Páginas

sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Lé com cré “A primeira coisa de que Vossa Mercê se deve lembrar é de que cada um é como cada um: lé com lé, e cré com cré; cada qual com os da sua igualha”, escreveu António Feliciano de Castilho. Recordo-me de a minha mãe contar que um padre da freguesia vizinha (que eu não conheci porque ele já tinha falecido), após ter lido as proclamas matrimoniais (lá conhecidas com banhos) de uns noivos um tanto lerdos, rematou dizendo: é como lé com cré, o que equivale a dizer para cada garrafão a sua rolha. Recordei-me desta história quando li, esta tarde, que o “grande educador da classe operária” ia patrocinar o “paulinho das feiras” no processo que este vai mover contra o ministro da agricultura. O “grande educador” confirmou no telejornal que não olhava para as opções politicas dos seus clientes. É assim mesmo. Se não os puderes vencer, junta-te a eles! Suga-os, eterno candidato presidencial da “vanguarda do proletariado”! É mesmo como lé com cré!

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

A verdade escondida















Este é o Campo Bondsteel, a maior base militar dos Estados Unidos no estrangeiro desde a Segunda Guerra Mundial. Fica no Kosovo, próxima de oleodutos, alguns em construção, como o Trans-Balkan. Também está próxima de campos de petróleo na Albânia. Em Junho de 1999, logo após o bombardeamento da Jugoslávia, as forças armadas americanas apoderaram-se de terras de cultivo no sudeste do Kosovo, junto à fronteira com a Macedónia, e começaram a construir a base. O empreiteiro da construção foi a Kellogg Brown & Root, filial da Halliburton, do vice-presidente Dick Cheney. O Campo Bondsteel alberga 7000 militares estado-unidenses, tem 25 km de estradas e cerca de 300 edifícios. Está cercado por 14 km de muros de betão e 84 km de arame farpado e tem 11 torres de vigilância.

Kosovo: A independência, na Admirável Nova Ordem Mundial, de uma colónia da NATO

Para os poucos infelizes que conhecem a complexa verdade acerca do Kosovo, parecem mais apropriadas as palavras de Aldous Huxley: "Vocês vão ficar a saber a verdade, mas a verdade vai dar cabo de vocês".

A análise é de Diana Johnstone, escritora e jornalista estado-unidense.

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Seriedade Um homem sério não é, apenas, o que não põe a mão nos bolsos dos outros. É aquele, quase irrepreensível, que espalha, em seu redor, a ética do despojamento e da integridade, com a exigência do espírito de missão. (Baptista-Bastos, in Jornal de Negócios de 25/01/2008) Armando Baptista-Bastos completa hoje 74 anos de idade.
Considerado um dos maiores prosadores portugueses contemporâneos e autor de mais de duas dezenas de obras, romancista, ensaísta, cronista, crítico e jornalista, começou a sua carreira há 55 anos, no desaparecido Século Ilustrado, e trabalhou em quase todos os órgãos de comunicação social escrita portuguesa, mas foi no também extinto vespertino Diário Popular que passou grande parte da sua carreira. Desde sempre inovador e polémico, a sua obra sobre jornalismo, As Palavras dos Outros, mereceu do ainda mais polémico Luiz Pacheco o seguinte comentário: "jornalismo feito literatura. Isto é, ascendendo ao plano da literatura: na contenção irónica, na sua capacidade de denúncia e intervenção, obrigando-nos à exploração psicológica dos tipos, no humor dos circunlóquios, principalmente no poder de síntese". Fruto da largueza de vistas de um outro jornalista bastante mais jovem, especializado em assuntos económicos e economista de formação, Sérgio Figueiredo, os leitores do Jornal de Negócios têm podido ler, desde há mais de 4 anos, as suas saborosas crónicas das sextas-feiras, quer na versão impressa quer na digital, as quais conservam todas as características referidas por Luís Pacheco. Infelizmente, vivemos numa sociedade pouco habituada à polémica e ao confronto de ideias, pelo que o BB tem sido alvo dos mais ignominiosos ataques pessoais feitos por anónimos quer na caixa de comentários do próprio jornal quer, segundo tem confessado, na sua caixa de correio electrónico, cujo endereço coloca disponível na coluna que escreve. Por mim, só lhe posso desejar uma longa vida com todas as condições para continuar a escrever da forma como o tem feito. E que não lhe doam os dedos no teclado do computador, para poder continuar a “chamar os bois pelos nomes”, fenómeno tão raro na nossa imprensa actual.

