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sábado, outubro 31, 2009

O mundo é grande O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, outubro 30, 2009

Conselhos médicos.... O doutor, depois de ver a história clínica do paciente, pergunta: - Fuma? - Pouco. - Deve deixar. - Bebe? - Pouco. - Deve deixar. - Pratica desporto? - Não. - Pois deveria. - Sexo? - Muito pouco. - Pois deveria fazer muito. Ele vai para casa, conta à sua mulher o que o médico lhe disse e, imediatamente, vai tomar um banho. A mulher, esperançada, enfeita-se, perfuma-se, põe seu melhor baby-doll e fica à espera. Ele sai do banho, começa a vestir-se, a perfumar-se e a mulher, ciosa, pergunta-lhe: - Aonde vais? - Não ouviste o que o médico me disse? - Sim, mas aqui estou eu prontinha para ti. Então ele diz-lhe, cheio de paciência: - Ah, Francisca, lá vens tu de novo com a mania dos remédios caseiros!

quinta-feira, outubro 29, 2009

Braço de Mar O mar é sempre maior e o luar lhe faz a corte não há medida do homem entre a praia e o horizonte O mar já veio antes da onda inventar o tempo É ele quem trai o porto e ascende o pavio da bomba que puxa a noite do poço e corta os pulsos da sombra E mesmo no sol, o mar transa seu jogo de conveniências suas algas postas de molho sua escultura sem cabeça O mar é sempre começo

Nei Duclós

quarta-feira, outubro 28, 2009

Enigma

entre o som o sono o sonho a sombra e a sobra eu me decomponho em escombros em farpas e agulhas escarpas e fagulhas desfeito enfim em fogos de artifício feito estrelas de mim esfinge autoantropofágica que não se decifrou e que a si mesma se devorou Elmar Carvalho* *poeta brasileiro

terça-feira, outubro 27, 2009

Auto-retrato aos 56 anos Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas Casado duas vezes, tem sete filhos Altura 1,75. Sapato nº 41. Colarinho nº 39. Prefere não andar Não gosta de vizinhos Detesta rádio, telefone e campainhas Tem horror às pessoas que falam alto Usa óculos. Meio calvo. Não tem preferência por nenhuma comida Não gosta de frutas nem de doces Indiferente à música Sua leitura predileta: a Bíblia Escreveu “ Caetés” com 34 anos de idade Não dá preferência a nenhum de seus livros publicados Gosta de beber aguardente É ateu. Indiferente à academia Odeia a burguesia. Adora crianças Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antonio de Almeida, Machado de Assis Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz Gosta de palavrões escritos e falados Deseja a morte do capitalismo Escreveu seus livros pela manhã Fuma cigarros “ Selma” (três maços por dia) É inspetor de ensino, trabalha no “ Correio da Manhã” Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo Só tem cinco ternos de roupa, estragados Refaz seus romances várias vezes Esteve preso duas vezes É-lhe indiferente estar preso ou solto Escreve à mão Seus maiores amigos: Capitão Lobo, Cubano José Lins do Rego e José Olympio Tem poucas dívidas Quando prefeito de uma cidade do interior, Soltava os presos para construírem estradas Espera morrer com 57 anos.

Graciliano Ramos

segunda-feira, outubro 26, 2009

Dinossauro Excelentíssimo

No gabinete, entre o discurso e a caça às palavras é que o Dinossauro cumpria o seu reinado. Escrevia e vigiava, à sombra do retrato oficial que tinha em cima da secretária e sempre guiado pela sua voz dentro dele. Mas se abrisse a porta podia continuar a ouvir-se, desdobrado pelos altifalantes que havia nos corredores a na sala ao lado onde estava a estátua que era ele mesmo em corpo histórico.

Havia um frio de eternidade naquela teia de circuitos, uma aragem de zumbidos metálicos, e o Dinossauro, atrás da secretária dourada, sua varanda, suas patas leoninas, parecia um sonâmbulo pousado num sonho desértico. Não dormia há séculos, dizia-se dele; outros garantiam: repousa vivo à margem da morte, que é a linha de onde se vê mais claro. De quando em quando as nervuras da teia estremeciam, suspendendo uma gota metálica: TINHA CAÍDO UMA PALAVRA.

