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terça-feira, março 31, 2015

Inclinação suspensa

É a caricia da mão na minha face
e o meu olhar repousado
o sorriso que passa
rápido
de mim a ti.

É toda uma ternura que nos chama
é a desolada solidão de quem se ama
e conhece o espaço
que fica
de aqui ali.

É uma inclinação suspensa
por toda a pele que nos limita o corpo
gemido, doçura, pena
como o poema
a chamar por mim.


(poetisa moçambicana nascida faz hoje 93 anos)

segunda-feira, março 30, 2015

A boca da noite

O que não fiz ficou vivo
pelo avesso. O que não tive
pertence à dor do meu canto.
A estrela que mais amei
acende o meu desencanto.
Vinagre? Sombra de vinho?
De noite, a vida engoliu
(é doce a boca da noite)
as dores do meu caminho.
O meu voo se apazigua
quando a tormenta me abraça.
O que tenho se enriquece
de tudo que não retive.
Diamante? Flor de carvão.


(poeta amazonense que hoje faz 89 anos)

domingo, março 29, 2015

Jessé faleceu faz hoje 22 anos
LICITAÇÃO 
Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?
Manoel de Barros 
não sei o que esconde
o silêncio
nunca o entendi
talvez sirva
para leiloar sentimentos

sim, deve ser
exactamente isso
que acontece –
e a licitação mais baixa
sempre vence


(poeta tavirense que hoje faz 33 anos

sábado, março 28, 2015

Estou aqui

Estou aqui. Há quanto tempo,
já não sei. Minha memória,
sobre ti me reclino, o meu olhar
já tão deserto. E povoado.


(Luís de Miranda Rocha faleceu faz hoje 8 anos)

sexta-feira, março 27, 2015

Assombros

Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.

Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.

Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.

Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.


(poeta mineiro que hoje faz 78 anos)

quinta-feira, março 26, 2015

Acontecimento

sobre as espigas trémulas
os pássaros migram
para os meridianos virgens
do eu rosto no vento
a densidade da boca


(poeta moçambicano que hoje faz 62 anos)

quarta-feira, março 25, 2015

Para sempre

Para sempre,
nem mais os braços enrodilhados, dos amantes,
nem os lábios prestes ao sigilo
poderiam prender o fito corrompido
que o tempo encardiu,
reconquistando-o ao mar…
…As promessas são muitas,
carregadas de correntes impossíveis
e as velas acesas queimam na noite intensa,
pelo desejo de uma prece,
derramadas nas lajes surdas
o derradeiro alento das ceras…


(poeta brasileiro nascido a 25 de Março de 1908)

terça-feira, março 24, 2015

Aos amigos

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
-Temos um talento doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.
De paixão.


(Herberto Hélder faleceu ontem, aos 84 anos)
Noite Sonora

Anoiteceu. Pelas montanhas veio
Lentamente o crepúsculo caindo ...
O céu, redondo e claro como um seio,
Ficou, de lindo que era, inda mais lindo.

O vale abriu-se em pirilampos cheio,
Luzindo aqui, e ali tremeluzindo ...
No regaço da treva, úmido e feio,
A natureza adormeceu sorrindo ...

As cigarras, na sombra, se calaram:
As árvores no bosque farfalharam
Na esperança de ouvi-las e de vê-las.

Caiu de todo a noite quieta ... Agora,
O céu parece uma árvore sonora
De cigarras cantando nas estrelas ...


(poeta pernambucano nascido faz hoje 126 anos)

segunda-feira, março 23, 2015

O Áugure

Sou um prisma às avessas
as cores em mim se confundem
sou um tapete de ecos
uma cachoeira de gritos
uma cordoalha de muitos tempos

A esfera de lantejoulas
- passado presente futuro -
roda refletindo mil sóis

Sou essa colmeia de incêndios
essa assembleia de sinais
esse rumor insone.

