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segunda-feira, setembro 30, 2013

Valsa

No tango das madrugadas
Uma valsa me procura,
Giram luas, gira a vida
Em glicínias de ternura.
Salões flutuam na insônia,
E na paixão que se enreda
Os corpos endoidecidos
Entre delírios de seda.
Rodam piões enlaçados
Nas calçadas do universo,
Os pares sonham noturnos
Nos passos de cada verso.
Uma valsa me procura,
imperial em meus desejos,
Dançam sobrados e esquinas
Num baile de realejos.


(poeta paulista que hoje faz 87 anos)

domingo, setembro 29, 2013

O tímpano e a pupila

Num dos pratos o mar, no outro um rio, agora
que o tempo se desossa,
que as pedras
que piso se me enterram na memória e os caminhos
se me aguçam na alma como lâminas, o pão
molhado nas feridas,
o pão
ele próprio já também uma ferida, agora

que o tempo, que já tanto
compararam a um rio, mais
não é do que uma leve exsudação nos muros,
nas mãos, agora

que o céu se encrespa e que pedaços
de mundo arremessados
com toda a força aos olhos revolteiam
na treva antes de se extinguirem,

mais magro do que a neve
caminho, a alma aberta como uma ferida,
ao longo da memória, onde se fundem
o tímpano e a pupila.


(Luís Miguel Nava faria hoje 56 anos)

sábado, setembro 28, 2013

Declaração

As aves, como voam livremente
num voar de desafio!
Eu te escrevo, meu amor,
num escrever de libertação.

Tantas, tantas coisas comigo
adentro do coração
que só escrevendo as liberto
destas grades sem limitação.
Que não se frustre o sentimento
de o guardar em segredo
como liones, correm as águas do rio!
corram límpidos amores sem medo.

Ei-lo que to apresento
puro e simples - o amor
que vive e cresce ao momento
em que fecunda cada flor.

O meu escrever-te é
realização de cada instante
germine a semente, e rompa o fruto
da Mãe-Terra fertilizante.


(poeta angolano nascido a 28 de Setembro de 1924)

sexta-feira, setembro 27, 2013

Casa destelhada

A minha vida é uma casa destelhada
por um vento fortíssimo de chuva.

(As goteiras de todas as misérias
estão caindo, com lentidão perversa,
na terra triste do meu coração.)

A minha alma, a inquilina, está pensando
que é preciso mudar-se, que é preciso
ir para uma casa bem coberta...

(As goteiras estão caindo
lentamente, perversamente
na terra molhada do meu coração.)

Mas a minha alma está pensando
em adiar, quanto mais, a mudança precisa.
Ela quer muito bem à velha casa
em que já foi feliz...
E encolhe-se, toda transida de frio,
fugindo às goteiras, que caem lentamente
na terra esverdeada do meu coração!

Oh! a felicidade estranha
de pensar que a casa agüente mais um ano
nas paredes oscilantes!
Oh! a felicidade voluptuosa
de adiar a mudança, demorá-la,
ouvindo a música das goteiras tristes,
que caem lentamente, perversamente,
na terra gelada do meu coração!


(poeta paulista nascido faz hoje 116 anos)

quinta-feira, setembro 26, 2013

A Invenção do “O”

Na era da pedra lascada
da língua falada
antes de inventarem a letra
que imitava a lua
as palavras diziam nada
e nada levava a nada
(aliás, nem precisava rua).
A frase ficava estática
de maneira majestática
a grandes falas presumíveis
permaneciam indizíveis
- imagens invisíveis
a distâncias invencíveis.
Vivia-se em cavernas mentais
numa inércia dramática.
Ir e vir, nem pensar
ninguém mudava de lugar
que dirá de sintática.
Aí inventaram o “O”
e foi algo portentoso.
Assombroso, maravilhoso.
Tudo começou a rolar
e a se movimentar.
O Homem ganhou “horizontes”
e palavras viraram pontes
e hoje existe a convicção
que sem a sua invenção
não haveria Civilização.
Um dia, como o raio inaugural
sobre aquela célula no pantanal
que deu vida a tudo,
veio o acento agudo.
E o homem pôde cantar vitória.
E começou a História.
(Depois ficamos retóricos
e até um pouco gongóricos).


(Luís Fernando Veríssimo faz hoje 77 anos)
Pássaro de fogo

Trovão, fogo,
fanfarra
assustam o pássaro,
que pernoita
no alçapão.

Chuva miúda
faz festa
para o pássaro
sair do silêncio.

O pássaro voa
e expande silêncios,
esconde esperança.

Metamorfose
de pássaro de fogo.

Alice Spíndola

(poetisa mineira que hoje faz 73 anos)

quarta-feira, setembro 25, 2013

Dia de festa

Ontem foi dia grande cá na família, dado que a filhota defendeu com muito brio a sua tese de Doutoramento em Imunologia pela Faculdade de Medicina de Lisboa.