terça-feira, fevereiro 26, 2008

Um final previsto Na chamada “civilização ocidental” (ou, pelo menos, na Europa ocidental e nos Estados Unidos) é perigoso criticar a política do estado israelita, mesmo que ela seja uma política de genocídio. Os males menores a que, por tal acto, se fica sujeito, é ser-se apelidado de anti-semita radical, como aconteceu a dois reputados académicos estado-unidenses que, há cerca de dois anos, se atreveram a escrever um extenso ensaio intitulado The Israel Lobby and U.S. Foreign Policy, que pode ser lido aqui, na íntegra (ou na London Review of Books, numa versão editada e resumida), ou ser impedido de fazer palestras em universidades, como aconteceu ao bispo e Nobel da Paz Desmond Tutu, que tinha sido convidado a falar na Universidade do Minnesota e viu o convite cancelado por pressão de judeus locais, embora mais tarde tenha sido reconvidado devido à acção do grupo, também ele judeu, Jewish Voice for Peace. Os males maiores podem ir desde a prisão a um balázio dos serviços secretos israelitas. Na imprensa escrita, as vozes que se levantam pertencem quase todas à chamada imprensa alternativa e são arrogantemente desprezadas pelos seus colegas serventuários do pensamento dominante. É, por isso, sempre útil depararmo-nos com pessoas como Uri Avnery, judeu nascido na Alemanha em 1923 e emigrado para Israel aos 10 anos de idade, que aos 15 anos entrou para o grupo Sionista Revisionista de extrema direita Irgun, do qual saiu 3 anos depois por discordar dos seus métodos terroristas. Na guerra israelo-árabe de 1948, lutou no célebre comando “As Raposas de Sansão” tendo, posteriormente, escrito um livro sobre essa guerra, chamado “Nos campos da Filisteia”. A partir da década de cinquenta dedicou-se à luta, através da imprensa e da acção cívica, pela coexistência pacífica de israelitas e palestinianos, fundou um partido político e foi membro do Parlamento durante 10 anos, tendo visto Golda Meir ameaçar mandar barricar o Knesset para o impedir de lá entrar. Em 3 de Julho de 1982 surpreendeu tudo e todos, ao tornar-se o primeiro israelita a encontrar-se oficial e publicamente com Yasser Arafat, durante a Batalha de Beirute. Tornou-se, posteriormente, um activista de esquerda, tendo fundado em 1993 o movimento pacifista Gush Shalom, que continua a liderar. Sofreu várias ameaças de morte, tendo sido gravemente ferido à punhalada, em 1975, por um indivíduo mais tarde declarado oficialmente louco. Em 2006, o activista de extrema direita Baruch Marzel apelou aos militares israelitas, em entrevista a um canal televisivo, para desencadearem um ataque assassino contra ele e os seus colaboradores. Vale a pena ler esta sua biografia bastante pormenorizada, o artigo intitulado Um final previsto, no original em inglês ou na tradução para castelhano, bem como vários outros artigos seus que podem ser encontrados aqui em tradução castelhana, mas que contêm a ligação para os originais.

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Descobrimento Abancado à escrivaninha em São Paulo Na minha casa da rua Lopes Chaves De supetão senti um friúme por dentro. Fiquei trêmulo, muito comovido Com o livro palerma olhando pra mim. Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus! muito longe de mim Na escuridão ativa da noite que caiu Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos, Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo. Esse homem é brasileiro que nem eu. Mário de Andrade* *poeta paulista

domingo, fevereiro 24, 2008

Kosovo - Um apoio ao crime organizado Os media ocidentais: Desinformação no que se refere à natureza do governo do Kosovo: O governo do Kosovo está ligado a sindicatos de crime organizado e envolvido em tráfico de narcóticos e de seres humanos. O facto de todos os três primeiros-ministros do Kosovo, Ramush Haradinaj, Agim Ceku e Hashim Thaci serem criminosos de guerra não foi reconhecido nos recentes relatos da imprensa referentes à independência do Kosovo. Os EUA e a UE estão a apoiar a criminalização da política no Kosovo. A denúncia é de Michel Chossudovsky, economista canadiano e professor de economia na Universidade de Otava. O artigo é de 12 de Fevereiro, antes da independência, mas tem plena actualidade. O primeiro ministro do Kosovo foi e continua a ser o líder do UÇK, grupo terrorista kosovar (reconhecido como tal pelos Estados Unidos e UE) que nunca chegou a ser dissolvido. Os factos não deixam de existir só porque são ignorados (Aldous Huxley)

sábado, fevereiro 23, 2008

Zeca, 21 anos de ausência presente Os Eunucos Os eunucos devoram-se a si mesmos Não mudam de uniforme, são venais E quando os mais são feitos em torresmos Defendem os tiranos contra os pais Em tudo são verdugos mais ou menos No jardim dos haréns os principais E quando os mais são feitos em torresmos Não matam os tiranos pedem mais Suportam toda a dor na calmaria Da olímpica visão dos samurais Havia um dona a mais na satrapia Mas foi lançado à cova dos chacais Em vénias malabares à luz do dia Lambuzam da saliva os maiorais E quando os mais são feitos em fatias Não matam os tiranos pedem mais Zeca Afonso

