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segunda-feira, outubro 31, 2016

Viver

Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era só a batida
numa porta fechada?

E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?

Isso, ou menos que isso
uma noção de porta,
o projecto de abri-la
sem haver outro lado?

O projecto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?


(poeta mineiro nascido faz hoje 114 anos)

domingo, outubro 30, 2016

Llegó con tres heridas
 
Llegó con tres heridas
la del amor,
la de la muerte,
la de la vida.

Con tres heridas viene
la de la vida,
la del amor,
la de la muerte.

Con tres heridas yo:
la de la vida,
la de la muerte,
la del amor.


(Miguel Hernandez nasceu a 30 de Outubro de 1910)

Ela, em meu Sonho

Ela vivia num palácio mouro...
Nas harpas, os seus dedos a espreitarem
como pajens curiosos, a afastarem
os cortinados todos fios de ouro.

As suas mãos, tão leves como as aves,
ora fugiam volitando, frias,
ora pesam, trêmulas, suaves,
nas cordas, a sonharem melodias...

E os sons que ela tangia, aos seus ouvidos
chegaram, receosos de senti-la,
voltavam a não ser nunca tangidos.

É que ela, as suas mãos, as harpas de ouro,
não eram mais do que um supor ouvi-la
e o meu julgá-la num palácio mouro.


(poeta português nascido faz hoje 125 anos)

sábado, outubro 29, 2016

Letra

Talvez
escrevendo
alguma coisa amanheça

Talvez
o poema
desperte o pássaro

Talvez
a palavra
te incendeie

Talvez
a sílaba
grite

Talvez
a letra
crua

Talvez
soletrando
amor a noite se despeça


(poeta gaúcho que hoje faz 68 anos)

sexta-feira, outubro 28, 2016

Amor

Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem que o amor provoca.
Longe respira a vida. Aqui o sonho.
Tudo é infância de águas e colinas
Na manhã dos teus olhos.
E vôos de mãos dadas.
E cantos, cantos de infinito amor,
Nos galhos, nas correntes e nas sombras veladas.

Envolve-se de nuvem nosso abraço.
Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem. Fadas e duendes
agitam instrumentos na folhagem.

Vibrátil, fina, imperceptível, fluída
orquestra ao longe. Ao fundo dos sentidos.
Dedos de flores ondeiam sobre a pele
de Céus indefinidos.

Cantam mistérios bocas fascinadas.
Abrem corolas sob a luz que as toca.
Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem que o amor provoca.


(poetisa benaventense nascida a 28 de Outubro de 1920)

quinta-feira, outubro 27, 2016


Lou Reed faleceu faz hoje 3 anos
Canção Inocente

Menino: queres ser meu mestre?
- Contigo teria tanto que aprender!

A ser casto, sem querer;
a ser bom, sem o saber;

a ser alegre, sem ter
motivos para o ser.

Menino: queres ser meu mestre?
- Deixa o teu arco aí. Vem-me ensinar

a sorrir e a confiar;
a ter esperança e a perdoar;
a esquecer e a chorar...

Menino, que brincas no jardim:
- Tu sim,
podias ser um mestre para mim!


(poeta português falecido faz hoje 67 anos)

quarta-feira, outubro 26, 2016

Espuma

Sois (e amar-vos é sonhar?)
alva, esguia e encantadora...
Sois uma pluma? um luar?

Sois (e amar-vos é chorar...)
alma fria e enganadora!
Sois uma espuma... num Mar!


(poeta brasileiro nascido a 26 de Outubro de 1894)

terça-feira, outubro 25, 2016

Inútil sou

Por seguir das coisas o compasso,
às vezes, quis neste século ativo,
pensar, lutar, viver com o que vivo,
ser no mundo algum parafuso a mais.

Mas, atada ao sonho sedutor,
do meu instinto voltei ao escuro poço,
pois, como algum inseto preguiçoso
e voraz, eu nasci para o amor.

Inútil sou, pesada, torpe, lenta,
meu corpo, ao sol estendido, se alimenta
e só vivo bem no verão,

quando a selva cheira e a enroscada
serpente dorme em terra calcinada;
a fruta se abaixa até minha mão.


