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quinta-feira, outubro 31, 2013

Canto Esponjoso

Bela
esta manhã sem carência de mito,
E mel sorvido sem blasfémia.

Bela
esta manhã ou outra possível,
esta vida ou outra invenção,
sem, na sombra, fantasmas.

Umidade de areia adere ao pé.
Engulo o mar, que me engole.
Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz
azul completa
sobre formas constituídas.

Bela
a passagem do corpo, sua fusão
no corpo geral do mundo.
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.


(poeta mineiro nascido faz hoje 111 anos)

quarta-feira, outubro 30, 2013

Miguel Hernandez nasceu a 30 de Outubro de 1910

(Canta Joan Manuel Serrat)
Ela, em meu Sonho

Ela vivia num palácio mouro...
Nas harpas, os seus dedos a espreitarem
como pajens curiosos, a afastarem
os cortinados todos fios de ouro.

As suas mãos, tão leves como as aves,
ora fugiam volitando, frias,
ora pesam, trêmulas, suaves,
nas cordas, a sonharem melodias...

E os sons que ela tangia, aos seus ouvidos
chegaram, receosos de senti-la,
voltavam a não ser nunca tangidos.

É que ela, as suas mãos, as harpas de ouro,
não eram mais do que um supor ouvi-la
e o meu julgá-la num palácio mouro.


(poeta português nascido faz hoje 122 anos)

terça-feira, outubro 29, 2013

Areia

Do Leste veio o sol devolvendo abril
no início da estação que está no fim
amor que começou e amarga o exílio
sabor que se perdeu antes de mim

O céu capricha azul depois da chuva
borracha sobre a dor, separação
corpos que secaram ainda úmidos
palavra recém dita e sem perdão

Devia te deixar fazer o escrito
prometido no verão do verbo aflito
e não pedir em vão teu desperdício

Agora colho o grão de uma colheita
lonjura em comunhão com a ventania
pareço um paredão chorando areia


(poeta gaúcho que hoje faz 65 anos)

segunda-feira, outubro 28, 2013

In memoriam
Lou Reed - Sword Of Damocles
Poema: Rafael Alberti
Música e Voz: Vicente Monera

Rafel Alberti faleceu faz hoje 14 anos
A morte de calar

As viagens que sou prenderam-se em redomas
Ao corpo das palavras. À morte de calar.
Do alfabeto meu ignoro as cristalinas
Formas de aladas letras nestes versos finais.
São fantasmas de sol. São fantasmas de sede
Que chegam alta noite para nenhum lugar.

Decifro nas entranhas das trevas migradoras
O solstício da vida além da morte clara.
Mas quem me vem cegar, com setas voadoras
Nega-me agora a paz das secretas paisagens.

Meus Irmãos de astronaves, guiadas por um morto,
Que me esperam e estão, que me cantam e falam.
Que na vazia Cruz crucificam meu corpo
E abandonam a flor, mesmo a meio da sala.
À janela rasgada, para as cinzentas águas,
Encostam-me, sem olhos, e deixam-me ficar.

Não tenho nada mais a escrever sobre as ondas.
E mesmo que tivesse, ninguém leria o mar.

Natércia Freire

(poetisa benaventense nascida a 28 de Outubro de 1920)

domingo, outubro 27, 2013

Amizade

De mais ninguém se não de ti, preciso:
Do teu sereno olhar, do teu sorriso,
Da tua mão pousada no meu ombro.

Ouvir-te murmurar: - "Espera e confia!"
E sentir converter-se em harmonia,
O que era, dantes, confusão e assombro.


(poeta português falecido faz hoje 64 anos)

sábado, outubro 26, 2013

Infinitude  

Noite negra - teu vulto funeral
nunca me evoca a morte:
evoca a vida imemorial e universal!
Meu coração, na sombra, é a lente-forte,
o espelho de uma equatorial
onde aprofundo
o caos profundo,
a leste, a oeste, ao sul, ao norte!