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

A Glória Mais Genuína















A glória mais genuína, a póstera, nunca é ouvida por quem é seu objecto e, no entanto, ele é tido por feliz. Assim, a sua felicidade consistiu propriamente nas grandes qualidades que lhe conferiram a sua glória e no facto de que encontrou oportunidade para desenvolvê-las; logo, foi-lhe permitido agir como era adequado, ou praticar aquilo que praticava com prazer e amor. Pois só as obras assim nascidas alcançam glória póstera. A sua felicidade consistiu, pois, no grande coração, ou também na riqueza de um espírito cuja estampa, nas suas obras, recebe a admiração dos séculos vindouros.

Dedico esta reflexão ( retirada do Citador), da autoria do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'), nascido há 220 anos, a Madalena Barbosa, falecida ontem aos 66 anos de idade, que dedicou a sua vida à luta pelos direitos das mulheres e era mandatária do Movimento Cidadania e Responsabilidade pelo SIM.

(imagem retirada do sítio do jornal Público)

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

A ciência do palavrão


Sempre me interroguei sobre os motivos pelos quais, na aldeia minhota onde nasci ( e em tantas outras, portuguesas ou não), não havia (e continua a não haver), meio termo: palavrão, ou se dizia ou se ficava calado.

Não era uma questão religiosa, pois toda a gente era “obrigatoriamente” católica praticante e fazia, no mínimo, a “desobriga” e a comunhão Pascais.

Também não era uma questão cultural nem de estatuto social, pois a “linguagem de carroceiro”, não era proporcional, nem directa nem indirectamente, ao nível cultural ou financeiro (ambos bastante reduzidos mas, mesmo assim, com gradações significativas) dos falantes.

Na casa onde nasci e me criei o palavrão, até o mais suave, era interdito aos residentes, mesmo que fosse corrente no linguajar de tantos que por lá passavam a ajudar nos trabalhos agrícolas.

Lembro-me de a minha falecida mãe, certa vez, ter perguntado a um adulto por que razão é que ele dizia tantas asneiras e da sua resposta imediata: Ó tia Rosa (era assim que eram tratados os mais velhos): para mim, dizer “c******” é como para a tia Rosa dizer “ai, Jesus!” e dizer “estou f*****” é como a tia Rosa dizer “valha-me Deus!”

E se calhar, era mesmo, como parece comprovar um artigo (ou melhor, dois) que li recentemente.

Por que diabos “merda” é palavrão? Aliás, por que a palavra “diabos”, indizível décadas atrás, deixou de ser um? Outra: você já deve ter tropeçado numa pedra e, para revidar, xingou-a de algo como “filha-da-puta”, mesmo sabendo que a dita nem mãe tem.

Pois é: há mais mistérios no universo dos palavrões do que o senso comum imagina. Mas a ciência ajuda a desvendá-los. Pesquisas recentes mostram que as palavras sujas nascem em um mundo à parte dentro do cérebro. Enquanto a linguagem comum e o pensamento consciente ficam a cargo da parte mais sofisticada da massa cinzenta, o neocórtex, os palavrões “moram” nos porões da cabeça. Mais exatamente no sistema límbico. É o fundo do cérebro, a parte que controla nossas emoções. Trata-se de uma zona primitiva: se o nosso neocórtex é mais avantajado que o dos outros mamíferos, o sistema límbico é bem parecido. Nossa parte animal fica lá.

Continue a ler este interessante artigo na Super Interessante brasileira. Pode, também, ler esta curiosa análise do palavrão feita por Steven Pinker, Professor de Psicologia em Harvard.