(poeta mineiro falecido há 27 anos)

domingo, março 22, 2015

Cantiga

Deixa-te estar na minha vida
Como um navio sobre o mar.

Se o vento sopra e rasga as velas
E a noite é gélida e comprida
E a voz ecoa das procelas,
Deixa-te estar na minha vida.

Se erguem as ondas mãos de espuma
Aos céus, em cólera incontida,
E o ar se tolda e cresce a bruma,
Deixa-te estar na minha vida.

À praia, um dia, erma e esquecida,
Hei, com amor, de te levar.
Deixa-te estar na minha vida.
Como um navio sobre o mar.


(poeta madeirense nascido a 22 de Março de 1897)

sábado, março 21, 2015

Quando encontrares um homem

Quando encontrares um homem
Que transforme
Cada partícula tua
Em poesia,
Que faça de cada um dos teus cabelos
Um poema,
Quando encontrares um homem
Capaz,
Como eu,
De te lavar e adornar
Com poesia,
Hei-de implorar-te
Que o sigas sem hesitação
Pois o que importa
Não é que sejas minha ou dele
Mas sim da poesia.


(poeta sírio nascido faz hoje 92 anos)
Dissonâncias

esse abraço
que te traduz dentro
de mim

é um pouco do tanto
que eu posso e uma
água de poço olhando
pra mim

esse despertar da pele
em teus olhos e risos

é o abraço do vento
inteiro quente preciso

por isso esta poesia
de poucas notas

traduzindo o que eu
sou

para muito além
do fim


(poeta gaúcho que hoje faz 58 anos)

sexta-feira, março 20, 2015

Estátuas perdidas

Há formas irrealizadas de ti
no côncavo de minha mão
que poderiam fazer cem estátuas.
Instantes de felina beleza
movimentos bruscos de quem freme ou foge às carícias,
detalhe do teu corpo esquivo
feitos de curvas plásticas e inéditas
que ficaram decalcadas na minha pele,
no meu insatisfeito desejo
como se eu fosse um molde vivo
de obras-primas que esperam ser fundidas
em bronze, em verso, em música.

Nessas estátuas perdidas
vai-se tua própria mocidade
porque forma teus instantes de amor
que tive em minhas mãos.


(poeta paulista nascido a 20 de Março de 1892)

quinta-feira, março 19, 2015

Amo

Amo no meu corpo.
Amo nas ligações entre átomos
ou lá o que se queira chamar ao infinitésimo
da infinita parte do que nada é.
Amo e apenas amando
me mantenho unido,
na forma do que interpretas
como um homem de bom umbigo.

Amo na minha mente.
Amo nas correntes cíclicas entre pensamentos
e nas espirais da consequência
daquilo que do nada é consciência.
Amo e apenas amando
me mantenho pensante,
na forma do que interpretas
como um homem bem ensinante.

Amo na minha alma.
Amo nos estágios da simbiose
entre os sonhos que a existência inflama
e que a essência acalma.
Amo e apenas amando
me mantenho existente,
na forma do que interpretas
como um espírito de sol nascente.

Amo...
logo existo.


(poeta almadense que hoje faz 36 anos)

quarta-feira, março 18, 2015

Os indigentes também são gente

nessa folha onde escrevi a vida que já esqueci
limpo agora o rosto
quanto tempo passou já me não lembro
que o meu país é um país ao deus-dará
sobram-me dias inquietos
as calçadas não trazem passos de volta
nada me acode
que o meu país já não pertence aos seus herdeiros
vendido pelo preço duma esmola
que não me lembro de pedir
ando com os pés descalços sujos de lama e de pus
e o que escrevi nessa folha tem o preço
de tudo o que me roubaram
e te roubaram
e nos roubaram
e que aqueles que roubaram hão-de pagar
não lembro dias de festa
pouco me lembro de mim
mas do que me lembro sei
que está na hora de lhes apresentar a conta


(escritor estremocense que hoje faz 62 anos)
O Mar

O mar corteja a praia e, uma a uma,
as ondas pousam pérolas de espuma
sobre seu ventre branco, umedecido.