Noite - mãe da Verdade misteriosa!
Noite - estudo contigo a Vida prodigiosa,
a desdobrar-se luxuriosa em toda a parte,
nublada em Vênus, regulada em Marte,
decadente na Lua ou nascente em Saturno!

Noite - estudo contigo o segredo noturno
de universos maiores, a milhões de milhas,
das ilhas do éter - dessas miríficas ilhas -
maravilhas
de luz, grandeza e sons que não sei conceber!

Noite - estudo contigo e ponho-me a tremer!...

É a mais santa emoção:
é um orgulho (perante o ritmo fundo,
o prodígio perpétuo da criação)
orgulho de - inda sendo átomo vão -
ter sido, ser e sempre ser de um mundo...
no Mundo!!


(poeta brasileiro nascido a 26 de Outubro de 1894)

sexta-feira, outubro 25, 2013

Dor

Quisera esta tarde divina de outubro
passear pela beira longínqua do mar;
Que a areia de ouro, e as águas verdes,
e os céus puros me vissem passar.

Ser alta, soberba, perfeita, quisera,
como uma romana, para concordar
com as grandes ondas, e as rocas mortas
e as largas praias que apertem o mar.

Com o passo lento, e os olhos frios
e a boca muda, deixar-me levar;
ver como se rompem as ondas azuis,
contra os granitos e não pestanejar;
ver como as aves de rapina se comem
os peixes pequenos e não despertar;
pensar que puderam as frágeis barcas
Afundar-se nas águas e não suspirar;
Ver que se adianta a garganta ao ar,
O homem mais belo não desejar amar…

Perder o olhar, distraidamente,
perde-lo e que nunca o volte a encontrar:
E figura erguida entre céu e praia
sentir-me o esquecimento perene do mar.


(poetisa argentina falecida faz hoje 75 anos)

Tradução de Maria Teresa Almeida Pina

quinta-feira, outubro 24, 2013

SINAL

Ergo nas mãos em concha
uma lembrança de água
oh presença subtil no deserto de um livro
a que uma folha dura

E que frágeis os trincos da memória
do que era teu e meu
a invisível tesoura
com que cortar os sonhos pela cintura


(poeta açoriano nascido faz hoje 77 anos)

quarta-feira, outubro 23, 2013

Adega do sono

Dividias os gomos da fruta
em aposentos da casa.
A cortina do sumo
leveda o sol levantado.
O zodíaco do molde
supre o gérmen do quarto.
E o bafio estala
a lareira das esferas
na sala de estar
da semente.


(poeta gaúcho que hoje faz 41 anos)

terça-feira, outubro 22, 2013

ecologia lírica

A incógnita
acontece
na cor
que nasce
e reverdece
na flor
até ao limite
de olhá-la
como ela
é

O que é que cicia
o mistério (a essência)
desta atmosfera
de sol do meio dia
cuja transparência
parece que gera
o que a terra cria

Todos os mitos
imortais
cabem
subitamente
nos alicerces
originais
da semente

A pétala sabe
o destino oculto
de todas as coisas
onde o sol começa

Criar primeiro o ovo
para a raiz
do pássaro que voa
aquém da casca
Mudar depois as asas
da natureza
sem deixar de ser ave
e ser flor
gerar o movimento
assim eterno
da origem de ser
o que já é

O orvalho
respira
a solidão
da noite
na boca
da manhã

Um sopro
de luz
abre
no espaço
uma fenda
clara
para o dia
que nasce


(poeta português falecido faz hoje 25 anos)

segunda-feira, outubro 21, 2013

Lera Auerbach (piano e composição) faz hoje 40 anos
Soneto das imagens interiores

Mistério das imagens interiores.
Imersas nestes mares de abandono
as sementes de fogo geram flores:
rosas de pó nas lâminas do outono.

Transfigurada, a fria luz de sono
vela de cinza a face dos pastores,
e os súditos do tempo, e os reis sem trono,
sob o mudo legado de outras dores.