José Cardoso Pires, excerto de Dinossauro Excelentíssimo.

domingo, outubro 25, 2009

Duas velas

Levo o infortúnio de não ter - como os relógios - horas eternas... Nem a felicidade que têm os faróis de ficar à deriva, indefinidamente... Sou uma Embarcação - atracada - querendo voar com as gaivotas. Elíude Viana* *poetisa brasileira

sábado, outubro 24, 2009

Sem papas na língua

A comunidade internacional está a perder dinheiro e a derramar o seu sangue no Afeganistão para apoiar um governo de criminosos corruptos e misóginos, de acordo com os interesses dos Estados Unidos.

Malalai Joya

Malalai Joya é uma mulher de armas e já foi considerada a mulher mais corajosa do Afeganistão. Refugiada desde os 4 anos de idade em campos do Irão e do Paquistão, regressou ao seu país com 20 anos, sob o regime dos talibãs.

Em 2003, com 25 anos de idade, foi eleita para o Loya Jirga, convocado para ratificar a Constituição do Afeganistão. Em 2005 foi eleita Membro do Parlamento, do qual foi suspensa 2 anos depois com o argumento de que tinha insultado alguns dos seus pares num programa de televisão. Apoiada por intelectuais e parlamentares de todo o mundo, apelou da sua suspensão (o processo ainda segue os seus trâmites), ao mesmo tempo que discursava nos mais diversos locais (incluindo o Parlamento Europeu).

Esta semana deslocou-se a Madrid para receber o prémio o prémio Juan Maria Brandés para a Defesa do Direito de Asilo e Solidariedade com os Refugiados, tendo dado uma entrevista ao jornal Publico (o espanhol, que o de cá não liga a essas coisas), cuja leitura recomendo a quem quiser entender de que lado estão e o que pensam sobre a intervenção da NATO as verdadeiras forças democráticas do Afeganistão. A propósito: o que andam os nossos a fazer por lá?

sexta-feira, outubro 23, 2009

As malhas que o império tece Logo após o ataque terrorista de Pishin, no sudeste do Irão, que matou 42 pessoas, entre as quais 6 altas patentes da Guarda Revolucionária, o Irão acusou a Inglaterra, os Estados Unidos e o Paquistão de darem apoio aos bombistas, acusações essas que se intensificaram depois de a autoria do atentado ter sido reivindicada pela Movimento de Resistência do Povo Iraniano, mais conhecido por Jundallah. Claro que as acusações do Irão foram logo catalogadas pelos média de referência como paranóicas, mas o circunspecto e conservador Times diz que as mesmas podem não ser tão imaginárias como parecem e chama a atenção para um extenso artigo do reputado jornalista estado-unidense Seymor M. Hersh, publicado em 7 de Julho de 2008 no The New Yorker, o magazine da intelectualidade nova-iorquina. Vale a pena ler artigo preparando o campo de batalha para se perceber como, enquanto o candidato democrata prometia o diálogo, os líderes da maioria democrata se mancomunavam com Bush para financiar a desestabilização do Irão e de outros países do Médio Oriente. Afinal, quem é quem no apoio ao terrorismo internacional?

quinta-feira, outubro 22, 2009

Paisagem Na atmosfera violeta A madrugada desbota Uma pirâmide quebra o horizonte Torres espirram do chão ainda escuro Pontes trazem nos pulsos rios bramindo Entre fogos Tudo novo se desencapotando. Oswald de Andrade
Patacoadas Anda por aí um certo senhor, que dirige os destinos da CIP e já esgotou o seu prazo de validade há muito, a dizer cada vez mais palermices. Primeiro, aconselhou o partido mais votado nas legislativas sobre com quem devia e não devia fazer acordos; mais recentemente, veio clamar que devia haver congelamento do salário mínimo (e, por arrastamento, de todos os salários) para 2010 já que, sem inflação, os sindicatos não têm quaisquer bases para reivindicar aumentos salariais; depois, veio pedir um abaixamento dos impostos, esquecendo-se de dizer que queria a eliminação dos escalões mais elevados do IRS e a redução das contribuições das empresas para a Segurança Social; proximamente, virá, certamente, exigir que o tempo gasto pelos trabalhadores para irem à casa de banho seja compensado pelo quíntuplo em trabalho adicional gratuito, a fim de os empresários fazerem face aos custos do papel higiénico (onde o há), da água, da luz e da limpeza (quando é feita). Parece-me que o senhor van Zeller é capaz de ter alguma razão, considerando que em Portugal os pobres estão muito bem quando comparados com os ricos. Pelo menos é isso que diz o relatório do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas recentemente divulgado, que classificou as economias avançadas com base no Coeficiente de Gini, o qual determina o fosso entre os mais ricos e os mais pobres, significando zero uma absoluta igualdade e 100 uma desigualdade absoluta. Como era expectável, os países escandinavos estão no fundo da tabela, acompanhados do Japão e da República Checa (por enquanto). Portugal ocupa um honroso quinto lugar, apenas atrás de Hong Kong, Singapura, Estado Unidos e Israel, e à frente da Nova Zelândia, Itália, Grã-Bretanha, Austrália, Irlanda e Grécia, para só falar dos 10 mais desiguais (onde não aparecem o Canadá, a França, a Holanda, a Bélgica, a Suíça, a Espanha e o Luxemburgo). Ah grande van Zeller! Vá-se aos malandros dos trabalhadores que ainda chega vivo ao primeiro lugar! Além de que terá uma virgem à sua espera no paraíso por cada trabalhador ou pensionista pobre que por cá deixar. Com o seu ar, não sei o que irá fazer com mais de dois milhões de virgens, mas isso será problema seu.

