O BICHO
HARMONIOSO
Eu gostava
de ter um alto destino de poeta,
Daqueles
cuja tristeza agrava os adolescentes
E as
raparigas que os leem quando eles já são tão leves
que passam a
tarde numa estrela,
A força do
calor na bica de uma fonte
E a noite no
mar ou no risco dos pirilampos.
Assim,
gloriosos mas sem porta a que se bata;
Abstratos
mas vivos;
Rarefeitos
mas com o hálito nebuloso nas narinas dos animais,
Insinuado
nos lenços das mulheres belas, cheios de lágrimas,
Misturado às
ervas grossas da chuva
E
indispensável aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco!
Ser a vida e
não ter já vida ‑ era um destino.
Depois, dar
a minha Mãe a glória de me ter tido;
A meu Pai,
vendado de terra, um halo da minha luz; e tocar tudo,
Onde eu
houvesse estado, de uma sagração natural; ‑
Não digo
como as Virgens Aparecidas,
Que tornam
imbecis e radiosos os pastorinhos,
Mas como
certo orvalho de que me lembro, em pequeno –
Para lá da
janela a luz cortada por chuva,
E uma prima
que amei, a rir, molhada, chegando;
Mar ao
fundo.
Tudo isto, e
vontade de dormir, também em pequenino,
E logo uma
mão de mulher pronta a fingir de asa aberta,
E preguiça,
Impressão de
morrer do primeiro desgosto de amor
E de ir,
vogando, num negrume que afinal é toda a luz que nos fica
Desse amor
forrado de desgosto,
Como as
estrelas encobertas,
Que, depois
de girar a nuvem, mostram como estão altas:
Tudo isto
seria aquele poeta que não sou,
Feito graça
e memória,
Separado de
mim e do meu bafo individualmente podre,
Livre das
minhas pretensões e desta noite carcomida
Pelo meu ser
voraz que se explora e ilumina.
Mas não. Do
canto necessário
Para me
diluir em som e no ar que o guardasse
(Como o
nervo do degolado alonga em tremor seu pasmo)
Não chego a
soltar senão uma vaga nota,
E a noite
faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos
No meu
buraco vil de bicho harmonioso.
Deixarei,
estampada pelo silêncio definitivo,
A ramagem
fremente dos meus dedos num pouco de terra
Estranho
fóssil!
(Vitorino
Nemésio faleceu faz hoje 35 anos)
1 comentário:
'Se bem me lembro' a poesia nesse tempo (como o teatro ou a música portuguesa) tinham lugar de honra na TV. Hoje em dia e infelizmente, a poesia televisiva é bem diferente... para pior!
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