(poetisa argentina falecida faz hoje 78 anos) 

Tradução de Héctor Zanetti 

segunda-feira, outubro 24, 2016

Poema dos Náufragos Tranquilos

Somos herdeiros dos quatro ventos
Sem uma vela para lhes dar
Temos amarras e temos lenços
Num cais de pedra para acenar.

Somos herdeiros da maresia
Que salga os olhos de olhar o mar
E temos rios de lava fria
Que se recusam a desaguar.

Somos herdeiros de uma lembrança
de tesouros afundados
e arpoamos a esperança
na nossa morte reclinados.

Somos herdeiros de um rombo aberto
no nevoeiro secular tranquilos
náufragos do incerto
vamos morrer no mar.


(poeta açoriano nascido faz hoje 80 anos)

domingo, outubro 23, 2016

Vida

A vida amou a morte
mais do que havia para morrer.

Na beira da cama,
o sândalo dos pés
convidava-me
a renunciar as sandálias
e debulhar a palha noturna.

Apaguei os pensamentos
na espuma da pele.

Abandonar o paraíso,
a única forma
de não esquecê-lo.


(poeta gaúcho que hoje faz 44 anos)

sábado, outubro 22, 2016

Os infinito íntimos

Não me cinjas
a voz
não me limites

não me queiras
assim
antecipado

Eu não existo
onde me pensas

Eu estou aqui
agora
é tudo

Esta causa
Que me retoma
Em cada dia

Age na esperança
Em que respira
Esta necessidade
De estar vivo

No círculo
em que se fecha
o que em mim
respira
há um suicídio
de memórias
que não cabem
no que em mim
existe

Já fui longe de mais
matando-me nas pedras
que atiro contra mim
sentindo o que não sei

Há por aí alguém
que queira vir comigo
atrás do que seremos
quando tivermos sido?

O que resta de nós
Dorme a noite invisível
Que ainda nos sobra

O que me cansa
é o diabo da esperança

O que ficará de mim
nos restos digitais
do tempo
quando chegar
o fim
de que me ausento


(João Apolinário faleceu faz hoje 28 anos)

sexta-feira, outubro 21, 2016

Soneto da noite branca

No insólito do azul é melodia
a paz dos claros céus. Lua madura
modela imagens sobre a serrania,
e flui o tempo em lírica doçura

nas almas e nos sonhos. Noite pura
de silêncio esplendor, magma do dia.
(Antes que no torpor da angústia escura
brilhe a estrela da morte em fronte fria,

o tumulto das ânsias se asserena
e o coração aquieta a face nua,
pois, se pensa, também está sentindo;

é que não há, Pessoa, alma pequena
sob a noite solar: carne de lua
transluminosamente azuluzindo.)


(poeta pernambucano falecido faz hoje 10 anos)

quinta-feira, outubro 20, 2016

Um tempo
 
No gesto
   cumpre-se
   um tempo
palavra sôfrega
     de futuros.

No amor
    aniversariza-se
     o sentimento
rompendo
      Os nossos muros.


(poeta moçambicano que hoje faz 71 anos)

quarta-feira, outubro 19, 2016

Não o Sonho

Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora.


(Manuel António Pina faleceu faz hoje 4 anos)
A ausente

Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à ideia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranquilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...


(Vinicius de Moraes nasceu faz hoje 103 anos)

terça-feira, outubro 18, 2016

Poema, Janeiro 1992

Dizem que a tempestade
que flagelou o noroeste custou
mil milhões.
A quebra bancária do ano passado, sabemos
que custou vinte mil.

Quer dizer: os deuses do clima teriam que desencadear
um furacão
a cada três semanas
durante um ano inteiro para poder comparar-se
com as catástrofes causadas pelos banqueiros.

Visita o Rei
as vítimas da banca?


