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domingo, julho 31, 2011


Anônimos

Fulano pediu a sicrana em casamento.
Ela disse que ainda não é hora.
Onde já se viu!
Mal se conhecem.
Só o bastante para enlouquecer fulano.
Na repartição alguém comentou sobre sicrana,
Fulano enfureceu-se.
Mas sicrana não quer nada com ele.
Ela gosta é do beltrano.

José Januzzi

(poeta mineiro)

sábado, julho 30, 2011


O Auto-Retrato

No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!


(Mário Quintana nasceu a 30 de Julho de 1906)

sexta-feira, julho 29, 2011


Do pensamento

O mistério me leva à estrada
e a estrada revela
a poeira que sou.

O espanto me conduz à reflexão
e a reflexão revela
a peneira que sou.

José Inácio Vieira de Melo

(poeta alagoano)
O ponto a que chegámos

Tea Patty e Andres Behring Breivik são um produto refinado da história. De anos - décadas - de ódios e pregação conservadora contra o Estado, contra a justiça fiscal; contra o pluralismo religioso; contra os valores que orientam a convivência compartilhada. Sobretudo, o princípio da igualdade e da solidariedade que norteia a destinação dos fundos públicos à universalização do amparo aos doentes, à velhice, aos desempregados, aos famintos, aos loosers brancos ou negros, nacionais ou imigrantes. Breivik e o Tea Party assimilaram o cânone. Se agora escapam ao criador, louve-se a competência da madrassa neoliberal. Na crise, ambos apenas confirmam a esférica densidade da formação que receberam e investem contra a desordem. Com fé no mercado e o dedo no gatilho.

(Carta Maior, 6º feira, 29/07/ 2011)

quinta-feira, julho 28, 2011


Roteiro

Parar. Parar não paro.
Esquecer. Esquecer não esqueço.
Se carácter custa caro
pago o preço.

Pago embora seja raro.
Mas homem não tem avesso
e o peso da pedra eu comparo
à força do arremesso.

Um rio, só se for claro.
Correr, sim, mas sem tropeço.
Mas se tropeçar não paro
- não paro nem mereço.

E que ninguém me dê amparo
nem me pergunte se padeço.
Não sou nem serei avaro
- se carácter custa caro
pago o preço


(poeta lisboeta nascido a 28 de Julho de 1920)

quarta-feira, julho 27, 2011


DIA

A praia mansa
antes que tarde
foice.

Fábio Rocha

(poeta carioca)

O fiel amigo




Fernando Sobral, in Jornal de Negócios

terça-feira, julho 26, 2011


Soneto burocrático

Salvo melhor juízo doravante,
Dessarte, data vênia, por suposto,
Por outro lado, maximé, isso posto,
Todavia deveras, não obstante

Pelo presente, atenciosamente,
Pede deferimento sobretudo,
Nestes termos, quiçá, aliás, contudo
Cordialmente alhures entrementes

Sub-roga ao alvedrio ou outrossim
Amiúde nesse ínterim, senão
Mediante qual mormente, oxalá quão

Via de regra tê-lo-ão enfim
Ipso facto outorgado, mas porém
Vem substabelecido assim, amém.


(poeta carioca falecido a 26 de Julho de 2000)

segunda-feira, julho 25, 2011


Carmim

estrela marinha
aquário de vento
gota tecelã
suspensa

(olhos-tempestade)

quimera
do seio lunar
contorna
o orvalho

pedra de fogo
lateja
na
aquarela-ventre

gênesis

José Geraldo Neres

(poeta paulista)

domingo, julho 24, 2011


Infância

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".


(poeta paulista nascido a 24 de Julho de 1890)

sábado, julho 23, 2011

Maria João Pires nasceu a 23 de Julho de 1944
Carlos Paredes faleceu a 23 de Julho de 2004

sexta-feira, julho 22, 2011


Seu Metaláxico

Economiopia
Desenvolvimentir
Utopiada
Consumidoidos
Patriotários
Suicidadãos

José Paulo Paes

(poeta paulista nascido a 22 de Julho de 1926)

quinta-feira, julho 21, 2011


Insolência

Vejam o que fizeram:
- os insolentes e ignorantes
pisotearam as rosas que plantei
às margens do meu caminho pedregoso...
E mais:
crestaram-nas ao sol das perseguições
para que não mais florescessem.

Como explicações - o silêncio
- grito forte em ondas de eco -
Fiquei cego. Surdo. Mudo.
E os minutos pareceram séculos.
Num esforço titânico,
perdoei os que não sabem o que fazem,
- e renasci -
sabendo que eles  nunca faltarão.
- Não plantarei, nunca mais,
flores às margens dos meus caminhos.
Multiplicá-las-ei,
infinitamente,
aqui, dentro de mim.