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

Se bem me lembro… Vitorino Nemésio deixou-nos há 30 anos. Mais conhecido pela sua qualidade de grande comunicador, justamente conquistada pelo seu programa se bem me lembro, que protagonizou na RTP durante vários anos a partir de 1969 e que, segundo estimativas, tinha uma audiência superior a 4 milhões de telespectadores, deixou também uma extensa obra escrita, que vai desde a poesia à ficção ( o romance Mau Tempo no Canal é um clássico), passando pela crónica, pelo ensaio e pela crítica. No dizer de David Mourão Ferreira, a sua obra é “um autêntico arquipélago”. Do meu ponto de vista, tem uma mácula no currículo: o facto de ter aceitado dirigir o jornal O Dia – um jornal de extrema direita à época - entre 1975 e 1976, do qual veio a demitir-se. No entanto, a sua craveira intelectual fá-lo parecer um pormenor insignificante. Da sua poesia, deixo aqui dois exemplos: um, muito revelador do humor e da abertura de espírito de um septuagenário às tecnologias então nascentes; o outro, bem, o outro, porque o considero admirável. Semântica electrónica Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado Ordeno ao ordenador que me ordenhe o ordenhado Ordinalmente Ordenadamente Ordeiramente. Mas o desordeiro Quebrou o ordenador E eu já não dou ordens coordenadas Seja a quem for. Então resolvo tomar ordens Menores, maiores, E sou ordenado, Enfim - o ordenado Que tentei ordenhar ao ordenador quebrado. - Mas - diz-me a ordenança - Você não pode ordenhar uma máquina: Uma máquina é que pode ordenhar uma vaca. De mais a mais, você agora é padre, E fica mal a um padre ordenhar, mesmo uma ovelha Velhaca, mesmo uma ovelha velha, Quanto mais uma vaca! Pois uma máquina é vicária (você é vigário?): Vaca (em vacância) à vaca. São ordens... Eu então, ordinalmente ordeiro, ordenado, ordenhado, Às ordens da ordenança em ordem unida e dispersa (Para acabar a conversa Como aprendi na Infantaria), Ordenhado chorei meu triste fado. Mas tristeza ordenhada é nata de alegria: E chorei leite condensado, Leite em pó, leite céptico asséptico, Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético! O cão atómico Este cão tem folhas nas orelhas, com quatro talos mas o que este cão deveria ter era calos, e só tem olhos e ossos e morrinha num dente! Mas, meu Deus, este cão quase o diria meu irmão parece gente! Este cão é redondo. Está deitado, rosna com gengivas de uivo. Dizem-me que foi lobo, mas perdeu a alcateia como os homens perderam a razão, que hoje serve de osso ao cão escapou ao cogumelo nuclear, e por isso se foi deitar.

terça-feira, fevereiro 19, 2008

A República Lakota Leio aqui, entre várias outras coisa, o seguinte: O povo Lakota retira-se “formal e unilateralmente, de todos os tratados e acordos impostos pelo Governo dos Estados Unidos”. Com esta posição, expressa em conferência de imprensa em Washington a 17 de Dezembro passado, quatro representantes do povo indígena Lakota – mais conhecido como Sioux – declararam a independência do seu território e a criação da República Lakota. Explicaram as razões da declaração de independência: “Esperámos 155 anos para que o governo dos Estados Unidos cumprisse com a palavra dada nos tratados” que assinou com os Lakota; no entanto “as contínuas violações desses acordos tiveram como resultado a quase aniquilação física, espiritual e cultural da nossa gente”. Decorridos dois meses, ainda não houve notícia de que algum país tenha reconhecido a nova República. Muito estranho. O que será que os Kosovares têm de diferente dos Lakota? Porque é que os Estados Unidos, grande número de países europeus e os grandes media internacionais andaram com o Kosovo às costas e não dedicam a mínima atenção à questão dos Lakota? Alguém será capaz de traçar o rasto dos Lakota antes de terem sido confinados pelo homem branco europeu nas suas reservas do Nebraska, Dakota do Norte, Montana, Dakota do Sul e Wyoming? É que o dos pretensos “Kosovares”, que na realidade não passam de Albaneses, é fácil de encontrar.

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

A Caixa de Pandora Creio que não há volta a dar-lhe. Que a independência unilateral do Kosovo é um fracasso da ONU, da União Europeia e da NATO, como escreve hoje o catalão Eduard de Vilar i Permanyer, que foi cooperante nos Balcãs, parece fora de dúvida. Que é um grande salto no escuro, como notou no Guardian, no passado dia 14, Simon Tisdall, é incontestável. Que está uma guerra atrás da esquina, como, também hoje, refere Flávio Aguiar na sua coluna a partir de Berlim para Carta Maior, é mais do que provável. A partir de ontem, não há qualquer razão para não se reconhecer o pleno direito à independência do Curdistão (com meia dúzia de países envolvidos), do País Basco (englobando a parte francesa e a parte espanhola) da Catalunha, da Córsega e de muitas outras regiões que reclamam esse direito. A cegueira e o seguidismo da União Europeia e da ONU relativamente ao grande irmão do outro lado do Atlântico tem destas loucuras.

