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sexta-feira, fevereiro 28, 2014

Sentimento do tempo

Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos dos meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer por que deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
Meus pássaros caiam sem sentidos.
No olhar do gato passavam muitas horas
Mas não entendia o tempo àquele tempo como agora.
Não sabia que o tempo cava na face
Um caminho escuro, onde a formiga passe
Lutando com a folha.
O tempo é meu disfarce.
                            

(Paulo Mendes Campos nasceu faz hoje 92 anos)

quinta-feira, fevereiro 27, 2014

Poema quotidiano

É tão depressa noite neste bairro
Nenhum outro porém senhor administrador
goza de tão eficiente serviço de sol
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua
O senhor não calcula todo o dia
que festa de luz proporcionou a todos
Nunca vi e já tenho os meus anos
lavar a gente as mãos no sol como hoje
Donas de casa vieram encher de sol
cântaros alguidares e mais vasos domésticos
Nunca em tantos pés
assim humildemente brilhou
Orientou diz-se até os olhos das crianças
para a escola e pôs reflexos novos
nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca misturou-o no pão
Chegaram a tratá-lo por vizinho
Por este andar... Foi uma autêntica loucura
O astro-rei tornado acessível a todos
ele que ninguém habitualmente saudava
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados
Íamos vínhamos entrávamos não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós
Ficou tão triste a gente destes sítios
Nunca foi tão depressa noite neste bairro


(Ruy Belo faria hoje 81 anos)

quarta-feira, fevereiro 26, 2014

In Memoriam
Paco de Lucia faleceu hoje, aos 66 anos de idade
O Prazer é Silencioso

Ao contrário da ideia assente
A palavra não é criadora de um mundo;
O homem fala como o cão ladra
Para exprimir raiva, ou medo.

O prazer é silencioso,
Tal como o é o estado de felicidade.


(Michel Houellebecq faz hoje 56 anos)

terça-feira, fevereiro 25, 2014

Descobrimento

Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.


(poeta paulista falecido a 25 de Fevereiro de 1945)

segunda-feira, fevereiro 24, 2014

Escolha

Entre vento e navalha escolho o vento
entre verde e vermelho aquele azul
que até na morte servirá de espelho
ao vento que por dentro me deslumbra.
Entre ventre e cipreste escolho o Sol
Entre as mãos que se dão a que se oculta
Entre o que nunca soube o que já sobra
Entre a relva um milímetro de bruma.


(David Mourão-Ferreira nasceu faz hoje 87 anos)

domingo, fevereiro 23, 2014

O Zeca partiu faz hoje 27 anos
Quarta Dimensão

Trazem as árvores insignificantes
o maior distúrbio aos ventos; arredam-nos,
alçam outros armazéns sonoros
casas de relâmpagos e de cataclismos.

Chega-se. Parte-se. Segreda-se
de seres indeterminados que movem
resistência. Pelejam mais.

E quando a sua pele se usa vence
a moda, mudança de uma árvore para a mundanal
outra árvore carregada.

Podem aliás irromper quentes florestas.
Abate-se sobre o lenhador a opulência, o triunfo
do fruto desenvolvido no seu trono
iluminado por quatro archotes de seiva.

Há no mundo inteiro uma, quando muito, rua
difícil de encontrar.

São os campos, gente humílima, absorta em grãos
de areia, praia inequívoca onde,
na estação tardia, os do mar se deitam.
Algumas folhas, de livros, assinalam o ponto.
Algumas cartas, de marear,
não chegam.

Criaturas que se reproduziam em interstícios
que se deitavam em divãs
cada vez mais estreitos

a luminosa vocação, a luminosidade
de uma terra sábia e rotunda
suplantava aqueles gritos portadores
de uma defunta órfica voz

Eram as criaturas presas ,
do seu século
retraídas nos olhos mal afeiçoados

Filhos mais velhos a atentarem
em como o corpo incha e se perfaz a polpa
como o limite se delimita corpo a corpo
e engorda

Cobriam-se as folhas de uma letra hirsuta
e os mais novos sorriam como lábios.