quarta-feira, outubro 21, 2009

Soneto das nuvens e da brisa Os pássaros nostálgicos... Errantes mágicos do crepúsculo, soprando das longas asas trêmulas o brando vento da tarde; e logo, em céus cambiantes, alvos blocos de pluma vão distantes e efêmeras imagens modelando: sereias e hipocampos, entre o bando de carneiros, e rosas, e elefantes, cães e estrelas, dragões, ou aguçadas torres, na superfície roseoviva por onde voga, acesa, a caravela e as longas asas captam, retesadas, a poesia da tarde, fugitiva, mas eterna no instante em que foi bela. Waldemar Lopes* *poeta pernambucano

terça-feira, outubro 20, 2009

Laboratório O cego insone ouve o ressoar do rio sob o silêncio dos ventos e inventa um verso invisível. O aleijado viaja além de terras e mares e diante da via láctea acolhe a estrela cadente que o incandesce. O matemático enfrenta o indecifrável teorema e descobre a chave do poema. O poeta lapida silêncios em chamas e ao provocar a fissão de uma voz unitonal faz explodir a flor da palavra e desvenda o enigma. Mas a razão, volátil e fugaz, volta ao estado de pedra. O homem das cavernas retoma a busca da fórmula perdida. Alexandre Marino* *poeta mineiro

segunda-feira, outubro 19, 2009

O rio Uma gota de chuva A mais, e o ventre grávido Estremeceu, da terra. Através de antigos Sedimentos, rochas Ignoradas, ouro Carvão, ferro e mármore Um fio cristalino Distante milênios Partiu fragilmente Sequioso de espaço Em busca de luz. Um rio nasceu. Vinicius de Moraes

domingo, outubro 18, 2009

Os aleijados às avessas Guiado por uma de suas geniais intuições, Nietzsche escreveu sobre os aleijados às avessas. Aleijados que têm em demasia algum órgão do corpo. Por exemplo, alguém que fosse uma orelha, uma grande e dominante orelha. Esse homem que fosse apêndice de sua própria e imensa orelha, esse homem ouviria demais, preocupado demais com o que se diz. Teria informações auditivas em excesso. Seria vítima de sua maravilhosa audição. Um homem que não passasse de uma grande boca seria outro tipo de aleijado às avessas. Sua capacidade de abocanhar e mastigar lhe traria imensos sofrimentos. Boca por excelência, esse homem passaria o dia engolindo a tudo e a todos. Sua capacidade devoradora seria sua ruína. Pior do que a fome recorrente é o desejo insaciável, por mais que alguém possa consumir. Outro aleijado às avessas: o homem-olho. Aquele olho observador, atentíssimo, absorvendo mais imagens do que a mente humana possa concatenar e compreender. Quanta dor essa visão abrangente ofereceria ao homem-olho! Quantos motivos de medo! E o homem-nariz, então?! Quantos cheiros e aromas perseguiriam essa pobre criatura, "abençoada" pela tremenda capacidade de possuir, ou melhor, de ser nariz. E sendo nariz poderoso, tal homem padeceria horrivelmente. Porque seria, sobretudo, nariz, saberia que nenhuma flor é flor que se cheire, que todo perfume esconde fedor, que todo fedor prenuncia a dor. Todos somos propensos a desenvolver algum tipo de deformação às avessas, hipertrofiando algo de nós, transformando-nos em seres superdotados em um único aspecto, limitados pelo fato de ultrapassarmos os limites. Posso me tornar um homem-mão. E essa tamanha habilidade para pegar, fazer, manipular... será motivo diário para um cansaço indescritível. Ou posso me tornar homem-pescoço, homem-joelho, homem-ventre, homem-ombro - e em todas essas situações, e em todas as demais possibilidades que nos ocorra imaginar, serei prisioneiro de uma melhoria localizada, de uma perfeição fragmentada, de um tudo que é nada. O aleijado às avessas tem, na sua força, a sua fraqueza. Tem, na sua especial competência, a sua maior incompetência. Podemos ir mais longe. O homem-cartão-de-crédito, cujo poder de compra é sua infinita pobreza. O homem-eloqüência, fadado a falar, falar, falar... e falir. O homem-pontualidade... alvo fácil para a morte. O homem-sorte, sem motivos para lutar, sem fracassos a superar. O homem-texto, que escreve mais do que vive, e não adquiriu a sabedoria de colocar o ponto final. Gabriel Perissé* *professor e escritor Publicado no jornal digital Correio da Cidadania