domingo, fevereiro 17, 2008

O livro Em teu corpo de retangular inércia encontro a dinâmica da vida. Na nudez calada de tuas páginas ouço cantares, desvendo mistérios Inerte objeto sobre a estante ou sobre a mesa em ti não se sepultam santos mártires heróis em teu seio redivivos. Em tudo o que se faz em ti se preserva. O agora se torna sempre na perpetuação do gesto. Em ti o morto, renascido, se faz lembrança sempiterna. Não só o passado reténs na universal memória: liame das épocas em corrente de vida. Em ti se devassam mundos se descortina o amanhã em pressentida visão. Não foi do Cabo Canaveral ou de algum ponto da Rússia que primeiro partiram os cosmonautas em busca do espaço sideral. Em teu bojo estático Júlio Verne devassara o éter a geografia dos astros percorreu o sub-mar desvirginou o centro da terra. Textura que gravou para sempre o amai-vos de Cristo a ternura de Francisco de Assis o amor o sonho a dúvida de Hamlet D. Quixote em luta contra os moinhos de vento - antecipa-se o que virá na intuição dos gênios. Em tuas páginas tudo cabe - a própria antítese da vida o bem, o mal, a guerra, a paz, o ódio, o amor, o gesto simples ou heráldico, a mentira, a verdade e Anne Frank, com olhar ardente, vinga sua morte, fustigando Hitler. Nada exiges. És amante em entrega total. Fazes pensar na aceitação do dito ou recusa do escrito. Dizes. Não impões. És simples monólogo contudo audível a quem o lê. Não é no chão ou nas estrelas no mar ou no céu na rosa ou no vento que a liberdade se encontra. Em teu corpo, livro, ela sempre alvorece E se te queimam, em chamas ardentes, das cinzas ressurges sempre a proclamar verdades desnudar mistérios semear amor liberdade paz. Aluysio Mendonça Sampaio* *poeta brasileiro

sábado, fevereiro 16, 2008

O Monroe e o Garrincha A América Latina está sendo obrigada a mudar sua inserção internacional, e deixar para trás a sua longa “adolescência assistida”, dentro da geopolítica e da economia do sistema mundial. Nesta nova situação, vale refletir sobre uma velha anedota futebolística. A ligação entre o 5º Presidente dos Estados Unidos e o célebre craque brasileiro é explicada por José Luís Fiori, cientista político, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de “O poder global e a nova geopolítica das nações”, recentemente lançado pela Boitempo Editorial.

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

Sabedoria Enquanto disputam os doutores gravemente sobre a natureza do bem e do mal, do erro e da verdade, do consciente e do inconsciente; enquanto disputam os doutores sutilíssimos, aproveita o momento! Faze da tua realidade uma obra de beleza Só uma vez amadurece, efêmero imprudente, o cacho de uvas que o acaso te oferece... Ronald de Carvalho* *poeta brasileiro
Camilo Torres Camilo Torres Restrepo, nascido em Bogotá, Colômbia, em 3 de Fevereiro de 1929 e morto em Santander, também na Colômbia, em 15 de Fevereiro de 1966, foi um sacerdote católico colombiano, predecessor da Teologia da Libertação e membro do grupo guerrilheiro Exército de Libertação Nacional (ELN). Durante a sua vida, promoveu o diálogo e a reconciliação entre o marxismo revolucionário e o Catolicismo, tendo afirmado que "se Jesus vivesse agora, seria guerrilheiro". Morreu na sua primeira experiência em combate, quando o ELN sofreu uma emboscada de uma patrulha militar colombiana, tendo-se, de imediato, convertido no mártir oficial da organização. O cantautor uruguaio Daniel Viglietti escreveu, em 1967, uma canção sobre Camilo Torres, que foi popularizada pelo cantor chileno Víctor Jara. Cruz de luz (o Camilo Torres) Donde cayó Camilo nació una cruz, pero no de madera sino de luz. Lo mataron cuando iba por su fusil, Camilo Torres muere para vivir. Cuentan que tras la bala se oyó una voz. Era Dios que gritaba: ¡Revolución! A revisar la sotana, mi general, que en la guerrilla cabe un sacristán. Lo clavaron con balas en una cruz, lo llamaron bandido como a Jesús. Y cuando ellos bajaron por su fusil, se encontraron que el pueblo tiene cien mil. Cien mil Camilos prontos a combatir, Camilo Torres muere para vivir. Uma pequena biografia de Camilo Torres poderá ser lida aqui.

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

PONTO DE FUGA Que indagação faz o umbigo feminino quando aparece entre uma peça e outra da veste? Intimidade sensualidade. Nem mesmo a musicalidade dos pelos é maior que o apelo da cicatriz do nascimento. Almandrade* *poeta brasileiro

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

Branco x Negro = Negro Hillary Clinton é filha de um homem e de uma mulher, mas, apesar do que possa dizer a psicanálise, é vista por todos como uma mulher, e ponto. Barack Obama é filho de uma branca e de um negro, mas é negro e ponto. Isto é o que se deduz de toda a linguagem dos media e da população. Ninguém observou até agora algo tão óbvio quanto o facto de que ele poderia ser considerado tanto branco quanto negro, se é que cabem essas categorias arbitrárias. Isto apresenta a mesma dificuldade que ver a mistura de culturas no famoso "melting pot": os elementos estão embaralhados, mas não de misturam. Da fundição do cobre e do estanho não surge o bronze, mas cobre ou estanho. Se é branco ou se é negro. Se é hispano ou se é asiático. A análise é de Jorge Majfud, da Universidade da Geórgia (EUA).