José Florentino Duarte

(poeta brasileiro)

quarta-feira, julho 20, 2011

Rasgar de portas

Rasgar de portas nos subterrâneos da angústia
donde sai uma mulher de arame
e sexo de vidro
para o colóquio de raspar unhas
no espanto partido.

Adultério astral.

José Gomes Ferreira

"Parce Mihi Domine"


Album "Officium" -" Parce Mihi Domine" (Christóbal de Morales, 1550-1553)

terça-feira, julho 19, 2011

Nacos de nuvens

No céu flutuavam trapos
de nuvem - quatro farrapos:

do primeiro ao terceiro - gente;
o quarto - um camelo errante.

A ele, levado pelo instinto,
no caminho junta-se um quinto.

Do seio azul do céu, pé-ante-pé,
se desgarra um elefante.

Um sexto salta - parece.
Susto: o grupo desaparece.

E em seu rasto agora se estafa
o sol - amarela girafa.


(poeta russo nascido a 19 de Julho de 1893)

Tradução de Augusto de Campos

segunda-feira, julho 18, 2011

Conde de Monsaraz/José Nisa
O Semeador

Robusto semeador, quando semeias
O ventre maternal da terra, quando
A vais, de leira em leira, polvilhando
Do farto grão que espalhas às mancheias,

O sangue que circula em tuas veias
É a força ancestral do miserando
Servo da gleba, ó semeador, semeando
A paz, fecunda e livre, por que anseias.

Há séculos de fomes e canseiras
Que só colhes, das rudes sementeiras,
Despotismos e guerras pelo mundo...

E tu, na auréola de oiro que irradias,
Quanto mais sofres, tanto mais confias
No teu gesto pluvioso, amplo e fecundo!


(António de Macedo Papança, conde de Monsaraz, nasceu em Reguengos de Monsaraz a 18 de Julho de 1852)

domingo, julho 17, 2011

Antropofagia

A fruta
Devora os dentes
Que a devoram;
O esmalte,
O tártaro,
A protelada
Cárie,
O sorriso.
A fruta
Deglute o
Apetite
Qual polpa
Deliciosa do nada.

Telmo Padilha

(poeta baiano falecido a 17 de Julho de 1977)

sábado, julho 16, 2011

Que nojo  

Que nojo    São carcaças
de gente morta por dentro
Escondem mucos pegajosos
que empestam toda a paisagem

São abutres pelados são caraças
de olhos vítreos de intenção
são bostas de sangue e o centro
de onde mana a corrupção
Só nunca serão carrascos
porque lhes falta a coragem

O medo os faz silenciosos
pelas costas atrevidos
Movem-nos ódios e ascos
flatulências de ambição
pequeninos verrinosos
gordurosos retraídos

São fura-greves são espias
vaidosos de ser pisados
segregam epidemias
de vergonha    São repolhos
de gangrena engravatados
São piolhos são piolhos
são piolhos


(Mário Dionísio nasceu  em Lisboa a 16 de Julho de 1916)

sexta-feira, julho 15, 2011

Horizonte

Alma em suspiro
pelo encontro
do que fica
sempre mais longe


(poetisa mineira nascida a 15 de Julho de 1901)

quinta-feira, julho 14, 2011

Comunicado

Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair

Miguel Torga

Foi este extraordinário poema de Miguel Torga que me veio à mente quando, ao lado da cama da minha mulher no hospital onde foi operada de urgência ontem à noite, assisti à cena gaga de Vítor Gaspar.

quarta-feira, julho 13, 2011

Voz

essa voz sai de mim
como língua de fogo
voraz dragão sem espadas e jorges

essa voz sai de mim
como sangue
insensato vampiro de presas cortadas

essa voz sai de mim
como revoada de pombos
imensa  liberdade presa em mim

essa voz sai de mim
como despedida
ferida aberta de alguém que se vai

essa voz sai de mim
como um frio punhal
que nos corta  fundo e nos faz gritar

arrebenta garganta louca
farta-me de emoções
neste palco dia-a-dia
faço da música meu pincel
e dessa voz  minha  poesia

José Eustáquio da Silva

(poeta mineiro)

terça-feira, julho 12, 2011

Saudade

Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...

Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais...

Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.

E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.


(Pablo Neruda nasceu a 12 de Julho de 1904)

segunda-feira, julho 11, 2011

Humorismo

Sossego macio da tarde.
Um sol cansado
passa pelo rosto suado
uma nuvenzinha alva como um lenço
para enxugar as primeiras estrelas.
Silêncio.

E o sol vai caminhando sobre os montes tranqüilos
vai cochilando. E de repente
tropeça e cai redondamente
sob a pateada dos sapos e a vaia dos grilos.