(poetisa lisboeta falecida faz hoje 25 anos)

sábado, fevereiro 22, 2014

Palavras

Vi trigo     vi fome
vi ferros     vi feras
vi ruas     vi nomes
vi grades     vi esperas

vi armas     vi muros
vi lutas     vi mortes
vi surdos     vi mudos
vi fracos     vi fortes

vi mares     vi terras
vi negros     vi servos
vi fardas     vi guerras
vi balas     vi nervos

vi corpos     vi cardos
vi fama     vi glória
vi punhos     vi cravos
vitória     vitória

vi abril     vi povo
vi rosto     vi espanto
vi nosso     vi novo
vi pouco     vi tanto

tão cedo     tão cedro
tão certo     tão perto
tão raiva     tão medo
tão mar     tão deserto

tão lua     tão leve
tão pobre     tão pouco
tão fúria     tão febre
tão longe     tão louco

tão alto     tão erva
tão raso     tão resto
conversa     conserva
tão lento     tão lesto

tão urze     tão hoje
tão zero     tão tojo
tão fica     tão foge
tão ontem     tão nojo

tão mata     tão morra
tão égua     tão água
tão pinho     tão porra
tão merda     tão mágoa


(Joaquim Pessoa faz hoje 66 anos)

sexta-feira, fevereiro 21, 2014

Funeral Blues

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message 'He is Dead'.
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last forever: I was wrong.

The stars are not wanted now; put out every one,
Pack up the moon and dismantle the sun,
Pour away the ocean and sweep up the woods;
For nothing now can ever come to any good.


(W.H. Auden nasceu a 21 de Fevereiro de 1907)

quinta-feira, fevereiro 20, 2014

Rosas do Deserto

Rosas do Deserto
Flores de Pedra!

Jardins de Incenso

Floriram
Fruto do nosso deslumbramento


(poetisa montemorense que hoje faz 52 anos)
FRAGAS

Entre rochas    caminho. Íngreme    o ar
derrama lume sobre a ara. Longe
recortam-se planezas    almos vales,
horizontes luzindo de horizontes.

Vias cruzam surpresas. Na montanha
acastelam vertigens de penedos,
vagabundeiam florações rasteiras
de pedra em pedra    humildes    alvejando.

Subir    descer    parar. Ligeiro vento
um cálido frescor    quase que afaga.

Erro e progrido neste caos de fragas
onde parou    alucinado    o tempo.


(poeta albicastrense que hoje faz 78 anos)
O Ovo

Enchi de Oeste a minha vida,
Como se o Sol, que estira os peixes,
Me desse a terra percorrida,
O mar curvado e um não-me-deixes.

Sol fui no arco dos dias
E, pesado
Na minha luz, já mais do que o meu fogo,
Levei as ondas frias,
O vento e a vida logo.

Tudo levei, coroado de horizonte;
O amor queimei na tarde vaga,
Com uma ilha defronte.

Mas, queria, mais que o mar, bater
Ainda as praias carregadas
De passos, conchas e do haver
De aves livres lá pousadas
Que já não posso recolher.

E um ovo,
Nada mais que um ovo,
Num punhado de pó, entre juncais,
Que desse vida, penas, povo
Para as aragens e areais.


(Vitorino Nemésio faleceu faz hoje 36 anos)

quarta-feira, fevereiro 19, 2014

Poema do alegre desespero

Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerxes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?


(Rómulo Vasco da Gama de Carvalho faleceu faz hoje 17 anos)
Canto Grave e Profundo

É pesado o desabar das horas no fim do céu,
que se faz tempo e tempo para socorrer
o sangue derramado nos campos de pedra e sol
dos que foram feitos morrer

sem estender a mão para o fruto
semeado e que se fez em resposta
ao trabalho da mão nos campos de pedra e sol
no mundo em processo de classes superpostas.

E o trigo foi para outros lábios
que não os que bendisseram a chuva
e choraram o sol com a fome dos filhos

e o pão foi servido na mesa de homens
que não os que bendisseram a chuva:
e é novamente preciso semear os campos de pedra e sol.


(poeta baiano que hoje faz 73 anos)

terça-feira, fevereiro 18, 2014

A um crítico

Sou o que sou quando não sou.
Sou o espelho onde os outros
em mim se contemplam.
Pensas que não passo
de um pássaro canoro
embora eu seja uma esfinge.
E porque não me decifras
eu te devoro.

A noite misteriosa
Quando durmo, um pássaro
pousa no meu ombro.
Vou sem minha sombra
por essa alameda
que só há nos sonhos.
O sol rompe a névoa
que cai do céu branco
O pássaro voa
e termina o assombro.

O dia insuficiente
Tamanho dia não me guarda inteiro.
Dele sobra a minha alma distraída.
Nesta cinta no excesso me agasalho,
o ouvido surdo a toda marulhada
que se derrama pelo chão cativo.
Pela roda dos anos aprendi
tudo que ensina a morte, quando ensina,
como cartilha aberta sobre a mesa.
Despartido da vida, embora vivo,
em vão procuro a terra do outro lado.
Transposta esta fronteira, não há légua
nem estrelas, nem novo dia claro.


(poeta alagoano nascido faz hoje 90 anos)

segunda-feira, fevereiro 17, 2014

Expiação

Muitas vezes, a sós, na desventura,
Volvo a mim mesmo um longo olhar austero,
Um olhar que interroga... e considero
Os abismos de fogo da amargura.