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Desenho sem autor Charles Robert Darwin nasceu na Inglaterra há 199 anos, no dia 12 de Fevereiro de 1809. Não vou aqui falar do seu enorme contributo para a ciência, principalmente nas áreas da biologia e da antropologia, e para o entendimento de como é que chegámos até aqui, pois para tal me faltam os conhecimentos necessários. Existem espaços na rede muito mais adequados e habilitados, entre os quais me permito destacar o Darwin Day Celebration. Queria tão só manifestar a minha perplexidade pelo facto de, decorridos 150 anos sobre a publicação do livro A Origem das Espécies, ainda haver seres humanos, supostamente dotados de alguma inteligência, que continuam a defender que o universo foi criado algures entre 6.000 e 10.000 anos atrás, com todas as características que mostra hoje em dia. Por cá, tal idiotia não é muito manifesta, mas nos Estados Unidos, por exemplo, é atroz verificar que bem mais de 50% da população acredita piamente em tais patranhas, desde os criacionistas puros e duros da terra jovem, com o seu museu da criação, onde se afirma que a raça humana conviveu com os dinossauros, e o seu recém lançado jornal “científico” que pretende publicar artigos “académicos” comprovativos da verdade de Génesis, até aos mais sofisticados mas igualmente falaciosos defensores do “desígnio inteligente”. Para assinalar este dia, recomendo vivamente a leitura de um artigo da autoria de Francisco J Ayala, do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade da Califórnia, Irvine, intitulado Darwin's greatest discovery: Design without designer e publicado em 15 de Maio de 2007 no Proceedings da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Para quem não saiba, Francisco J. Ayala é um reputado biólogo e filósofo nascido em Espanha e naturalizado cidadão estado-unidense desde 1971, que foi sacerdote dominicano e presidiu à Comissão da Academia Nacional de Ciências que, há menos de um mês, publicou a obra Ciência, Evolução e Criacionismo.

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Feliz 70º aniversário Desfolhada Corpo de linho lábios de mosto meu corpo lindo meu fogo posto. Eira de milho luar de Agosto quem faz um filho fá-lo por gosto. É milho-rei milho vermelho cravo de carne bago de amor filho de um rei que sendo velho volta a nascer quando há calor. Minha palavra dita à luz do sol nascente meu madrigal de madrugada amor amor amor amor amor presente em cada espiga desfolhada. Minha raiz de pinho verde meu céu azul tocando a serra oh minha água e minha sede oh mar ao sul da minha terra. É trigo loiro é além tejo o meu país neste momento o sol o queima o vento o beija seara louca em movimento. Minha palavra dita à luz do sol nascente meu madrigal de madrugada amor amor amor amor amor presente em cada espiga desfolhada. Olhos de amêndoa cisterna escura onde se alpendra a desventura. Moira escondida moira encantada lenda perdida lenda encontrada. Oh minha terra minha aventura casca de noz desamparada. Oh minha terra minha lonjura por mim perdida por mim achada. Ary dos Santos

domingo, fevereiro 10, 2008

Elogio da Dialética A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros. Os dominadores se estabelecem por dez mil anos. Só a força os garante. Tudo ficará como está. Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores. No mercado da exploração se diz em voz alta: Agora acaba de começar: E entre os oprimidos muitos dizem: Não se realizará jamais o que queremos! O que ainda vive não diga: jamais! O seguro não é seguro. Como está não ficará. Quando os dominadores falarem falarão também os dominados. Quem se atreve a dizer: jamais? De quem depende a continuação desse domínio? De quem depende a sua destruição? Igualmente de nós. Os caídos que se levantem! Os que estão perdidos que lutem! Quem reconhece a situação como pode calar-se? Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã. E o "hoje" nascerá do "jamais". Bertolt Brecht* *nos 110 anos do seu nascimento

sábado, fevereiro 09, 2008

Águas pés na enxurrada eu vou chovendo enquanto o dia chora e a vida por dentro me molha. Alexandre Marino* *poeta mineiro