(poeta paraibano nascido faz hoje79 anos)

terça-feira, março 17, 2015

Indiferença

Existem momentos em que as cores fogem
dos olhos e palavras param na boca.
Enquanto as mãos descem nas costas
e se penduram no cabide da indiferença.


(poetisa maiata que hoje faz 49 anos)

segunda-feira, março 16, 2015

Mãos feridas na porta dum silêncio

Vida que às costas me levas
porque não dás um corpo às tuas trevas?

Porque não dás um som àquela voz
que quer rasgar o teu silêncio em nós?

Porque não dás à pálpebra que pede
aquele olhar que em ti se perde?

Porque não dás vestidos à nudez
que só tu vês?


(Natália Correi faleceu faz hoje 23 anos)
O que desejei às vezes

O que desejei às vezes
Diante do teu olhar,
Diante da tua boca!

Quase que choro de pena
Medindo aquela ansiedade
Pela de hoje - que é tão pouca!

Tão pouca que nem existe!

De tudo quanto nós fomos,
Apenas sei que sou triste.


(poeta abrantino falecido faz hoje 56 anos, exilado no Brasil)
Ode II

Na curva insondável
entre a solidão e a multidão,
tomar a si e ao mundo
nas mãos,
e depois da atitude,
o claro testemunho.

Que o existir é esse instante
ousado
onde um ser incansável
depõe do seu rumo,

sem ter outra arma
e outra paixão
além da vida, esta morte
frágil.


(poetisa paulista nascida faz hoje 82 anos)

domingo, março 15, 2015

Ausência

A ausência não é somente
O nada de uma saudade
A sombra de uma lembrança

Ausência, verdadeiramente,
É a certeza de uma vontade
A oportunidade da esperança


(escritor paulista que hoje faz 51 anos)

sábado, março 14, 2015

Álcool

Partir
sim, mas partir realmente,
definitivamente,
cobra que deixa a pela já crestada dos sóis
e se empoleira nas árvores como um pássaro

Partir
que os hotéis de luxo têm seus quartos guardados para mim,
e os salões embandeirados de luz
esperam-me
Partir para Jungfraus e Niagaras,
e à noite embriagar-me entre cristais e mulheres!

Depois,
raspar com as unhas no chão e enterrar-me,
deixando os olhos de fora
para que neles poise
o último orvalho da manhã.


(poeta coimbrão falecido faz hoje 33 anos)

sexta-feira, março 13, 2015

Poética

Alguma palavra,
este cavalo que me vestia como um cetro,
algum vômito tardio modela o verso.

Certa forma se conhece nas infinitas,
a fauna guerreira, a lua fria
encrustada na fria atenção.

Onde era nuvem
sabemos a geometria da alma, a vontade
consumida em pó e devaneio.
E recuamos sempre, petrificados,
com a metafísica
nos dentes: o feto
fixado
entre a náusea e o lençol.

Meu poema me contempla horrorizado.


(poeta mineiro nascido faz hoje71 anos)

quinta-feira, março 12, 2015

Lembranças

Teus retratos - figuras esmaecidas;
mostram pouco, muito pouco do que foste.
Tuas cartas - palavras em desgaste,
dizem menos, muito menos
do que outrora me diziam
teus silêncios afagantes...
Só o espelho da minha memória
conserva nítida, imutável
a projeção de tua formosura,
só nos folhos dos meus sentidos
pairam vívidas
em relevo
as frases que teu carinho
soube nelas imprimir.

Sou a urna funerária de tua beleza
que a saudade
embalsamou.

Quando chegar o meu instante derradeiro
só então, mais do que eu,
tu morrerás
em mim.


