anos.
É caso para dizer que nem aos seus perdoam as críticas.
domingo, maio 25, 2008
Ignorâncias
Há muitos anos, tantos que apenas havia o canal público de televisão que prestava alguns serviços à cultura, uma jovem estrela em ascensão no nosso panorama televisivo, ao pretender anunciar a realização do festival de Bayreuth (pronuncia-se “bairróit”), cidade da Baviera onde viveu Richard Wagner e que todos os anos lhe dedica um festival de ópera, disse que na próxima semana se realizava o festival de Beirute. Tal não a impediu de vir a ser directora de programas e até adida cultural numa culta capital europeia.
Anos depois, um outro apresentador de televisão, ao informar-nos de que um determinado julgamento tinha sido adiado sine die, expressão latina que significa sem prazo marcado, disse alto e bom som que o tal julgamento fora adiado “sáinè dai”, como se a expressa latina fosse de origem inglesa.
Vários outros “letrados” no mesmo ou em lugares semelhantes, ao pretenderem pronunciar o portuguesíssimo vocábulo item, que por provir directamente do latim se lê tal como se escreve e tem como plural itens, foram falando em “áitem” e áitems”.
Há cerca de duas semanas, um outro jornalista, ao fazer uma reportagem sobre a feira do emprego realizada no Porto, informou alegremente que o primeiro passo na procura de emprego consistia na entrega do “curriculum vitái” (referia-se, certamente, ao “curriculum vitae”, outra expressão latina). Como se isso não fosse suficiente, o apresentador do telejornal falou dos vários tornados que assolaram os Estados Unidos, esclarecendo que as cidades mais atingidas tinham sido Missouri e Oklahoma. Ora Missouri e Oklahoma não são cidades mas sim Estados, não consta que haja qualquer cidade chamada Missouri e Oklahoma City, capital e maior cidade do Oklahoma, parece nem sequer ter sido atingida. Ninguém da RTP deu pelo tal “curriculum vitái”, pois a peça foi repetida no jornal das 20H00.
Agora, com o acordo da discórdia, é provável que passemos a ouvir dizer “mídia” a torto e a direito quando alguém quiser referir-se aos meios de comunicação social, dado que os crânios da linguística que fizeram o acordo à imagem do próprio umbigo devem desconhecer que os povos de fala inglesa foram pedir de empréstimo o plural da palavra latina “medium” (“media”), adaptando (ou será adatando?) a pronúncia à sua língua.
sábado, maio 24, 2008
Fazer poético
Meu fazer não é poético... lírico?
Fora um dia, não mais.
Agora a forma é áspera
E o fruto prima pelo amargor.
Poesia, amor, desejo, rebeldia... ficção!
Não passa de ironia...
Escrever às vezes é maçante
Como ler um livro entediado da leitura.
Deixo as palavras fluírem...
Assim, sem sentido aparente...
Postas, sobrepostas, pospostas, antepostas,
Vão aos poucos ganhando forma, justapostas.
Adquirem significados notórios
Desde que atinjam seu objetivo
Trancafiado no limiar do inconstante
No fluxo desvairado do inconsciente.
Alberto da Cruz*
*poeta brasileiro
sexta-feira, maio 23, 2008
Pobres contra pobres
No mundo em que vivemos, ver ricos contra pobres não constitui, infelizmente, novidade.
Os poderosos sempre estiveram contra os desfavorecidos e temo que assim continue a ser.
Por isso, quando Nicolas Sarkozy, então ministro do interior, chamou “canalha” aos imigrantes dos subúrbios pobres das grandes cidades francesas, apenas as consciências mais sensíveis se escandalizaram.
Quando o governo italiano começou a perseguir e a prender imigrantes, incluindo os oriundos dos novos países aderentes à União, os burocratas de Bruxelas, sempre tão rápidos a condenar a xenofobia quando ela “mora” longe, assobiaram para o lado e “varreram o lixo para debaixo do tapete”. E mesmo agora, com um deputado fascista italiano a propor a criação de um estado para os ciganos no leste da Europa como a solução que melhor os serve a “eles” e nos serve a “nós”, não se ouvem reacções condignas da parte das “elites” liberais europeias.
