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quarta-feira, setembro 30, 2015

A Água

Despe, na solidão da tarde,
Tua roupagem manchada de quotidiano,
E deixa que a chuva molhe teus cabelos
E vista teu corpo de escamas de prata.
Pousa, em teus ombros, o manto dos lagos
E colhe no cântaro de tuas mãos
A música dos dias que adormeceram
No fundo de teu ser.
Mármores líquidos moldarão teu corpo.
Nuvem,
Penetrarás a carne da manhã.


(poeta paulista que hoje faz 89 anos)

terça-feira, setembro 29, 2015

Dois rios

O corpo dividido em duas partes
fechadas
à chave uma na outra, avanço
num duplo coração como se fosse
ao mesmo tempo num só barco por dois rios.


(Luís Miguel Nava faria hoje 58 anos)

segunda-feira, setembro 28, 2015

Poema de amor

quando eu voltar a ver a luz do sol que me negam
amor
iremos
de paz vestidos
entretecer um sorriso de flores e frutos
abraçados
por caminhos-serpentes ágeis
trepando dos montes às estrelas
e aos sonhos cintilantes
iremos
cantando também, cantando
todas as canções que sabemos e não sabemos.

quando eu voltar a ver a luz do sol que me negam
amor
iremos
pois iremos breves chorar
nas sepulturas sem fim dos homens sem fim
que partiram assim
sem óbito nem combaditocua

sem esperança da luz do sol que nos negam

iremos, amor
dizer-lhes
voltei e voltamos
porque nos amamos
e amamos
as sepulturas sem fim dos homens sem fim.

quando eu voltar a ver a luz do sol que me negam
lábaros erguidos:
- a liberdade é fruto da colheita -
amor
iremos
colher maçarocas e cores
aos mortos ofertar ressurreição e flores
aos vivos a pujança da nossa vida
amor
iremos
desenhar no papel celeste um arco-iris
para nosso filho brincar:
chuva vem chuva vai
senhora da conceição
chuva pra lavra do pai
manda sol não

iremos, sim, amor iremos
quando eu voltar
- as grilhetas desfeitas -
e cingidos faremos
a vida irrefragável medrar
na dádiva serena das colheitas
no pipilar dos pássaros maravilhados
no caminhar dos homens regressados
nos hossanas das chuvas na terra renascida
nos confiantes passos da gente decidida
amor.

vestirá a terra fímbria de nova cor
de beijos e sorrisos a vida teceremos
e entre algodoais sem fim
e batuques de alacre festim

iremos
amor.


(poeta angolano nascido faz hoje 91 anos)

domingo, setembro 27, 2015

A Vida

A longa espera...
A chegada...
A partida...
Eis toda a minha primavera,
toda a felicidade sonhada,
toda a tristeza... A Vida!

Uma tarde (e como canta a saudade daquela
tarde fecunda, tarde solene de verão!),
nos céus distantes cada uma
das duas palavras de amor acordava uma estrela,
enquanto em minha alma, num voo de pluma,
criava a tortura de nova Ilusão...

Agora esta vida é uma noite sombria
de um vento soturno de desolação!
Para onde levaste as estrelas que estavam na noite brilhando?

Sem tuas palavras a noite está fria, minha alma está fria!


(poeta paulista nascido faz hoje 118 anos)

sábado, setembro 26, 2015

Quem Sabe?

Diz a mecânica quântica
que as partículas atômicas
se comportam de um jeito
quando são observadas
e de outro quando estão sós
(como, aliás, todos nós).
E quem nos assegura
que o Universo que está aí
não é como aí está
quando ninguém está olhando?
E que quando os astrônomos
se viram do telescópio
para a prancheta
o Universo não faz
uma careta?
O corpo e a mente
têm biografias separadas,
cada um sua memória própria,
seu próprio jogo de charadas,
Meu corpo tem lembranças
- cheiros, tiques, andanças -
que a mente não registrou
e o corpo não tem as marcas
de metade do que a mente passou
(Pior que uma mente insana
num corpo sem muito assunto
é um corpo que já foi ao Nirvana
sem que a mente tenha ido junto.)
Cada um tem um passado
do qual o outro não tem pista
(como um bilhete amassado)
e nem o Mahabharata
explica uma mente anarquista
num corpo socialdemocrata.
Compartilham bioplasmas
e o gosto por certas atrizes,
mas não tem os mesmos fantasmas
nem as mesmas cicatrizes.
Das duas, uma, gente:
ou toda mente é de outro corpo
- ou todo corpo mente.