sábado, outubro 17, 2009

Mediadora da Palavra Um rumor irrompe das nocturnas margens. Sombras deslumbrantes. Um fulgor que desnuda e que despoja. Campo de água ágil. Dança Imóvel. Uma cegueira arde Incendiando o tempo. Pátria áspera de delicado alento. Soberano marulhar do inexplorável. Unânime é a pedra. Selvagem a palavra despedaça a língua. Um silêncio central domina e orienta A substancia primária. A palavra inicia. Rapidez da água entre resíduos obscuros. Talvez o diadema. Talvez a obscura dança aérea. O leve poder do fogo, as suas marcas ácidas. Pulsação dos poros. Ardor do silêncio no nocturno centro. Fulgor do desejo. Uma deusa de água espraia-se nas palavras. António Ramos Rosa (no dia do 85º aniversário)

sexta-feira, outubro 16, 2009

Em pratos limpos Em uma matéria exibida no programa Saia Justa (GNT/Globo), a atriz Maitê Proença cometeu uma série de grosserias contra os portugueses. Para o colunista Clóvis Rossi, da Folha de São Paulo, seria algo normal, fruto do preconceito que brasileiros e portugueses sentem uns dos outros. A atriz não expressou, na verdade, um preconceito que nasceu não se sabe de onde, mas sim vários conceitos alimentados pela mídia brasileira. Um processo de permanente negação das origens, de desprezo pelo nosso passado, que sempre quis nos ensinar a odiar ter sido colônia de Portugal e não da Inglaterra. Vale a pena ler o artigo de Rogério Mattos Costa, em que o jornalista desmistifica os preconceitos anti-portugueses da maioria da imprensa brasileira. A própria palavra utilizada para designar os meios de comunicação social (mídia) é um exemplo acabado daquilo que ele afirma. Com efeito, a palavra que empregamos em Portugal para designar o conjunto dos meios de comunicação social é média (os meios), palavra oriunda do latim por via erudita, já que media é o plural de medium (o meio). Os ingleses adoptaram o termo latino, pronunciando-o à sua maneira e os jornalistas brasileiros, por sua vez, culturalmente colonizados pelo grande irmão do norte, importaram a palavra tal como soa (mídia). É por estas, por outras e por muitas mais que eu sou visceralmente contra o (des)acordo ortográfico. Pela minha experiência de um mês por aquelas bandas e pelo testemunho de familiares próximos que por lá andam há bem mais de 50 anos, a imensa maioria do povo brasileiro não vê os portugueses com os olhos dos média de referência daquele imenso país, bem pelo contrário.

quinta-feira, outubro 15, 2009

Antes que Seja Tarde Amigo, tu que choras uma angústia qualquer e falas de coisas mansas como o luar e paradas como as águas de um lago adormecido, acorda! Deixa de vez as margens do regato solitário onde te miras como se fosses a tua namorada. Abandona o jardim sem flores desse país inventado onde tu és o único habitante. Deixa os desejos sem rumo de barco ao deus-dará e esse ar de renúncia às coisas do mundo. Acorda, amigo, liberta-te dessa paz podre de milagre que existe apenas na tua imaginação. Abre os olhos e olha, abre os braços e luta! Amigo, antes da morte vir nasce de vez para a vida. Manuel da Fonseca