Mas já causa algum espanto quando são os pobres a manifestar sentimentos de extrema violenta xenófoba contra outros pobres, assassinando sem piedade os imigrantes dos países vizinhos que foram à procura de melhores condições de vida.
Algo tem de ir muito mal para, num país como a África do Sul, com um enorme potencial de desenvolvimento e que até já foi considerado rico, haver uma taxa de desemprego a rondar os 40%, grassar a fome e a doença e ocorrer uma autêntica caça mortífera ao imigrante.
Conhecendo-se as riquezas do país, os actos de desespero selvagem a que as autoridades se mostram incapazes de responder com a necessária eficácia só podem dever-se à incompetência e corrupção dos poderes instituídos. Não era este, certamente, o “espectáculo” a que Nelson Mandela esperava assistir no ocaso da sua vida dedicada a uma causa nobre.
No mundo em que vivemos, ver ricos contra pobres não constitui, infelizmente, novidade.
Os poderosos sempre estiveram contra os desfavorecidos e temo que assim continue a ser.
Por isso, quando Nicolas Sarkozy, então ministro do interior, chamou “canalha” aos imigrantes dos subúrbios pobres das grandes cidades francesas, apenas as consciências mais sensíveis se escandalizaram.
Quando o governo italiano começou a perseguir e a prender imigrantes, incluindo os oriundos dos novos países aderentes à União, os burocratas de Bruxelas, sempre tão rápidos a condenar a xenofobia quando ela “mora” longe, assobiaram para o lado e “varreram o lixo para debaixo do tapete”. E mesmo agora, com um deputado fascista italiano a propor a criação de um estado para os ciganos no leste da Europa como a solução que melhor os serve a “eles” e nos serve a “nós”, não se ouvem reacções condignas da parte das “elites” liberais europeias.
Mas já causa algum espanto quando são os pobres a manifestar sentimentos de extrema violenta xenófoba contra outros pobres, assassinando sem piedade os imigrantes dos países vizinhos que foram à procura de melhores condições de vida.
Algo tem de ir muito mal para, num país como a África do Sul, com um enorme potencial de desenvolvimento e que até já foi considerado rico, haver uma taxa de desemprego a rondar os 40%, grassar a fome e a doença e ocorrer uma autêntica caça mortífera ao imigrante.
Conhecendo-se as riquezas do país, os actos de desespero selvagem a que as autoridades se mostram incapazes de responder com a necessária eficácia só podem dever-se à incompetência e corrupção dos poderes instituídos. Não era este, certamente, o “espectáculo” a que Nelson Mandela esperava assistir no ocaso da sua vida dedicada a uma causa nobre.
quinta-feira, maio 22, 2008
O Sofrimento do Hipócrita
Ter mentido é ter sofrido. O hipócrita é um paciente na dupla acepção da palavra; calcula um triunfo e sofre um suplício. A premeditação indefinida de uma acção ruim, acompanhada por doses de austeridade, a infâmia interior temperada de excelente reputação, enganar continuadamente, não ser jamais quem é, fazer ilusão, é uma fadiga. Compor a candura com todos os elementos negros que trabalham no cérebro, querer devorar os que o veneram, acariciar, reter-se, reprimir-se, estar sempre alerta, espiar constantemente, compor o rosto do crime latente, fazer da disformidade uma beleza, fabricar uma perfeição com a perversidade, fazer cócegas com o punhal, por açúcar no veneno, velar na franqueza do gesto e na música da voz, não ter o próprio olhar, nada mais difícil, nada mais doloroso. O odioso da hipocrisia começa obscuramente no hipócrita. Causa náuseas beber perpetuamente a impostura. A meiguice com que a astúcia disfarça a malvadez repugna ao malvado, continuamente obrigado a trazer essa mistura na boca, e há momentos de enjoo em que o hipócrita vomita quase o seu pensamento. Engolir essa saliva é coisa horrível. Ajuntai a isto o profundo orgulho. Existem horas estranhas em que o hipócrita se estima. Há um eu desmedido no impostor. 0 verme resvala como o dragão e como ele retesa-se e levanta-se. 0 traidor não é mais que um déspota tolhido que não pode fazer a sua vontade senão resignando-se ao segundo papel. É a mesquinhez capaz da enormidade. O hipócrita é um titã-anão.