(Luís Fernando Veríssimo faz hoje 79 anos)
Êxtase

mesmo que seja imprescindível chorar
guardarei comigo a marca do sorriso
registrada no sonho
para que o choro seja inaudível

mesmo que seja inaudível o riso
guardarei comigo o timbre do choro
na internet da memória
para que a tristeza seja invisível

mesmo que seja inevitável ouvir
guardarei comigo o silêncio das horas
retendo no imenso de mim
porta-jóia de intensa saudade

mesmo que seja inesquecível o teu amor
farei de conta que nada existe
mas cá dentro guardarei
palavras gestos carinhos e desejos

no êxtase da palavra lembrada
flutuo nas ondas do som
dimensão mística me transcende
ouço o inaudível apesar de tudo

e além de mim


(poetisa mineira que hoje faz 75 anos)

sexta-feira, setembro 25, 2015

o homem que já não sou

não me olhes agora que estou
mais velho e não correspondo em
nada ao homem que
amaste, procura encarar a tristeza
sem me incluíres, seria demasiado
cruel que me usasses para a
dor. para ti
quis trazer as coisas mais belas
e em tudo o que fiz pus o
cuidado meticuloso de quem
ama. não me obrigues a cortar os
pulsos quando fores num minuto ao
jardim com o cão

esta noite, sem notares, sustive a
respiração e quase morri. não deste
por nada. julgaste que voltei a
ressonar e até terás esboçado um
sorriso. e se eu pudesse morrer
enquanto sorris, pergunto

deixo para depois, ou talvez
desista. mas não pode ser se
tu me olhares em busca de tudo o que
já não existe. não pode ser, levo a
faca maior para debaixo do meu
travesseiro, juro-te que me
mato se continuares assim


(valter hugo mãe faz hoje 44 anos)

quinta-feira, setembro 24, 2015

Tempo-espaço

Eu quis morar
longe das estrelas
e viver a vida
na sombra do mundo.

Passaram
os sorrisos da mocidade,
as alegrias das serenatas,
os realejos da vida,
as retretas das praças,
as procissões da cristandade
e os encontros furtivos
atrás da Velha Matriz.

Não vi a realidade
no tempo-espaço.
Quando olhei as estrelas
já não mais existiam
e fiquei na sombra do mundo
                    vivendo por viver.


(poeta goiano que faz hoje 75 anos)

quarta-feira, setembro 23, 2015

Estou vivo mas quero viver

Estou vivo
mas quero viver
Não quero salvar-me porque não posso salvar-me
porque a salvação não existe
Perdi o meu percurso
e tudo o que herdei de mim próprio
No mundo as palavras não compensam
a violência absurda do sofrimento
Na página elas podem ser a invenção
de um frémito perante um corpo nu
É na palavra que se acende a minha vida
mas a minha vida sobra sempre como uma cauda cinzenta
Por que é o infortúnio a norma
e não há resgate para a morte?
O mundo é estranho mas irrefutável
na sua contínua sucessão que nos transcende
e passa sobre nós como se não existíssemos
Teremos acaso que nos unir e reinventar as nossas vidas
para que os deuses nasçam do nosso desamparo?
O silêncio conduz-nos à sua infinita fronteira
mas o ócio iluminado pode vogar na casa
como se estivéssemos entre palmeiras e araucárias
Toda a viagem é um regresso ao ponto de partida
para partir de novo entre a água e o vento


(António Ramos Rosa faleceu faz hoje 2 anos)
Se Me Esqueceres

Quero que saibas
uma coisa.

Sabes como é:
se olho
a lua de cristal, o ramo vermelho
do lento outono à minha janela,
se toco
junto do lume
a impalpável cinza
ou o enrugado corpo da lenha,
tudo me leva para ti,
como se tudo o que existe,
aromas, luz, metais,
fossem  pequenos barcos que navegam
até às tuas ilhas que me esperam.