Na áspera latitude um rio corre
branco de eternidade. As nebulosas
vão-se formando, enquanto o sonho morre.

Há pássaros absortos na obcecada
cisma da solidão; e mãos ansiosas
abrem portas de sombra para o nada.


(poeta pernambucano falecido faz hoje 7 anos)

domingo, outubro 20, 2013

Índicos Caminhos

Os caminhos
são teus
na lonjura destes
passos.

As palavras e metáforas
são às vezes minhas
rimadas de íntimos
cansaços.

As flores do Índico
são nossas
pétalas do mar
insubmissas...


(poeta moçambicano que hoje faz 68 anos)

sábado, outubro 19, 2013

Aos Filhos

Já nada nos pertence,
nem a nossa miséria.
O que vos deixaremos
a vós o roubaremos.

Toda a vida estivemos
sentados sobre a morte,
sobre a nossa própria morte!
Agora como morreremos?

Estes são tempos de
que não ficará memória,
alguma glória teríamos
fôssemos ao menos infames.

Comprámos e não pagámos,
faltámos a encontros:
nem sequer quando errámos
fizemos grande coisa!


(Manuel António Pina faleceu faz hoje 1 ano)
Acontecimento

Haverá na face de todos um profundo assombro
E na face de alguns, risos sutis cheios de reserva
Muitos se reunirão em lugares desertos
E falarão em voz baixa em novos possíveis milagres
Como se o milagre tivesse realmente se realizado
Muitos sentirão alegria
Porque deles é o primeiro milagre
Muitos sentirão inveja
E darão o óbolo do fariseu com ares humildes
Muitos não compreenderão
Porque suas inteligências vão somente até os processos
E já existem nos processos tantas dificuldades...
Alguns verão e julgarão com a alma
Outros verão e julgarão com a alma que eles não têm
Ouvirão apenas dizer...
Será belo e será ridículo
Haverá quem mude como os ventos
E haverá quem permaneça na pureza dos rochedos.
No meio de todos eu ouvirei calado e atento, comovido e risonho
Escutando verdades e mentiras
Mas não dizendo nada.
Só a alegria de alguns compreenderem bastará
Porque tudo aconteceu para que eles compreendessem
Que as águas mais turvas contêm às vezes as pérolas mais belas.


(Vinicius de Moraes nasceu faz hoje 100 anos)

sexta-feira, outubro 18, 2013

É preciso

É preciso um novo tempo
que nas asas do vento
transporte esperança
às crianças grandes, carentes...

É preciso sorrir
e espantar a tristeza
que esconde a beleza
e faz a vida escura
obscura,
destituída de encantos...

É preciso sonhar
e espantar os pesadelos
que em tétricos modelos
assombram no espaço
os nervos de aço
do destino incerto...

É preciso crer no amanhã
e buscar na desventura
a invisível ternura
de mãos ocultas
e corações errantes...

É preciso ir andando
no meio fio da existência
acumulando experiência
para que na hora final
o assombro não seja tal
que nos derrube no espaço...

É preciso um novo tempo
e também muito sentimento...
É preciso sorrir
e também muita alegria...
É preciso sonhar
e também muita poesia...
É preciso crer
e também uma crença pura...
É preciso caminhar
e também achar o caminho certo...
É preciso tudo isso
e além disso...
Muito peito e valentia!


(escritora paulista que hoje faz 63 anos)

quinta-feira, outubro 17, 2013

PONTO - TRAÇO

Um ponto negro - um traço
na planície branca
e uma pergunta no silêncio
resolve-se na luz
de uma outra folha inatingível
nudez de evidência ou
de um equilíbrio súbito suspenso
de um contorno novo
uma prosa branca
o desvio de um sulco
ou haste
perpendicular à lentidão do curso
o nome que ascende e principia o fluxo
que não cessa aqui.