Victor Hugo, in "Os Trabalhadores do Mar"
Retirado daqui
quarta-feira, maio 21, 2008
Ábaco
Lembro-me como se fosse hoje:
no mato sem cachorro,
mesmo sem cão, não caço com gato
mas tiro meu cavalinho da chuva.
Tarde aprendi que mais vale
um pássaro na mão do que dois voando
e que uma andorinha só não faz verão.
Apanhando como boi ladrão,
o homem é o lobo do homem,
- Ah King Kong,
cada macaco no seu galho.
Sem jeito mandou lembranças.
Boa romaria faz
quem em sua casa fica em paz.
Esperarei sentada.
Vivaldi, vida vida,
Noves fora: nada
Olga Savary*
*poetisa brasileira que hoje celebra o 75º aniversário
terça-feira, maio 20, 2008
Persistência recompensada
Óscar Pistorius é um jovem sul-africano de 21 anos, que nasceu com uma ausência congénita do perónio em ambas as pernas, o que fez com que, aos 11 meses de idade, as mesmas tivessem de ser amputadas a uma altura equidistante dos tornozelos e dos joelhos.
Entre os 11 e os 13 anos jogou ténis, pólo aquático e râguebi até que, após uma lesão grave num joelho, foi iniciado no atletismo enquanto se sujeitava a reabilitação e “nunca mais olhou para trás”.
Conhecido como “Blade Runner” e o “homem mais rápido sem pernas”, participou nos Jogos Paralímpicos de Verão de 2004, em Atenas, e nas mais variadas provas no seu país e no estrangeiro, incluindo provas para atletas não deficientes, a convite da Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF), tendo chegado a ganhar um Grande Prémio de 400 metros em Inglaterra, o qual lhe foi retirado por correr fora da sua linha.
Começou a acalentar o sonho de correr nos Jogos Olímpicos de Pequim até que, em Junho de 2007, a IAAF alterou as suas regras de competição para banir o uso de “qualquer aparelho técnico que incorpore fibras, rodas ou outros elementos que proporcionem ao seu utilizador uma vantagem sobre outro atleta que não use tal aparelho”.
Garantindo que as alterações não eram especificamente dirigidas a Oscar Pistorius, que usa próteses de fibras de carbono, a IAAF submeteu-o a dois meses de testes na Alemanha, tenho concluído, em Janeiro de 2008, que as suas próteses lhe davam “vantagens consideráveis sobre os atletas que não usavam próteses”, isto é, sobre aqueles que não têm qualquer deficiência. Decidiu, pois, a IAAF, que Óscar Pistorius não podia correr ao lado dos não deficientes.
O atleta não se conformou e recorreu para o Tribunal Arbitral do Desporto em Lausane, na Suiça, o qual acabou por lhe dar razão, abrindo o caminho para que ele tente obter os mínimos para representar o seu país. Mesmo que o não consiga, mais um preconceito foi ultrapassado. Se o conseguir, será o primeiro atleta amputado a participar nuns Jogos Olímpicos.
Mais informação e reacções aqui, onde existem ligações para uma meia dúzia de artigos sobre esta luta de um deficiente por um lugar entre os "normais".
Óscar Pistorius é um jovem sul-africano de 21 anos, que nasceu com uma ausência congénita do perónio em ambas as pernas, o que fez com que, aos 11 meses de idade, as mesmas tivessem de ser amputadas a uma altura equidistante dos tornozelos e dos joelhos.
Entre os 11 e os 13 anos jogou ténis, pólo aquático e râguebi até que, após uma lesão grave num joelho, foi iniciado no atletismo enquanto se sujeitava a reabilitação e “nunca mais olhou para trás”.
Conhecido como “Blade Runner” e o “homem mais rápido sem pernas”, participou nos Jogos Paralímpicos de Verão de 2004, em Atenas, e nas mais variadas provas no seu país e no estrangeiro, incluindo provas para atletas não deficientes, a convite da Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF), tendo chegado a ganhar um Grande Prémio de 400 metros em Inglaterra, o qual lhe foi retirado por correr fora da sua linha.