Mas agora,
se pouco a pouco me deixas de amar
deixarei de te amar pouco a pouco.

Se de súbito
me esqueceres
não me procures,
porque já te terei esquecido.

Se julgas que é vasto e louco
o vento de bandeiras
que passa pela minha vida
e te resolves
a deixar-me na margem
do coração em que tenho raízes,
pensa
que nesse dia,
a essa hora
levantarei os braços
e as minhas raízes sairão
em busca de outra terra.

Porém
se todos os dias,
a toda a hora,
te sentes destinada a mim
com doçura implacável,
se todos os dias uma flor
uma flor te sobe aos lábios à minha procura,
ai meu amor, ai minha amada,
em mim todo esse fogo se repete,
em mim nada se apaga nem se esquece,
o meu amor alimenta-se do teu amor,
e enquanto viveres estará nos teus braços
sem sair dos meus.


(Pablo Neruda faleceu faz hoje 42 anos)

terça-feira, setembro 22, 2015

Outra Voz

Vai não com mãos de fadas
a bailar quimeras...
Que outra voz
te anime o leme;
que outra vela
te guarde a saudade.
Se quiseres um arado
e um campo de verdade
diz ao Espaço maior
e ao Vento mais alto
todas as amarguras,
todo o sonho parado,
todo o sangue inútil das tuas mãos,
todo o impossível que te roeu os olhos;
fala nas ravinas íngremes,
na giesta abortada,
na tormenta que levou a aldeia,
no pão ázimo que não comeste;
diz da luta das ondas,
dos ventos atrozes
e da vontade rota
como uma feira perdida.
Fala dum grito,
fala de ti
e tenho a certeza
que outra Voz
virá do Alto.


(poeta madeirense nascido a 22 de Setembro de 1925)

segunda-feira, setembro 21, 2015

Mea culpa

Tive o que quis. Quis demais.
Perdi-me no meu desejo.
Já não ouço mais o harpejo
de cantos angelicais.

Não soube viver. O tédio
da vida me possuiu.
Não encontro mais remédio
para o bem que me fugiu.

Para o mal que me ficou
guardo o mais pobre consolo:
Sei que fui eu mesmo o tolo
que fez de mim o que sou.


(poeta paulista falecido faz hoje 33 anos)

domingo, setembro 20, 2015

Em vez de lágrimas

Só um choro em seco
põe no vértice da minha dor
o mais intenso
auge do luto.


(poetisa moçambicana nascida a 20 de Setembro de 1926)

sábado, setembro 19, 2015

Um dia chegará a Primavera! 

Um dia chegará a Primavera!
Um dia em qualquer lugar, ou em todos os lugares,
Como um novo maio,
Haverá entendimento dos homens e dos deuses,
O fluir fácil da vida e do trabalho,
E harmonia entre o que se deseja e as mãos já constroem.
Um dia seremos todos crianças maravilhadas.
Um dia seremos inocentes,
E nus.


(escritora salaciense nascida a 19 de Setembro de 1935)

sexta-feira, setembro 18, 2015

Luiz Goes faleceu faz hoje 3 anos
Velho Muro

Velho muro da chácara! Parcela
Do que já foste: resto do passado,
Bolorento, musgoso, úmido, orlado
De uma coroa víride e singela.

Forte e novo eu te vi, na idade bela
Em que, falando para o namorado,
Tinhas no ombro de pedra debruçado
O corpo senhoril de uma donzela…

Linda epoméia te bordava a crista;
Eras, ao luar de leite, um linho albente,
Folha de prata, ao sol, ferindo a vista.

Em ti pousava a doce borboleta…
E quantas noites viste, ermo e silente,
Romeu beijando as mãos de Julieta!


(poeta carioca falecido a 18 de Setembro de 1916)

quinta-feira, setembro 17, 2015

Canção cruel

Corpo de ânsia.
Eu sonhei que te prostrava,
E te enleava
Aos meus músculos!