quarta-feira, outubro 14, 2009

Pilotos e cupões de comida Onde se fala de pilotos de carreiras comerciais dos Estados Unidos que levam para casa 405 dólares por semana e têm de arranjar um segundo emprego como professores substitutos ou empregados de café e de colegas seus que recebem tão pouco que se conseguem qualificar para o Programa de Cupões de Comida que o governo federal estabeleceu para prestar assistência a famílias de baixos recursos. Se os pilotos da nossa companhia aérea de bandeira divulgassem as suas declarações de IRS juntamente com os pré-avisos de greve, os cidadãos contribuintes que pagam a factura podiam ficar a saber a quem pedir contas. Ou talvez não...

terça-feira, outubro 13, 2009

Noite morta Noite morta. Junto ao poste de iluminação Os sapos engolem mosquitos. Ninguém passa na estrada. Nem um bêbado. No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras. Sombras de todos os que passaram. Os que ainda vivem e os que já morreram. O córrego chora. A voz da noite . . . (Não desta noite, mas de outra maior.) Manuel Bandeira

segunda-feira, outubro 12, 2009

Fim de Jornada Caminhar ao encontro da noite. Como o camponês regressa ao lar. Após um longo dia de verão. Sem pressa ou cuidado. Na tarde ouro e cinza. Sozinho entre os campos lavrados. E as colinas distantes. Caminhar, ao encontro da noite. Sem pressa ou cuidado. A noite é somente uma pausa de sombra. Entre um dia e outro dia. Helena Kolody* *poetisa brasileira

domingo, outubro 11, 2009

A Força da Ignorância Por que causa a ignorância nos mantém agarrados com tanta força? Primeiro, porque não a repelimos com suficiente energia nem usamos todas as nossas forças para nos libertarmos dela; depois, porque não confiamos o bastante nas lições dos sábios nem as interiorizamos como devíamos, antes tratamos uma tão magna questão de forma leviana. Como pode alguém, aliás, aprender suficientemente a lutar contra os vícios se apenas dedica a esse estudo o tempo que os vícios lhe deixam livre?... Nenhum de nós aprofunda bastante esta matéria; abordamos o assunto pela rama e, como gente extremamente ocupada, achamos que dedicar umas horas à filosofia é mais do que suficiente. E o que mais nos prejudica é a facilidade com que o nosso amor próprio se satisfaz. Se encontramos alguém que nos ache homens de bem, homens esclarecidos e irrepreensíveis, logo nos mostramos de acordo! Nem sequer nos contentamos com louvores comedidos: tudo quanto a adulação despudoradamente nos atribui, nós o assumimos como de pleno direito. Se alguém nos declara os melhores e mais sábios do mundo, nós assentimos, mesmo quando sabemos que esse alguém é useiro e vezeiro na mentira! A nossa auto-complacência vai mesmo tão longe que pretendemos ser louvados em nome de princípios que as nossas acções frontalmente desmentem. A consequência é que ninguém mostra vontade de corrigir o seu carácter, pois cada um se considera a melhor pessoa deste mundo... Séneca, in Cartas a Lucílio

sábado, outubro 10, 2009

Cântico negro "Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!" Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali... A minha glória é esta: Criar desumanidades! Não acompanhar ninguém. - Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe. Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada. Como, pois, sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos... Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tectos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura ! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém! Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou, É uma onda que se alevantou, É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei para onde vou - Sei que não vou por aí! José Régio

sexta-feira, outubro 09, 2009

Che Guevara por ele próprio
1. "Prefiro morrer de pé a viver de joelhos." 2. "Sejamos realistas e façamos o impossível." 3. "Poderão morrer as pessoas, mas nunca as suas ideias." 4. "Lembrem-se de que o grau mais elevado que pode alcançar a espécie humana é ser revolucionário." 5. "Todos os dias as pessoas arranjam o cabelo; por que não o coração?" 6. "A revolução é algo que se leva na alma, não na boca para viver dela." 7. "Se o presente é de luta, o futuro é nosso." 8. "Sede capazes de sentir, no mais fundo, qualquer injustiça feita contra qualquer um, em qualquer parte do mundo. È a qualidade mais bonita do revolucionário."
Che Guevara Contra ti se ergue a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas A indecisão dos complicados e o primarismo Daqueles que confundem revolução com desforra. De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas Porém Em frente do teu rosto Medita o adolescente à noite no seu quarto Quando procura emergir de um mundo que apodrece. Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, outubro 08, 2009