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Biocombustíveis, BP-Berkeley e imperialismo ecológico Hannah Holleman e Rebecca Clausen são duas doutorandas da Universidade de Oregon, EUA. que, no passado dia 15 de Janeiro, publicaram, na Monthly Review Magazine, um artigo intitulado Biofuels, BP-Berkeley, and the New Ecological Imperialism, cuja leitura é deveras informativa. Margarida Ferreira, da Tlaxcala, rede de tradutores pela diversidade linguística, fez uma boa tradução para português, que pode ser encontrada no sítio da rede. Para aguçar o apetite, aqui fica o primeiro parágrafo: British Petroleum, Beyond Petroleum ... Biofuel Promoter, Biosphere Plunderer. [Petróleo Britânico, Bem longe do Petróleo… Promotor dos Biocombustíveis, Pirata da Biosfera]. Independentemente de qual o significado actual da abreviatura da BP, uma coisa é certa: este gigante do petróleo reconhece um bom negócio à primeira vista. Em troca de uma contribuição financeira relativamente pequena, a BP apropria-se do saber académico duma importante instituição pública de investigação, alicerçada em 200 anos de apoio social, para maximizar o retorno dos seus investimentos na energia. Estes investimentos, por sua vez, estão concentrados sobretudo na promoção do mercado dos biocombustíveis, a actual coqueluche dos que detêm o poder e que estimulam a mudança enquanto mantêm o "negócio do costume". O que significa que são os trabalhadores no seio dos países desenvolvidos que vão subsidiar a extracção de bens ainda mais ecológicos nos países em desenvolvimento para saciar as elites, que nunca se importam em tirar a comida da boca das pessoas para encher de ouro as algibeiras. A socialização de custos para proveito económico privado não é um fenómeno novo no sistema capitalista. No entanto, este caso significa uma nova deformação na aliança entre ciência aviltada, imperialismo económico e sofisma do "desenvolvimento sustentado".

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

EM BUSCA DO SOL Sou romântico, sou crédulo, sou sonhador, vou vivendo com esperança e amor como um marinheiro que acredita que vai voltar pra casa... Na primeira esquina da vida encontrei um porto seguro que me fez atracar por um tempo na espera do prazer, mas tive que ofertar minha juventude no altar de Baco. Não tenho respostas para esta ansiedade que me preenche o peito, nem sei dizer se o meu caso tem jeito, ou é apenas a maximização da síndrome do amor bandido que se esconde no cais do porto desta paixão. Sou como a pedra de Sísifo cujo trabalho sem fim é amar mais aos outros que a mim e nutrir-me da esperança das flores que enfeitam o mundo com seus aromas e cores após temporada de longa hibernação. Sou poeta, faltam palavras, sobram sentimentos, enquanto meu barco navega na direção do Sol que se projeta nas águas... Alex Guima* *poeta brasileiro

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Homo homini lupus Nascido em Lisboa há exactamente 400 anos, no dia 6 de Fevereiro de 1608, o Padre António Vieira, jesuíta, diplomata, escritor e orador foi uma das mais influentes personagens do século XVII em termos políticos, tendo-se destacado como missionário em terras brasileiras, onde defendeu infatigavelmente os direitos humanos dos povos indígenas combatendo a sua exploração e escravização. Defensor, também, dos judeus e da abolição da distinção entre cristãos-novos (judeus convertidos, perseguidos à época pela Inquisição) e cristãos-velhos (os católicos tradicionais), assim como da abolição da escravatura, criticou sem rodeios os sacerdotes da sua época e a própria Inquisição, o que lhe valei umas temporadas nas prisões do Porto e Coimbra, bem como a proibição de pregar. A passagem que abaixo transcrevo, retirada do seu Sermão de Santo António aos Peixes, é um libelo implacável contra a exploração do homem pelo homem, que mantém toda a actualidade e ao qual apenas faltam referências aos “lobos” pouco ou nada conhecidos na altura: os políticos profissionais, os jornalistas, os banqueiros, os especuladores, os detentores do capital. Todo o Sermão é uma peça de oratória de extrema riqueza, que bem merece ser lida na íntegra, dada a sua inquestionável qualidade. Há mais de 20 anos foi gravada a sua integral, dita pelo extraordinário poeta e declamador José Carlos Ary dos Santos. Seria bom que a sua reedição fizesse parte das comemorações do quarto centenário que hoje se iniciam. António Vieira e Ary dos Santos bem o mereciam. Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que, sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens. Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer, e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos, e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra. Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job, quando dizia: Quare persequimini me, et carnibus meis saturamini? «Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?» Quereis ver um Job destes? Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido. E para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos modos com que vós comeis no mar, ouvi a Deus queixando-se deste pecado: Nonne cognoscent omnes, qui operantur iniquitatem, qui devorunt plebem meam, ut cibum panis? Cuidais, diz Deus, que não há-de vir tempo em que conheçam e paguem o seu merecido aqueles que cometem a maldade? E que maldade é esta, à qual Deus singularmente chama a maldade, como se não houvera outra no Mundo? E quem são aqueles que a cometem? A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores, que comem os pequenos: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Nestas palavras, pelo que vos toca, importa, peixes, que advirtais muito outras tantas cousas, quantas são as mesmas palavras. Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem os povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo os devoram e comem? Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo, nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens. Padre António Vieira (Do Sermão de Santo António aos Peixes)