(poetisa carioca nascida a 12 de Março de 1893)

quarta-feira, março 11, 2015

Sol do mendigo

Olhai o vagabundo que nada tem
e leva o Sol na algibeira!
Quando a noite vem
pendura o Sol na beira dum valado
e dorme toda a noite à soalheira...
Pela manhã acorda tonto de luz.
Vai ao povoado
e grita:
- Quem me roubou o Sol que vai tão alto?
E uns senhores muito sérios
rosnam:
- Que grande bebedeira!

E só à noite se cala o pobre.
Atira-se para o lado,
dorme, dorme...


(Manuel da Fonseca faleceu faz hoje 22 anos

terça-feira, março 10, 2015

guerra e civilização
 
revolver o sangue até a língua ser revólver
revirar os olhos com endereço revoltar a lua
revelar em fotograma ao retardador o céu
rodopiar em árvore um réquiem solar
revoar em ave a rápice aventura
revolver o universo no rito de morrer

redigo refazer reunir recomeçar
(remorso foi não amar de mais) repercutir
ah grande organista é a flor

(Dórdio Leal Guimarães nasceu faz hoje 77 anos)

segunda-feira, março 09, 2015

Transfiguração

Gomo a beber, pela manhã silente,
as luminosas lágrimas de água
que uma estrela chorou ...

Folha a cair na neve, lentamente...
- Homem! Anda sentir a tragédia de mágoa
que vai do gomo à folha que tombou!

(poeta vianense falecido a 9 de Março de 1941, com 24 anos de idade)


domingo, março 08, 2015

Vigília

Paralelamente sigo dois caminhos
Abstracto na visão de um céu profundo.
Nem um nem outro me serve, nem aquele
Destino que se insinua
Com voz semelhante à minha. O melhor mundo
Está por descobrir. Não segue a lua
Nem o perfil da proa. Vai direito
Ao vago, incerto, misterioso
Bater das velas sinalado de oculto.

Quero-me mais dentro de mim, mais desumano
Em comunhão suprema, surto e alado
Nas aragens nocturnas que desdobram as vagas,
Chamam dorsos de peixe à tona de água
E precipitam asas na esteira de luz.
Da vida nada senão a melhoria
De um paraíso sonhado e procurado
Com ternura, coragem e espírito sereno.

Doçura luminosa de um olhar. Ameno
Brincar de almas verticais em pleno
Sol de alvorada que descerra as pálpebras.


(Ruy Cinatti nasceu faz hoje 100 anos)

sábado, março 07, 2015

Ímpar

Como é
ímpar
Na moldura de uma cama
Um par
Quando se ama!


(poeta lisboeta nascido a 7 de Março de 1954 e falecido aos 52 anos)

sexta-feira, março 06, 2015

Atado ao leito deste hospício em ruínas 
 Para Claudio Willer 
Apliquem-me, por Zeus,
uma Grécia na veia!
A vida anda tão feia, tão disparatada,
que só uma renovada visão helênica
me pode servir de instância
capaz de transcender tamanha ignorância.

Esbarro a cada passo como um asno,
uma anta, um suíno, e nos olhos
do menino antevejo o assassino.

A estupidez é um incêndio atado
pelos tolos, que faz arder
a secura do Ser, erguendo rolos
de basófia em meio a escombros
crepitantes, enquanto ignorantes
dão de ombros e indiferentes
riem a plenos dentes.

Vai-se o esmalte civilizatório
e já estão a queimar os móveis
do escritório; rangem as juntas,
desabam telhas, desconjuntam-se os caixilhos,
o edifício social dança nos trilhos,
vem tudo abaixo num estrondo colossal
sem que se altere o sono do boçal.

E eu, atado ao leito deste hospício
em ruínas — embora não esteja convencido
de que tenha (jamais!) enlouquecido —,
vejo descer sobre mim a noite definitiva,
que, em trajes de enfermeira,
rodeada por uma comitiva zombeteira,
acende o candelabro, no qual ficam a luzir
o escárnio, o crime, o descalabro.


(poeta carioca que hoje faz 79 anos)