(poeta norueguês que hoje faz 77 anos) 

Tradução de Amadeu Baptista

segunda-feira, outubro 17, 2016

Não tenho lágrimas

estou mais baixo
junto à cal
Vejo o solo extinto
Não oiço ninguém
e não regresso
Adormecer talvez
junto a uma estaca
com uma pequena pedra
sobre as pálpebras


(António Ramos Rosa nasceu faz hoje 92 anos)

domingo, outubro 16, 2016

A Chave do Abismo -  XXVIII

Pássaros retumbam nos bosques
perfume dos grandes bosques negros
dos abismos dos precipícios
dos desfiladeiros vem a lembrança
da palavra perdida de Deus
longa é a noite de outono
céus azuis e planícies imensas sob a noite


(escritor mato-grossense nascido faz hoje 80 anos)

sábado, outubro 15, 2016

Tragédia

Foi para a escola e aprendeu a ler
e as quatro operações, de cor e salteado.
Era um menino triste:
nunca brincou no largo.
Depois, foi para a loja e pôs a uso
aquilo que aprendeu
- vagaroso e sério,
sem um engano,
sem um sorriso.
Depois, o pai morreu
como estava previsto.
E o Senhor António
(tão novinho e já era «o Senhor António»!...)
ficou dono da loja e chefe da família...
Envelheceu, casou, teve meninos,
tudo como quem soma ou faz multiplicação!...
E quando o mais velhinho
já sabia contar, ler, escrever,
o Senhor António deu balanço à vida:
tinha setenta anos, um nome respeitado...
- que mais podia querer?
Por isso,
num meio-dia de Verão,
sentiu-se mal.
Decentemente abriu os braços
e disse: - Vou morrer.
E morreu!, morreu de congestão...


(Manuel da Fonseca nasceu faz hoje 105 anos)

sexta-feira, outubro 14, 2016

Ninguém Meu Amor

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos


(poeta bracarense naturalizado moçambicano, falecido faz hoje 16 anos)

quinta-feira, outubro 13, 2016

Desencanto

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.


(poeta pernambucano falecido faz hoje 48 anos)

quarta-feira, outubro 12, 2016

Algo

Algo envereda
Pelo silêncio
De toda queda.
Reconstrói o ócio

Envenenado
Das circunstâncias.
O vesgo enfado
De velhas ânsias

Flutua, tímido,
No sustenido
Tom destemido

Vindo, silente,
Na transcendente
Dor decadente.


(poeta norte-rio-grandense que hoje faz 49 anos)
A miragem no caminho

Perdeu-se em nada,
caminhou sozinho,
a perseguir um grande sonho louco.
(E a felicidade
era aquele pouco
que desprezou ao longo do caminho).


(poetisa paranaense nascida faz hoje 104 anos)

terça-feira, outubro 11, 2016

dorso de anjo

Em sonhos rua que encanta
e uma trombeta irreal
mentiras são que levanta
um anjo celestial.

Que seja sonho ou não seja,
logo a mentira se afunda,
se a gente de cima o veja,
que todo o anjo é corcunda.

Pelo menos é-o a sombra
na parede do meu quarto.


(Jean Cocteau faleceu faz hoje 53 anos) 

tradução de Jorge de Sena

segunda-feira, outubro 10, 2016


Edith Piaf faleceu faz hoje 53 anos
À Minha Mulher

Eu estava morto e vivo agora
Tu pegaste-me na mão

Eu morri cegamente
Tu pegaste-me na mão

Tu viste-me morrer
E encontraste-me a vida

Tu foste a minha vida
Quando eu morri

Tu és a minha vida
E assim eu vivo


(Harold Pinter nasceu faz hoje 86 anos)

domingo, outubro 09, 2016

Muriliana

Corto a cidade, as máquinas e o sonho
Do jornaleiro preso no crepúsculo.
Guardo as amadas no bolso do casaco.
Almoço bem pertinho do arco-íris,
Planto violetas na face do operário.
Conversando com anjos e demônios,
É o meu anúncio quem dirige as nuvens.