No entanto, não pude deixar de sentir alguma mágoa pelo estado ao que isto chegou, pois uma portuguesa, numa Universidade portuguesa, ter de defender a sua tese em inglês (língua que domina tão bem como a portuguêsa e na qual a tese foi escrita), tendo como arguentes um belga (uma simpatia) e uma francesa (pior que a Manuela Ferreira Leite) só lembra ao careca devido à falta de expressão de saber científico em língua de Camões. De qualquer modo, é melhor o inglês do que o português do outo lado do mar.
se o vento é a ignição

se o vento é a ignição
das árvores venha o
temporal, elas ateadas sobre
as nossas cabeças, desmembradas
da terra como voadores desajeitados, meu pai
já conheço o vão da tua fome, peço-te,
faz de mim uma colher
divina


(valter hugo mãe faz hoje 42 anos)

terça-feira, setembro 24, 2013

Tarde cinzenta

Tenho medo da tarde cinzenta
porque ela me traz
um enorme desejo de ser infeliz.

E nesse instante,
mais que um instante,
a voz grave do coração
me cerca e procuro fugir.

Os sinos da minha terra
gritam o pavor corpóreo
do homem que desconheço
e o horror da vida
e do mistério
que sempre me acompanham.

Tenho medo da tarde cinzenta.


(poeta goiano que faz hoje 73 anos)

segunda-feira, setembro 23, 2013

A Festa do Silêncio

Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.


(António Ramos Rosa faleceu esta tarde)
O Teu Riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.


(Pablo Neruda faleceu – ou foi assassinado – faz hoje 40 anos)

domingo, setembro 22, 2013

A virgem

um avião em teus seios desocupados
um guindaste em tua boca alerta

um passo de arco-íris corre
teu pulso – dá-me teu bilhete
oh como voo te gosto de viajar!
um motor faz entre tuas coxas
hossana! é sangue o côncavo do teu lugar


(poeta madeirense nascido a 22 de Setembro de 1925)

sábado, setembro 21, 2013

Não Dizia Palavras

Não dizia palavras,
Aproximava apenas um corpo interrogante,
Porque ignorava que o desejo é uma pergunta
Cuja resposta não existe,
Uma folha cujo ramo não existe,
Um mundo cujo céu não existe.

Entre os ossos a angústia abre caminho,
Ergue-se pelas veias
Até abrir na pele
Jorros de sonho
Feitos carne interrogando as nuvens.

Um contacto ao passar,
Um fugidio olhar no meio das sombras,
Bastam para que o corpo se abra em dois,
Ávido de receber em si mesmo
Outro corpo que sonhe;
Metade e metade, sonho e sonho, carne e carne,
Iguais em figura, iguais em amor, iguais em desejo.

Embora seja só uma esperança,
Porque o desejo é uma pergunta cuja resposta ninguém sabe.


(poeta sevilhano nascido a 21 de Setembro de 1902)

Tradução de José Bento
Natureza morta

Estirado na valeta que há na estrada
jaz um homem.

Como o pobre está sorrindo
a gente tola que passa
cuida que ele está dormindo
e fala logo em cachaça.

Mas o homem já morreu.

De que morreu, não importa.
Tão pouco de que viveu.

É uma natureza morta.
Fazem-lhe quarto
tristonha quaresmeira toda em flor
e um grupinho multicor
de marias-sem-vergonha.

O homem, indiferente,
jogado à margem da estrada
já não pode ver mais nada
nem sente nada.

                              Morreu.

Mas me fez pensar na vida.

Paulo Gomide

(poeta paulista falecido faz hoje 31 anos)

sexta-feira, setembro 20, 2013

Aforismo

Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.

Estávamos iguais
com duas diferenças:

Não  era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.

Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.


(poetisa moçambicana nascida a 20 de Setembro de 1926)

quinta-feira, setembro 19, 2013

Nada Tem Sentido

Nos altos ramos de árvores frondosas
O vento faz um rumor frio e alto,
Nesta floresta, em este som me perco
E sozinho medito.

Assim no mundo, acima do que sinto,
Um vento faz a vida, e a deixa, e a toma,
E nada tem sentido - nem a alma
Com que penso sozinho.


(Ricardo Reis “nasceu” no Porto há 126 anos)
Teias

estas malhas que a vida tece
a vida que me enternece
e entristece
e entontece

estas malhas que ato
e desato
e me envolvem
e comovem

e com mãos pacientes
paciente
vou soltando
libertando

transformando.


(escritora salaciense nascida a 19 de Setembro de 1935)

quarta-feira, setembro 18, 2013

Luiz Goes faleceu faz hoje 1 ano
Quando eu morrer

Quando eu morrer em véspera tranqüila,
Num pôr-do-sol de goivos e saudade,
Da velha igreja, que a Madona asila,
O sino grande a soluçar Trindade;

Quando o tufão do mal que me aniquila
Soprar minh´alma para a Eternidade,
Todas as flores dos jardins da vila,
Certo, eu terei da tua caridade.

E, já na sombra amiga do cipreste,
Há de haver uma lágrima piedosa,
A edênica gota, a pérola celeste,

Para quem desfolhou, terno, e as mãos cheias,
O lírio, o bogari, o cravo e a rosa
Pelas estradas brancas das aldeias.