Começou a acalentar o sonho de correr nos Jogos Olímpicos de Pequim até que, em Junho de 2007, a IAAF alterou as suas regras de competição para banir o uso de “qualquer aparelho técnico que incorpore fibras, rodas ou outros elementos que proporcionem ao seu utilizador uma vantagem sobre outro atleta que não use tal aparelho”.
Garantindo que as alterações não eram especificamente dirigidas a Oscar Pistorius, que usa próteses de fibras de carbono, a IAAF submeteu-o a dois meses de testes na Alemanha, tenho concluído, em Janeiro de 2008, que as suas próteses lhe davam “vantagens consideráveis sobre os atletas que não usavam próteses”, isto é, sobre aqueles que não têm qualquer deficiência. Decidiu, pois, a IAAF, que Óscar Pistorius não podia correr ao lado dos não deficientes.
O atleta não se conformou e recorreu para o Tribunal Arbitral do Desporto em Lausane, na Suiça, o qual acabou por lhe dar razão, abrindo o caminho para que ele tente obter os mínimos para representar o seu país. Mesmo que o não consiga, mais um preconceito foi ultrapassado. Se o conseguir, será o primeiro atleta amputado a participar nuns Jogos Olímpicos.
Mais informação e reacções aqui, onde existem ligações para uma meia dúzia de artigos sobre esta luta de um deficiente por um lugar entre os "normais".
segunda-feira, maio 19, 2008
Fim
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza…
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.
Mário de Sá-Carneiro
domingo, maio 18, 2008
O Êxito e a Felicidade
A raiz do mal reside no facto de se insistir demasiadamente que no êxito da competição está a principal fonte da felicidade. Não nego que o sentimento do triunfo torna a vida mais agradável. Um pintor, por exemplo, que viveu obscuramente na juventude, decerto se sentirá feliz se o seu talento acabar por ser reconhecido. Não nego também que o dinheiro, até um certo limite, é capaz de aumentar a felicidade; para lá desse limite, julgo que não. O que eu afirmo é que o êxito só pode ser um dos vários elementos da felicidade e que é demasiado o preço pelo qual se obtém se a ele se sacrificam todos os outros.
Bertrand Russell, in "A Conquista da Felicidade"
sábado, maio 17, 2008
Desencanto
Tua silhueta
ainda arranha minha retina
contigo
ignorei o futuro
vislumbrei apenas o preciso
- um blefe do destino -
que seja!
Atravessei meus espinhos
perdi todas as defesas
hoje
imune à dor
refém de mim
lastimo a insistência da vida
Poderia ser tudo maior.
Sim! Poderia!
Mas era preciso muito...
Muito mais!
nessa paixão sem amanhãs
réstia de luz
refletida nessa taça de cristal trincada.
Ana Cristina Souto*
*poetisa brasileira
sexta-feira, maio 16, 2008
Descartáveis
Onde se fala da NATO no Afeganistão, de soldados polacos presos após a queda do governo de extrema direita, de vingança, do assassinato puro e duro de civis, incluindo mulheres e crianças, da ocultação, da normalidade da morte de civis, do silêncio cúmplice dos media ocidentais (com honrosa excepção da imprensa polaca) e de algumas coisas mais.
quinta-feira, maio 15, 2008
quarta-feira, maio 14, 2008
A invenção
Há 60 anos foi declarada a independência do estado de Israel.
Visitei a Palestina em 1994, integrado num grupo de cerca de cem pessoas que ocuparam, durante a permanência de uma semana, dois autocarros de turismo, cada um com o seu guia. Eram tempos de alguma descompressão, com os recém celebrados acordos de Oslo e Yitzhak Rabin no poder, se bem que a visita tenha coincidido com uma semana algo tensa, pois estava a ser negociado, creio que nos Estados Unidos sob os auspícios de Bill Clinton, o Tratado de Paz entre Israel e a Jordânia, que viria a ser assinado em Outubro desse ano.