Que deus poderá ser o deus severo,
Que fez cair sobre a minha alma impura
A noite do abandono e da tortura,
Em que desvairo e em que me desespero?

Que pecados trouxe eu das outras vidas?
De que faltas antigas cumpro agora
As penas tristes e descomedidas?

Que alma infeliz dentro em minha alma implora?
Em que velhas estrelas escondidas
Fui réu de crimes sem lembrança, outrora?


(poeta pernambucano nascido faz hoje 116 anos)

domingo, fevereiro 16, 2014

Vela Branca

Vela branca, vela branca,
que vais lá longe... no mar...
quem me dera, vela branca,
que me quisesses levar
para tão longe... tão longe,
que eu não pudesse voltar...

Mas uma vez, vela branca,
que não me queres levar,
para tão longe... tão longe...
que eu não pudesse voltar,
leva-me a saudade dela
para o mais fundo do mar.


(poeta pernambucano nascido faz hoje 126 anos)

sábado, fevereiro 15, 2014

Jovem

Suporta o peso do mundo. 
E resiste.

Protesta na praça.
Contesta.
Explode em aplausos.

Escreve recados
nos muros do tempo.
E assina.

Compete
no jogo incerto da vida.

Existe.


(poetisa paranaense falecida faz hoje 10 anos)
Filosofia

A realidade é apenas
um milagre da nossa fantasia...

Transforma numa Eternidade
o teu rápido instante de alegria!
Ama, chora, sorri... e dormirás sem penas,
porque foi bela a tua realidade.


(poeta carioca falecido a 15 de Fevereiro de 1935)

sexta-feira, fevereiro 14, 2014

O amor é um pássaro cego

Entraste na casa do meu corpo,
desarrumaste as salas todas
e já não sei quem sou, onde estou.
O amor sabe. O amor é um pássaro cego
que nunca se perde no seu voo.


(escritor louletano que hoje faz 76 anos)
O Vivo

Não queiras ser mais vivo do que és morto.
As sempre-vivas morrem diariamente
Pisadas por teus pés enquanto nasces.
Não queiras ser mais morto do que és vivo.
As mortas-vivas rompem as mortalhas
Miram-se umas nas outras e retornam
(Seus cabelos azuis, como arrastam o vento!)
Para amassar o pão da própria carne.
Ó vivo-morto que escarnecem as paredes,
Queres ouvir e falas.
Queres morrer e dormes.
Há muito que as espadas
Te atravessando lentamente lado a lado
Partiram tua voz. Sorris.
Queres morrer e morres.


(poeta paulista que hoje faz 83 anos)

quinta-feira, fevereiro 13, 2014

Canção

Passa o vento de outono
derrubando a tarde:
caem torres douradas,
folhas azuis caem.

E passa o tempo louco
derrubando os sonhos:
caem torres de amor,
trémulas folhas caem.

No vazio cai,
sem fim, meu coração.
Nada pode salvar-me.
Deus sabe que estou morto.

Sobre mim passa um rio
de esquecimento sem remédio.
Acima cruzam flores.
Sei que ninguém me ouve.


(poeta colombiano falecido faz hoje 29 anos)

quarta-feira, fevereiro 12, 2014

A un general

Región de manos sucias de pinceles sin pelo
de niños boca abajo de cepillos de dientes

Zona donde la rata se ennoblece
y hay banderas innúmeras y cantan himnos
y alguien te prende, hijo de puta,
una medalla sobre el pecho

Y te pudres lo mismo.


(escritor argentino falecido faz hoje 30 anos)

terça-feira, fevereiro 11, 2014

Cogumelos

Varando a noite, com
Brandura, brancura,
Silêncio absoluto,

Do artelho aos
narizes
Tomamos posse da
argila
E do ar adquirido.

Ninguém nos avista,
Nos detém, nos
agride;
Evadem-se os
grãozinhos.

Punhos suaves
insistem
Em brandir agulhas,
O recheio folhudo,

Até o calçamento.
Nossos martelos,
marretas,
Sem olhos e ouvidos,

De voz nem um fio
Alargam as gretas,
Ombro abrindo
fendas. Nós

Vivemos a pão e água,
Migalhas de sombra,
Com modos afáveis,

Inquirindo pouco ou
nada.
São tantos de nós!
São tantos de nós!

Somos estantes,
somos
Mesas, somos
humildes,
Somos comestíveis,

Aos trancos e
arranques
Apesar de nós
mesmos
Nossa espécie se
expande:

Pela manhã, havemos
De herdar o planeta.
E nosso pé porta
adentro.


(poetisa estado-unidense falecida faz hoje 51 anos)