Golpistas e falcões Enquanto, no seu país, 7 milhões de hondurenhos lutam e morrem, sob a bota dos golpistas, pelo regresso do país à normalidade democrática, falcões saudosos da guerra fria traficam - a peso de ouro – influências em Washington para redireccionar a posição inicial da administração Obama, alegadamente apoiados na sombra pela Secretária de Estado. Cartoon: Umpierrez

quarta-feira, outubro 07, 2009

(dis) Semelhanças Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros George Orwell, em “O triunfo dos porcos” – 1945 – 7º mandamento modificado do Napoleão A lei é igual para todos, mas nem sempre o é na sua aplicação Niccolo Ghedini, advogado de Berlusconi, perante o Tribunal Constitucional - 6/10/2009 Ele (Beslusconi) não é mais “primeiro entre iguais”, mas tem de ser considerado “primeiro acima dos iguais Gaetano Pecorella, idem

terça-feira, outubro 06, 2009

Diálogo filtramos o cansaço em palavras, o sono cai gota-a-gota, a noite escorrega em luz: eu e o poema, num diálogo de equívocos. Elias Paz e Silva* Poeta brasileiro

segunda-feira, outubro 05, 2009

Dança Aflita Dançamos nós A dança dos casais A dança de animais Lagos de vinho Cio Dançamos mais A dança dos aflitos A dança dos malditos Poças de sangue Sina Rodopiei Na dança dos vampiros Até cair exangue Fado Destino Frio Eliane Stoducto* *poetisa carioca

domingo, outubro 04, 2009

Plenitude Deixem-me ser como aquele rio: Nunca o mesmo rio a cada segundo E, ainda assim, água Como todas as águas De todos os rios - É sabedoria pura sua essência intacta Deixem-me ser como os seixos Que rolam em seu leito Com suas formas perfeitas - Mistério guardado No silêncio profundo do tempo Deixem-me ser como as árvores Em suas margens Cujas folhas fingem cair e renascer De tempos em tempos Deixem-me ser como os pássaros Deste cenário Que não precisam disputar o azul do céu Para serem livres Também sou essa paisagem Sei que sou feita de água, pedra, Árvore e pássaro Também eles são feitos de mim Somos todos a página de um mesmo livro No mistério inexplicável do tempo. Eliana Teixeira* *poetisa paulista

sábado, outubro 03, 2009

O espelho da "democracia" Cartoon: Chispa

sexta-feira, outubro 02, 2009

Disfarces A busca incessante dessa perfeição mutante nada mais importa. A porta é sempre (entre)aberta e quase atinge o céu para aqueles que (ar)riscam o papel. A angústia, filha primogênita da dúvida, é um dos disfarces da busca. Eduardo Pragmácio* *poeta brasileiro

quinta-feira, outubro 01, 2009

Cegueira de Olhos Abertos A cegueira que cega cerrando os olhos, não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todas: e tal era a dos Escribas e Fariseus. Homens com os olhos abertos e cegos. Com olhos abertos, porque, como letrados, liam as Escrituras e entendiam os Profetas; e cegos, porque vendo cumpridas as profecias, não viam nem conheciam o profetizado. (...) Esta mesma cegueira de olhos abertos divide-se em três espécies de cegueira ou, falando medicamente, em cegueira da primeira, da segunda, e da terceira espécie. A primeira é de cegos, que vêem e não vêem juntamente; a segunda de cegos que vêem uma coisa por outra; a terceira de cegos que vendo o demais, só a sua cegueira não vêem.

Padre António Vieira, in "Sermões

Quem quiser verificar a perfeita actualidade do Padre António Vieira, pode passar os olhos pela inqualificável arenga - inqualificável porque, nem todos juntos, os termos canalha, nojenta, ajavardada, nauseabunda, repugnante, torpe, merdilheira, conspurcante, infecta, engulhosa, asquerosa e merdosa conseguiriam catalogar genuinamente aquela prosa - de VGM publicado ontem no Diário de Notícias. Mas é conveniente estar de estômago vazio, pois a náusea vai ser extrema, pelo menos para 70,1% dos portugueses. O mau perder, o desespero anti-democrático e a baixa linguagem atingem as raias da insanidade. Desengane-se quem pensava que o nível político já tinha batido no fundo. Como é possível, mais de 40 anos depois, um tal bolor salazarento?