No autocarro em que viajei calhou-nos uma guia nascida em Buenos Aires, casada com o guia do outro autocarro, ele nascido no Rio de Janeiro, ambos emigrados para Israel na adolescência. Senhores duma sólida formação histórica (na altura, os guias israelitas eram sujeitos a exames anuais para renovarem a sua licença), eram extremamente liberais e nada preocupados com os preceitos religiosos do judaísmo (confessaram gostar muito de presunto e salpicão, a que apenas tinham acesso quando visitavam Portugal ou Espanha ao serviço da agência).
Estranhei, por isso, a resposta que obtive quando abordei o problema do direito dos palestinos à terra. “Não têm”, disse-me a guia. “Esta terra pertence-nos há milhares de anos, enquanto eles (os palestinos) só cá estão desde o fim do século passado”. Ainda tentei argumentar, nas era como bater contra uma parede. Era o regresso do Egipto, o exílio de séculos provocado pelos romanos, o rol de perseguições e o regresso à “Terra Prometida”.
Fiquei a pensar como era possível que pessoas deveras inteligentes tivessem uma postura tão radical relativamente à questão do direito à terra. Até que deparei, recentemente, com um artigo do historiador e jornalista israelita Tom Segev, intitulado Uma invenção chamada “o povo judeu”, cuja versão original se encontra disponível aqui. Existe, também, a respectiva tradução em castelhano.
A doutrinação tem um enorme poder!
terça-feira, maio 13, 2008
Viver é perigoso
Viver é muito, muito perigoso, repetia o jagunço Riobaldo Tatarana, personagem inesquecível de Guimarães Rosa.
Para muitos, porém, a afirmação ultrapassa os limites literários e metafísicos. O próprio viver cotidiano, para os mais assustados, é cancerígeno, a acreditar no que lemos em jornais, revistas, sites, blogs, e também no que "aprendemos" em conversas sem melhor assunto.
Já li e ouvi de tudo a esse respeito.
Que o incenso é altamente cancerígeno, para desespero dos místicos de diferentes crenças.
Que o telefone celular é cancerígeno, para desespero de 45% da população mundial, o ouvido atento grudado nele.
Que o adoçante artificial é cancerígeno, para desespero de todos os que fazem a eterna dieta.
Vale a pena ler na íntegra este saboroso texto de Gabriel Perissé, escritor brasileiro, publicado no Correio da Cidadania.
segunda-feira, maio 12, 2008
Letra para um hino
É possível falar sem um nó na garganta
é possível amar sem que venham proibir
é possível correr sem que seja fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.
É possível andar sem olhar para o chão
é possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros
se te apetece dizer não grita comigo: não.
É possível viver de outro modo. É
possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.
Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre.
Manuel Alegre
domingo, maio 11, 2008
Sobre o poeta
o poeta sofre:
de falta de palavras
de falta de certezas
de falta de amores
que o tempo lhe rouba
enquanto busca a caneta: o papel
e os rascunhos pendurados
em si mesmo:
mas se a busca cessa
corre o risco de morrer
paralisado:
de falta de amores
de falta de certezas
de falta de palavras:
o poeta sofre
Ana Peluso*
*poetisa paulista
sábado, maio 10, 2008
Reféns
Nestes últimos dias tenho-me sentido muito em Baixo. Muito mais do que é habitual...
Falei com membros da família.
Radhee disse-me: “Eles [os Xiítas] estão a lutar uns contras os outros; porque é que estão a bombardear o nosso bairro outra vez?” Ele vive em Adhamiya. E acrescentou: “Nós somos novamente prisioneiros. Não apenas dentro deste gueto, mas dentro das nossas casas. Todos os dias há explosões. Porque é que precisam de atacar-nos? Bagdade está a arder outra vez...Isto nunca vai acabar...”
A tia Samira disse: “Layla, peço-te, di-lo ao mundo”. Não percebo porque é que me disse isso, ela não sabe nada acerca do meu blogue. E continuou: “Diz-lhes que não mais podemos suportar isto, não podemos. Que alguém tenha Piedade de nós”. E a ligação caiu.
Reféns da violência, da avidez, da brutalidade, de duplas ocupações. Reféns da pobreza, da doença, do desemprego, das fronteiras fechadas e do exílio...Reféns do sectarismo, do chauvinismo, da corrupção...Reféns de desfalcadores, de grupos criminosos, de ladrões, de assassinos, de sádicos, de violadores, de pervertidos e matadores...