(poeta paulista falecido a 11 de Julho de 1969)

domingo, julho 10, 2011

Minuete

O minuete das flores vai começar.

Ha uma rosa vermelha que balouça, balouça,
em reverência a um lírio.

Tocam os grilos escondidinhos para a quadrilha.

Há um crisântemo crespo muito orgulhoso,
e sua corola parece que gira.
Ele dança imóvel - consigo mesmo...

As folhas secas também valsam,
- realejo ao vento -
valsam remoinhos silenciosos,
- folhas ingênuas - baile de pobres...

Dançam as flores, dançam perfumes na minha alma.
0 minuete das mágoas vai começar.
Minha alma não dança com as outras almas:
 - dança imóvel - consigo mesma...


(poeta brasileiro falecido a 10 de Julho de 1970)

sábado, julho 09, 2011

Poética

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.


(Vinícius de Moraes faleceu a 9 de Julho de 1980)

sexta-feira, julho 08, 2011

O Peixe

Tendo por berço o lago cristalino,
Folga o peixe, a nadar todo inocente,
Medo ou receio do porvir não sente,
Pois vive incauto do fatal destino.

Se na ponta de um fio longo e fino
A isca avista, ferra-a inconsciente,
Ficando o pobre peixe de repente,
Preso ao anzol do pescador ladino.

O camponês, também, do nosso Estado,
Ante a campanha eleitoral, coitado!
Daquele peixe tem a mesma sorte.

Antes do pleito, festa, riso e gosto,
Depois do pleito, imposto e mais imposto.
Pobre matuto do sertão do Norte! 


(poeta popular cearence falecido a 8 de Julho de 2002)

quinta-feira, julho 07, 2011

Esta Gente

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo

Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, julho 06, 2011

Saber ler na vida

Saber ler na vida - folhear honestamente a vida
Apaixonadamente a vida
Nas arcas da noite, nas arenas do dia:
Risos, lágrimas, serenos rostos aparentes
Como se abríssemos cada dia a verde lima do espanto.
Não passar folhas em branco sem as entender,
Olhar rostos como quem tacteia rugas
Descobrindo planetas de mágoa ou rios de alegria.
A primeira página e o segredo puro dos acabados de gritar o primeiro grito, iluminada essência do futuro.
E tudo isto
Entre vermes, frutos, flores, rinocerontes, pássaros,
Cães fiéis
Águas e pedras
E o fraterno fogo que acendemos a cada hora,
No espaço branco que é estendermos a nossa mão
Para outra mão apertarmos simplesmente
Mão pela qual corre o sangue como um rio de fogo.
Só temos uns tantos anos para lermos este livro
Debaixo do Sol,
Ou sob o aço da noite
Para este fogo tecer.
Chamarás ciência cultura vida dor espada ou espanto a tudo isto
Ou ilegível monotonia.
Nada. Mas lê.


(Matilde Rosa Araújo faleceu a 6 de Julho de 2010)

terça-feira, julho 05, 2011


Sotaque da terra

Estas pedras
sonham ser casa

sei
porque falo
a língua do chão

nascida
na véspera de mim
minha voz
ficou cativa do mundo,
pegada nas areias do Índico

agora,
ouço em mim
o sotaque da terra

e choro
com as pedras
a demora de subirem ao sol


(poeta moçambicano nascido a 5 de Julho de 1955)

segunda-feira, julho 04, 2011


Aurora

A poesia não é voz - é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:

voo sem pássaro dentro


(poeta portuense nascido a 4 de Julho de 1908)

domingo, julho 03, 2011


Iniciação

A cidade dobrou-se para o rio
e o seu útero irrompeu
sobre as águas
rosa a rosa
apoiada por bilhas vivas
auríferas
sopro a sopro
prenhes.

Soube-se então que renascia violenta
entre mandíbulas alagadiças
como a inflexibilidade
da borboleta
acerba.

Em agonia precipitaram-se sobre as casas
e coseram-se com a cal
pelo coração irreconhecível da pedra.

Era uma cidade como um sismo
ininterrupto
atada às víboras do milagre
extremo
incandescente e granítico.

A cidade meteu-se toda para dentro
o sexo descoberto
transformada em réptil de hálito branco.


(poeta coimbrão nascido a 3 de Julho de 1965)

sábado, julho 02, 2011


Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


(Sophia de Mello Breyner faleceu a 2 de Julho de 2004)

sexta-feira, julho 01, 2011


Filtro

O poema
filtra
cada imagem
já destilada
pela distância,
deixa-a
mais límpida
embora
inadequada
às coisas
que tenta
captar
no passado
indiferente.


(Carlos de Oliveira faleceu a 1 de Julho de 1981)