(poeta carioca falecido a 18 de Setembro de 1916)

terça-feira, setembro 17, 2013

Pérola solta

Sem que eu a esperasse,
Rolou aquela lágrima
No frio e na aridez da minha face.
Rolou devagarinho...,
Até à minha boca abriu caminho.
Sede! o que eu tenho é sede!
Recolhi-a nos lábios e bebi-a.
Como numa parede
Rejuvenesce a flor que a manhã orvalhou,
Na boca me cantou,
Breve como essa lágrima,
Esta breve elegia


(José Régio nasceu faz hoje 112 anos)

segunda-feira, setembro 16, 2013

Victor Jara foi assassinado faz hoje 40 anos
Da Felicidade

Estes tratados de
filosofia
Hão de pouco valer-te, meu amigo.

Enganador é o
mundo... Na verdade,
Feliz é o que, semeando o próprio trigo,
Confia no
ouro de futuras messes.
Na vã procura da felicidade,
Constrói, tu
próprio, uma filosofia
Diferente das outras que conheces...

Enrique de Resende

(poeta mineiro falecido faz hoje 40 anos)

domingo, setembro 15, 2013

Canção da Falsa Adormecida

Se te pareço ausente, não creias:
Hora a hora o meu amor agarra-se aos teus braços,
Hora a hora o meu desejo revolve estes escombros
E escorrem dos meus olhos mais promessas.

Não acredites neste breve sono;
Não dês valor maior ao meu silêncio;
E se leres recados numa folha branca,
Não creias também: é preciso encostar
Teus lábios em meus lábios para ouvir.

Nem acredites se pensas que te falo:
Palavras
São o meu jeito mais secreto de calar.


(poetisa gaúcha que hoje faz 75 anos)

sábado, setembro 14, 2013

Não te rendas

Não te rendas, ainda estás a tempo
De alcançar e começar de novo,
Aceitar as tuas sombras,
Enterrar os teus medos,
Libertar o lastro,
Retomar o voo.

Não te rendas que a vida é isso,
Continuar a viagem
Perseguir os teus sonhos,
Destravar o tempo,
Remover os escombros,
e destapar o céu.

Não te rendas, por favor não cedas,
Mesmo que o frio queime,
Mesmo que o medo morda,
Mesmo que o sol se esconda,
E se cale o vento,
Ainda há fogo na tua alma
Ainda há vida nos teus sonhos.

Porque a vida é tua e teu também o desejo
Porque o quiseste e porque eu te quero
Porque existe o vinho e o amor, é certo.
Porque não há feridas que não cure o tempo.

Abrir as portas,
Tirar os ferrolhos,
Abandonar as muralhas que te protegeram,
Viver a vida e aceitar o repto,
Recuperar o riso,
Ensaiar um canto,
Baixar a guarda e estender as mãos
Abrir as asas
E tentar de novo,
Celebrar a vida e retomar os céus.

Não te rendas, por favor não cedas,
Mesmo que o frio queime,
Mesmo que o medo morda,
Mesmo que o sol se ponha e se cale o vento,
Ainda há fogo na tua alma,
Ainda há vida nos teus sonhos
Porque cada dia é um começo novo,
Porque esta é a hora e o melhor momento.
Porque não estás só, porque eu te amo.


(poeta uruguaio nascido faz hoje 93 anos)

sexta-feira, setembro 13, 2013

O Encontro

Como se um raio mordesse
meu corpo pêro rosado
e o namorado viesse
ou em vez do namorado

um novilho atravessasse
meus flancos de seda branca
e o trajecto me deixasse
uma açucena na anca

como se eu apenas fosse
o efeito de um feitiço
um astro me desse um couce
e eu não sofresse com isso

como se eu já existisse
antes do sol e da lua
e se a morte me despisse
eu não me sentisse nua

como se deus cá em baixo
fosse um cigano moreno
como se deus fosse macho
e as minhas coxas de feno

como se alguém dos espaços
me desse o nome de flor
ou me deixasse nos braços
este cordeiro de amor


(Natália Correia nasceu faz hoje 90 anos)

quinta-feira, setembro 12, 2013

Incertezas

Já não há tempo para perguntas.
A vida é um mistério.
Só vemos um lado do espelho.

Já nem sei se foi vida
a longa espera.
E as lindas lembranças
não se tornam reais.

Já não aguento a incerteza.
Claudicas.
Ora sim... Ora olhas ao longe.
És um verso que não atravessa
mares distantes.

Meu coração treme a cada gesto.
Agarro-me em espectros,
numa inquietante angústia.

Tuas linhas choram paixão,
tuas mãos tremem de desejo.
Não tenhas medo de amar.
Entrega-te ao sonho,
ainda não é tarde!


(poetisa sul-mato-grossense que hoje faz 63 anos)

quarta-feira, setembro 11, 2013

Para que não seja esquecido

Peter Tosh faleceu faz hoje 26 anos
Oceano Nox

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo do pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...


(Antero de Quental faleceu a 11 de Setembro de 1891)