Todos são culpados.
Mais um testemunho da poetisa e sobrevivente iraquiana Layla Anwar, para ler no seu blogue An Arab Woman Blues - Reflections in a sealed bottle....
sexta-feira, maio 09, 2008
No País dos Sacanas*
Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para poder funcionar fraternalmente
a humidade da próstata ou das glandulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.
Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é que foram disso?
Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora.
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice,
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência, a
justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir.
No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já é pelo menos dois.
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.
Jorge de Sena
*a propósito da "ratificação" definitiva de um tal tratado de lisboa (minúsculas intencionais)
quinta-feira, maio 08, 2008
Referências e preferências
O jornal da noite da RTP dedicou ontem longo espaço à demissão do Director da Polícia Judiciária.
Conhecendo Alípio Ribeiro apenas pelas barbaridades que foi deitando pela boca fora durante o pouco tempo em que permaneceu no cargo, não estranho que se tenha demitido, mas sim que se tenha aguentado até agora.
Já me espanto quando oiço o locutor da televisão pública a dizer que os principais jornais ingleses tinham dado destaque à notícia e fiquei de cara à banda quando ele identificou os tais jornais: News of The World, The Sun, Daily Mirror, .... Então, para o director de informação da RTP, os principais jornais ingleses são o lixo dos lixos? Gostava de saber o que é que José Alberto Carvalho chama a jornais verdadeiramente dignos desse nome, como o The Guardian, o Times ou o Independent. É caso para dizer que cada um tem as referências que merece, mas na vida privada. No serviço público, as referências não podem ser o lixo mediático.
Das referências às preferências foi um pequeno passo, com representantes dos magistrados a criticarem a escolha de um operacional da casa, em detrimento de um juiz, alegando a falta de independência do operacional, como se não houvesse mecanismos constitucionais para garantir tal independência.
Tendo nós assistido ao despudor (pelo menos para a grande maioria dos leigos como eu) com que vários elementos da magistratura têm feito da justiça gato sapato, numa irresponsabilidade total e sem nenhum controlo por parte dos órgãos (in)competentes, há corporações que nos querem comer por parvos ou não têm mesmo vergonha na cara. Provavelmente, nem cara têm para ter vergonha.
quarta-feira, maio 07, 2008
Conselhos sábios
Um homem que segue as suas inclinações ao escolher o curso da sua vida pode empregar meios muito mais seguros para atingir o sucesso do que um outro, que é levado pelas sua inclinação a seguir o mesmo caminho e persegue o mesmo objectivo. As riqueza são o principal objecto dos vossos desejos? Adquiri competência na vossa profissão; sede diligentes no exercício dessa profissão; ampliai o círculo dos vossos amigos e conhecidos; evitai os prazeres e as despesas; e nunca sejais generosos a não ser tendo em vista ganhar mais do que poderíeis economizar através da frugalidade. Desejais conquistar a admiração do público? Guardai-vos igualmente dos extremos da arrogância e do servilismo. Fazei notar que atribuís valor a vós mesmos, mas sem mostrar desprezo pelos outros. Se cairdes em algum dos extremos, ou ireis provocar o orgulho dos outros com a vossa insolência, ou ensiná-los a desprezar-vos por causa da vossa timorata submissão e por causa da baixa opinião que aparentais ter de vós mesmos.
David Hume, Ensaios Morais, Políticos e Literários, O Céptico
David Hume nasceu há 297 anos, mas as suas ideias continuam a ter enorme influência na actualidade. Como de pode ver pela passagem citada, há candidatos a ricos e candidatos a políticos a quem faria muito bem ler os seus Ensaios Morais, Políticos e Literários. Qualquer nível de inglês técnico, mesmo o elementar, é suficiente, tal a clareza da sua escrita.
terça-feira, maio 06, 2008
A noite de Pavese
Raras vezes me franquearam a porta
e me deixaram entrar. A febre
sitia-me a alma e quem me vê
assusta-se do aspecto do meu rosto,
esta barba por fazer onde um rouxinol
se esconde. E mais ainda assusta
a minha altura, este lugar de vertigem
e palavras poderosas, a presença
de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer,
o estremecimento que corre nos meus ombros.