(António Ramos Rosa nasceu faz hoje 89 anos)

quarta-feira, outubro 16, 2013

A implosão da mentira - Fragmento II

Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.

Mentem. Mentem caricatural-
mente.
Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.
Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente. Mentem
ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre. Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre. E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.
E assim cada qual
mente industrial?mente,
mente partidária?mente,
mente incivil?mente,
mente tropical?mente,
mente incontinente?mente,
mente hereditária?mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/mente
constroem um país
de mentira
                                       - diária/mente.

Affonso Romano de Sant'Anna

(poeta mineiro)

terça-feira, outubro 15, 2013

Ansiedade

Quero compor um poema
onde fremente
cante a vida
das florestas das águas e dos ventos.

Que o meu canto seja
no meio do temporal
uma chicotada de vento
que estremeça as estrelas
desfaça mitos
e rasgue nevoeiros — escancarando sóis!


(Manuel da Fonseca nasceu faz hoje 102 anos)

segunda-feira, outubro 14, 2013

Como os outros

Como os outros discípulo da noite
frente ao seu quadro negro que é
exterior à música dispo o reflexo
sou um e baço

dou-me as mãos na estreita
passagem dos dias
pelo café da cidade adoptiva
os passos discordando
mesmo entre si

As coisas são a sua morada
e há entre mim e mim um escuro limbo
mas é nessa disjunção o istmo da poesia
com suas grutas sinfónicas
no mar.


(poeta bracarense naturalizado moçambicano, falecido faz hoje 13 anos)

domingo, outubro 13, 2013

O impossível carinho

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero contar-te apenas a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Eu soubesse repor -
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!


(poeta pernambucano falecido faz hoje 45 anos)

sábado, outubro 12, 2013

Tempo

Tempo de pouca poesia,
Tempo de angústias,
De sonhos desfeitos,
De silêncios introspectivos,
De conhecimentos mortos,
De necessidades arrasantes,
De dores variadas,
De caminhos inexistentes,
De necessidades corrompidas,
De ocos no espírito,
De saudades doentias,
De vidas sem amor.

Aroldo Ferreira Leão

(poeta norte-rio-grandense que hoje faz 46 anos)
John Denver faleceu faz hoje 16 anos
Inverno

No céu de cristal
cintila o sol sem calor.
Sopra um vento frio.
   Tiritam árvores nuas
   nos campos que a geada veste.


(poetisa paranaense nascida faz hoje 101 anos)

sexta-feira, outubro 11, 2013

Litania

O teu rosto inclinado pelo vento...
A feroz brancura dos teus dentes,
As mãos, de certo modo, irresponsáveis...
E contudo sombrias, e contudo transparentes.

O triunfo cruel das tuas pernas,
Colunas em repouso se anoitece.
O peito raso, claro, feito de água,
A boca sossegada onde apetece...

Navegar ou cantar, ou simplesmente ser
A cor d'um fruto, ou peso d'uma flor,
As palavras mordendo a solidão,
Atravessadas de alegria e de terror,
São a grande razão... são a única razão...


(escritor brasileiro falecido faz hoje 9 anos)

quinta-feira, outubro 10, 2013

Édith Piaf faleceu faz hoje 50 anos
Deus abençoe a América

Lá vão eles outra vez,
Os Ianques e as suas blindadas paradas
Entoando as suas baladas de alegria
A galope pelo vasto mundo
Louvando o Deus da América.

As sarjetas estão entupidas de mortos
Dos que não puderam alistar-se
Dos outros que se recusam a cantar
Dos que estão a perder a voz
Dos que esqueceram a música.

Os cavaleiros têm chicotes que ferem.
A tua cabeça rola para a areia
A tua cabeça é uma poça no lixo
A tua cabeça é uma nódoa no pó
Os teus olhos apagaram-se e o teu nariz
Fareja apenas o fedor dos mortos
E todo o ar morto está vivo
Com o cheiro do Deus da América.


(Harold Pinter nasceu faz hoje 83 anos)