(poeta paulista falecido faz hoje 18 anos)

sábado, outubro 08, 2016

Música

Esta música triste desprende-me do mundo.
Há quem possa explicá-la,
E nela apreenda frases
E descrições
E cores
E movimentos de alma.
Para mim, tem o encanto de tudo quanto é triste.
Ouço-a,
Os olhos fechados, a cabeça entre as mãos ...

Ponho nela a minha vida,
E não há mais simples nem mais bela música...


(poeta portuense falecido faz hoje 24 anos)

sexta-feira, outubro 07, 2016

ÚLTIMAS DISPOSIÇÕES DO H.M.E.

Para começar tirem-me este trapo da cara, que faz cócegas
e amortalhem nele o meu gato e enterrem-no
ali onde era o meu jardim cromático.

Levem a coroa de latão de cima do meu peito
e atirem-na às estátuas erguidas no entulho,
e ofereçam os laços às putas, para que com eles se enfeitem.

Rezem as orações a um telefone antiquado e sem fio
ou embrulhem-nas num lenço de assoar cheio de farelos
para os estúpidos peixes do charco.

O Bispo que fique em casa e se emborrache,
dêem-lhe uma garrafa de rum
(o sermão vai fazer-lhe sede).
E deixem-me em paz com lápides e chapéus altos!
Com o belo basalto pavimentem uma viela
onde ninguém more,
uma Ruazinha para pássaros.

Na minha mala há muito papel amarelo para o meu primo miúdo
fazer com ele avionettes que hão-de voar, bonitas, da ponte
e ir mergulhar no rio.

O mais que fica (umas cuecas, um isqueiro, uma linda opala
e um despertador) isso é para oferecer a Calístenes, o trapeiro,
com a devida gorjeta.

Quanto à ressurreição da carne, entretanto, e à vida eterna,
dessas coisas trato eu, se estão de acordo:
É cá comigo, não acham? Então, adeus!

Na banca de cabeceira há ainda alguns cigarros.


(poeta lisboeta que hoje faria 83 anos)

quinta-feira, outubro 06, 2016

O Dom

Defronte à matriz do tempo
interrogo uma vez mais as noites
através da fala irônica dos loucos
ou do sorriso ingênuo dos filósofos

José Vicente Lopes 

(poeta cabo-verdiano que hoje faz 57 anos)

quarta-feira, outubro 05, 2016

Os solitários

Na fria planície me quedo em silêncio;
Um sol mortiço vai descendo a ocidente.
Pálida, a lua assoma ao firmamento.

Em fumos se expande a terra orvalhada.
Nos campos hirtos, sob o Verão quente
E fugaz, esconde-se o gelo eterno:
É o Inverno numa farsa de Verão.

Ainda se ouvem os chocalhos tilintar,
Ainda se avista o trilho irregular,
A carroça, essa, deixou de se ver.

Sim, tudo passa, desaparece...
E, embora inspire ternura,
O pouco que ficou
Não chega para viver.


(poeta holandês falecido a 5 de Outubro de 1936)

terça-feira, outubro 04, 2016

Palavras

Tem cuidado com as palavras
mesmo as milagrosas.
Pelas milagrosas nós fazemos o melhor possível,
por vezes são como uma multidão de insectos
que não nos deixa uma picada mas um beijo.
Podem ser tão boas como dedos.
Podem ser tão seguras como a rocha
onde te sentas.
Mas também podem ser ao mesmo tempo margaridas e amachucadas.

Contudo, estou apaixonada pelas palavras.
São pombas que caem do tecto.
São seis laranjas santas pousadas no meu regaço.
São as árvores, as pernas do verão,
e o sol, seu impetuoso rosto.

No entanto, falham-me com frequência.
Eu tenho tantas coisas que quero dizer,
tantas histórias, imagens, provérbios, etc.

Mas as palavras não são suficientemente boas,
as erradas beijam-me.
Por vezes voo como uma águia
mas com as asas de uma carriça.

Mas tento ter cuidado
e ser amável com elas.
As palavras e os ovos devem manipular-se com cuidado.
Uma vez partidas,
são impossíveis de reparar.


(poetisa estado-unidense falecida faz hoje 42 anos)

segunda-feira, outubro 03, 2016