Embora nada peça, sabem que sou um pedinte.
E quando entro nas casas os meus gestos
afeiçoam-se a alguma coisa enigmática
que contorna o pavor e o entrega
por não se saber que espécie de vida ou de morte
vem comigo. Obviamente, eu abençoo
quem me deixa entrar, dou a entender
que alguma coisa brilha nas minhas mãos
e posso matar a fome com uma ou outra palavra
próxima do amor, um dedo nos cabelos
de quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa
em silêncio e em silêncio aceitei que me aguardassem
com as inefáveis sombras que vejo nos outros
e tento decifrar para meu contentamento.
Mandaram-me sentar e deram-me de beber.
Esse álcool reconfortou-me a alma.
E a minha gratidão expressa-se deste modo, limpo
e nítido, observando a mulher nesse sem fim
das coisas, onde todos os mistérios avançam
para uma explicação que a qualquer momento
pode irromper do espírito como uma explosão.
Olho-te nos olhos e recebo as duas moedas
que me ofereces, o teu rosto é-me familiar
se recuar à infância e subitamente perceber
que também pertenci ao exercício desta árvore
que nesta sala se levanta. Em frente,
na fotografia que o meu olhar alcança
porque me alcança o olhar que dela se desprende,
inscreve-se o enigma que me fez aqui chegar,
mais que um rumor ou um fio ténue
com o nome de todas as coisas inesperadas
que me aconteceram na vida, sempre
que me franquearam a porta e me deixaram entrar.
Agora, com a memória de ter estado em tua casa
e ter recebido a graça de alguma atenção,
eu, que sou pedinte embora nada peça,
entrego-te este sulco da desordem
sobre a página em branco e agradeço-te
com o conhecimento de um outro mundo
ainda mais inexplicável.
Não tendo havido despedida, sabe que permaneço
e na encruzilhada das dores que me couberam viver
não esquecerei o teu nome no dia em que também tiver partido
e mais nenhuma luz houver além daquela
que ilumina o teu rosto na solidão da noite.
Os anjos esperam-me. Não me é possível demorar.
Que me seja a alba a tua tolerância.
Amadeu Baptista*
*poeta portuense que hoje completa 55 anos
segunda-feira, maio 05, 2008
A Arte da Recordação
A memória é não-mediada, e o que vem em seu auxílio vem directamente; a recordação é sempre reflectida. É por isso que recordar é uma arte. Como Temístocles, em vez de lembrar, desejo poder esquecer; porém, recordar e esquecer não são opostos. Não é fácil a arte de recordar, porque a recordação, no momento em que é preparada, pode modificar-se, enquanto a memória se limita a flutuar entre a lembrança certa e a lembrança errada. Por exemplo, o que é a saudade? É vir à recordação algo que está na memória. A saudade gera-se simplesmente pelo facto de se estar ausente. Arte seria conseguir sentir-se saudade sem se estar ausente. Para tanto é preciso estar-se treinado em matéria de ilusão. Viver numa ilusão, em que o crepúsculo é contínuo e nunca se faz dia, ou alguém ver-se reflectido numa ilusão, não é tão difícil como alguém reflectir-se para dentro de uma ilusão e ser capaz de deixá-la agir sobre si, com todo o poder que é o da ilusão, apesar de se ter pleno conhecimento disso. A magia de trazer até si o passado não é tão difícil como a de fazer desaparecer o que está presente em benefício da recordação. É aqui que reside no fundo a arte da recordação e a reflexão elevada à segunda potência.
Soren Kierkegaard, in 'In Vino Veritas'
Texto retirado do Citador
Os poemas
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
Mário Quintana* - Esconderijos do tempo - Porto Alegre: L&PM, 1980.
*no 14º aniversário do falecimento
domingo, maio 04, 2008
Quando eu nasci
Quando eu nasci
ficou tudo como estava.
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais ...
Somente,
esquecida das dores
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém ...
Para que o dia fosse enorme
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos da minha Mãe ...