Olhos de êxtase,
Eu sonhei que em vós bebia
Melancolia
De há séculos!

Boca sôfrega,
Rosa brava
Eu sonhei que te esfolhava
Pétala a pétala!

Seios rígidos,
Eu sonhei que vos mordia
Até que sentia
Vómitos!

Ventre de mármore,
Eu sonhei que te sugava,
E esgotava
Como a um cálice!

Pernas de estátua,
Eu sonhei que vos abria,
Na fantasia,
Como pórticos!

Pés de sílfide,
Eu sonhei que vos queimava
Na lava
Destas mãos ávidas!

Corpo de ânsia,
Flor de volúpia sem lei!
Não te apagues, sonho! mata-me
Como eu sonhei.


(José Régio nasceu faz hoje 114 anos)

quarta-feira, setembro 16, 2015

Guy Béart faleceu hoje aos 85 anos
Victor Jara foi assassinado pelos terroristas faz hoje 42 anos
Da Arte

Pois que arte é criação, liberta o espírito.

Livra-o desses cuidados e dos zelos
que nutres pelos moldes, como se a arte
obedecesse a efêmeros modelos...

Henrique de Resende 

(poeta mineiro falecido a 16 de Setembro de 1973)

terça-feira, setembro 15, 2015

Dança lenta

Não somos nem bons nem maus:
somos tristes. Plantados entre chão
e estrelas, lutamos com sangue,
pedras e paus, sonho
e arte.

Nem vida nem morte:
somos lúcida vertigem,
glória e danação. Somos gente:
dura tarefa.

Com sorte, aqui e ali a ternura
faz parte.


(poetisa gaúcha que hoje faz 77 anos)

segunda-feira, setembro 14, 2015

vice-versa

tenho medo de te ver
necessidade de te ver
esperança de te ver
ansiedade de te ver

tenho vontade de te encontrar
preocupação de te encontrar
certeza de te encontrar
escassas dúvidas de te encontrar

tenho urgência de te ouvir
alegria de te ouvir
boa sorte de te ouvir
e temores de te ouvir

ou seja
resumindo
estou fodido
e radiante
talvez mais o primeiro
do que o segundo
e também
vice-versa.


(poeta uruguaio nascido faz hoje 95 anos)

domingo, setembro 13, 2015

Auto-retrato

Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.


(Natália Correia nasceu faz hoje 92 anos)

sábado, setembro 12, 2015

Matriz

Sou uma matriz de palavras...
Desço mansa e clara
De fontes cristalinas.

Sou pólen das flores,
Absorvida pelas borboletas,
E doces colibris.

Sou o espinho da rosa cálida,
O vento suave da primavera,
Um caminhante em busca de estradas.

Faço amor com as palavras
E as fecundo em folhas brancas.


(poetisa sul-mato-grossense que hoje faz 65 anos)

sexta-feira, setembro 11, 2015

Peter Tosh foi assassinado faz hoje 28 anos
Nihil

Homem! Homem! Mendigo do Infinito!
Abres a boca e estendes os teus braços
A ver se os astros caem dos espaços
A encher o vácuo imenso do finito!

Porque sobes à rocha de granito?
Porque é que dás no ar tantos abraços?
E cuidas amarrar com férreos laços
Um reflexo da sombra de um esp’rito?

Vê que o céu, por escárnio, a luz nos lança!
Que, à tua voz, a voz da imensidão
Responde com imensa gargalhada!

A ideia fechou a porta à esp’rança
Quando lhe foi pedir gasalho e pão...
Deixou-a cara a cara com o Nada!...


(Antero de Quental faleceu a 11 de Setembro de 1891)

quinta-feira, setembro 10, 2015

Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira


(poeta maranhense que hoje faz 85 anos)

quarta-feira, setembro 09, 2015

Ser

Vir à luz em partos duros
- ser erva rasgando a pele
granítica dos muros

Viver em grades     desterros
e ser um raio de sol
por entre os ferros

E quando tudo se for
morrer pela madrugada
com a raiz de uma flor
na mão cerrada


(poeta moimentense falecido faz hoje 28 anos)

terça-feira, setembro 08, 2015