terça-feira, fevereiro 05, 2008

A “guerra boa” é uma guerra má “Para mim, confesso, os países são peças num tabuleiro de xadrez sobre o qual se trava um jogo pelo domínio do mundo”. Lord Curzon, vice-rei da Índia, ao falar sobre o Afeganistão, em 1898. Já aqui falei do jornalista Jonh Pilger. Num artigo publicado no passado dia 10 de Janeiro no New Statesman, desmonta, de forma clara, a falácia de que a invasão do Afeganistão se deveu ao 11 de Setembro, demonstrando que o destino do regime Taliban que os Estados Unidos tinham colocado no poder já estava traçado desde a primavera de 2001. O artigo, de leitura “obrigatória”, começa assim: Tinha sugerido a Marina que nos encontrássemos na segurança do Hotel Intercontinental, onde se hospedam os estrangeiros em Cabul, mas ela respondeu que não. Ela tinha estado ali uma vez e agentes do governo, suspeitando que fosse da Rawa, prenderam-na. Em vez disso, encontrámo-nos numa casa segura, a que se chega contornando montes de destroços de bombas naquilo outrora foram ruas, onde vivem pessoas como vítimas de um tremor de terra ainda à espera de socorro.

segunda-feira, fevereiro 04, 2008

Do Desejo E por que haverias de querer minha alma Na tua cama? Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas Obscenas, porque era assim que gostávamos. Mas não menti gozo prazer lascívia Nem omiti que a alma está além, buscando Aquele Outro. E te repito: por que haverias De querer minha alma na tua cama? Jubila-te da memória de coitos e de acertos. Ou tenta-me de novo. Obriga-me. Hilda Hilst (Do Desejo - 1992)
Mais umas poucas Dúzias de Homens Ricos Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai estradas, fazei caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro, para andar a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa como tendes feito esta que Deus nos deu tão diferente do que a que hoje vivemos. Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? - Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já devia andar orçado o número de almas que é preciso vender ao diabo, número de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um granjeeiro, seja o que for: cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis. Almeida Garrett, in 'Viagens na minha Terra'

domingo, fevereiro 03, 2008

Motivo calar é ceder à morte sob o gume da automordaça o grito é o sangue da vida, dardo do espírito inquieto por isso (meu) grito! júbilo ou/e dor sei que eles despedaçam silêncios, abarrotam vazios e conquistam rumos que nunca seriam devassados não fosse sua viagem no tempo sobretudo têm o condão de ressuscitar fragmentos de mim porventura tombados nalgum combate oculto nas moitas do tempo Aleilton Fonseca* *poeta brasileiro

sábado, fevereiro 02, 2008

O Alimento do Espírito Vem de Fora O espírito é uma máquina estranha que pode realizar as combinações mais extraordinárias com os materiais que lhe são oferecidos, mas sem esses materiais do mundo exterior é impotente; ao contrário da máquina de salsichas, é ele que os tem de colher, pois os acontecimentos só se tornam experiências graças ao interesse que por eles tomamos: se não nos interessam, não nos dão nada deles. Por isso o homem cuja atenção se desvia para dentro de si nada encontra digno de observação, ao passo que o homem atento a tudo o que o rodeia pode encontrar em si próprio, nos raros momentos em que contempla a sua alma, um conjunto de elementos, os mais variados e interessantes, para serem examinados e reunidos em motivos belos ou instrutivos. Bertrand Russell, in "A Conquista da Felicidade" Retirado do Citador
Amanhecimento De tanta noite que dormi contigo no sono acordado dos amores de tudo que desembocamos em amanhecimento a aurora acabou por virar processo. Mesmo agora quando nossos poentes se acumulam quando nossos destinos se torturam no acaso ocaso das escolhas as ternas folhas roçam a dura parede. nossa sede se esconde atrás do tronco da árvore e geme muda de modo a só nós ouvirmos. Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos o pio de todas as asneiras todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha para um dia partirem em revoada. Ainda que nos anoiteça tem manhã nessa invernada Violões, canções, invenções de alvorada... Ninguém repara, nossa noite está acostumada. Elisa Lucinda* *poetisa, jornalista e actriz brasileira, que hoje celebra 50 anos

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Da Espera Direi aos pássaros que esperem, enquanto perdurar a ronda dos morcegos. Mas, quando se avizinhar a madrugada, exigirei que todas as canções tecidas no silêncio deixem o verde tímido dos bosques e povoem de sons as avenidas para que os homens se alegrem e conheçam que o mundo é bom. Alcides Werk* *poeta brasileiro