Sebastião da Gama
sábado, maio 03, 2008
O embaixador
Amanhã, dia 4, haverá um referendo racista e ilegal na Bolívia, destinado a declarar a autonomia da região de Santa Cruz e anexos, referendo esse desenhado pelos oposicionistas ao presidente eleito, Evo Morales, com o apoio descarado do embaixador dos Estados Unidos, Philip Goldberg, e dos respectivos dólares de “ajuda humanitária”. Parece que os senhores da riqueza que, há vários séculos, vem sendo roubada aos nativos, não querem ser governados “por um índio ignorante”.
É uma situação potencialmente explosiva e susceptível de afogar num banho de sangue parte da Bolívia e dos países vizinhos, mas não há grandes surpresas, dado que o Sr. Goldberg foi, desde o brutal bombardeamento da Sérvia, em 1999, o homem de mão dos Estados Unidos no Kosovo, onde mexeu os necessários cordelinhos para que aquela província sérvia referendasse e declarasse unilateralmente a sua independência.
Com o Sr. Jardim a lutar pelo lugar de primeiro ministro cá do burgo, após a Bolívia deverá ser a vez de Portugal acolher o Sr. Goldberg. Depois, é só os “jardinistas” decidirem um referendo unilateral na Madeira, com vista à independência da Ilha, que terá o Sr. Jardim como imperador vitalício, com domínio férreo sobre Porto Santo, Selvagens e Desertas.
Mas o futuro presidente dos Estados Unidos terá de ser célere a nomear o novo embaixador porque, mesmo na hipótese burlesca de o Sr. Jardim vir a ser o “primeiro” do rectângulo, terá muito pouco tempo para organizar o tal referendo antes da sua fatal queda.
Consta que os serviços de informação da república já detectaram algum mal estar entre a fauna autóctone das Selvagens e das Desertas, que afirma em coro ser laica, republicana e socialista e ter os mesmo direitos das Berlengas, dos Farilhões e das Ilhas do Pessegueiro e da Armona.
sexta-feira, maio 02, 2008
Pesar dos pesares
Acabei de ouvir que a assembleia da república (minúsculas propositadas) aprovou hoje um voto de pesar pela morte de um dos maiores assassinos que Portugal conheceu no pós 25 de Abril, cónego Melo de seu nome. Eu, que até concordaria com um voto de pesar pela longevidade do facínora, tive de esfregar os olhos para confirmar que era mesmo um voto de pesar pela morte do bombista, que viveu mais de oitenta anos, quando a morte madrasta levou, na flor da vida, expoentes da liberdade como o Adriano ou o Zé Carlos, e não permitiu que outros, como o Zeca ou o Paredes, continuassem a iluminar-nos com a sua arte até tão provecta idade. E, como Pilatos, o partido socialista lavou as mãos, abstendo-se. Voto aprovado e, como escreveu Sophia,
Este é o tempo
Da selva mais obscura
Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura
Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura
Este é o tempo em que os homens renunciam.
Post Scriptum: rebentou a canalização cá em casa e estou a escrever no meio de um amontoado de cinco mil livros, outros tantos CD's e mais de mil DVD's, alcatifas encharcadas e um montão de coisa terminadas em "idas". Azar dos azares, poh!
quinta-feira, maio 01, 2008
O Nosso Mundo é Este ...
O nosso mundo é este
Vil suado
Dos dedos dos homens
Sujos de morte.
Um mundo forrado
De pele de mãos
Com pedras roídas
das nossas sombras.
Um mundo lodoso
Do suor dos outros
E sangue nos ecos
Colado aos passos…
Um mundo tocado
Dos nossos olhos
A chorarem musgo
De lágrimas podres…
Um mundo de cárceres
Com grades de súplica
E o vento a soprar
Nos muros de gritos.
Um mundo de látegos
E vielas negras
Com braços de fome
A saírem das pedras…
O nosso mundo é este
Suado de morte
E não o das árvores
Floridas de música
A ignorarem
Que vão morrer.
E se soubessem, dariam flor?
Pois os homens sabem
E cantam e cantam
Com morte e suor.
O nosso mundo é este….
( Mas há-de ser outro.)
José Gomes Ferreira