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sexta-feira, setembro 30, 2011

Basta de ser o outro

Basta de ser o outro…
O herdeiro da terra,
O neto de seus avós!
Basta de ser
O que leu
E o que ouviu…
À terra devolvo
O cálcio, o ferro, o fósforo;
À nuvem devolvo a água rubra,
Aos mortos,
As angústias herdadas,
Aos vivos
Os gestos e as palavras recebidas…
Basta de ser o outro,
Colcha de retalhos alheios,
Cobrindo um frio verdadeiro.


(poeta paulista nascido a 30 de Setembro de 1926)

quinta-feira, setembro 29, 2011

Paisagem citadina

A pele por fulgurantes
instantes muitas vezes abre-se até onde
seria impensável que exercesse
com tão grande rigor o seu domínio.

Não temos então dela senão rápidas
visões, onde os reclames
do coração se cruzam, solitários
e agrestes, reflectidos

por trás nos ossos empedrados.
Em certas posições vêem-se as cordas
do nosso espírito esticadas num terraço.

A roupa dói-nos porque, embora
nos cubra a pele, é dentro
do espírito que estão os tecidos amarrados.


(poeta viseense nascido a 29 de Setembro de 1957)

quarta-feira, setembro 28, 2011

Monangamba

Naquela roça grande não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações:

Naquela roca grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.

O café vai ser torrado
pisado, torturado,
vai ficar negro, negro da cor do contratado.

Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:

Quem se levanta cedo? quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém?
Quem capina e em paga recebe desdém
fuba podre, peixe podre,
panos ruins, cinquenta angolares
"porrada se refilares"?

Quem?

Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer

- Quem?

Quem dá dinheiro para o patrão comprar
máquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?

Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande - ter dinheiro?

- Quem?

E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:

- "Monangambééé..."

Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo, maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras

- "Monangambééé..."


(poeta angolano nascido a 28 de Setembro de 1924)

terça-feira, setembro 27, 2011

CORAGEM

queixa-te
         mas discretamente
                            há muita aflição na terra
e por vezes se morre exausto de tanto sofrer

não grites a dor
         o silêncio dorme inquieto
                   pelos gemidos
                            rancores            a frieza

é preciso ser vagamente herói
em socorro de ti mesmo e de todo o mundo

vagamente garimpeiro
buscando nas areias da alma
o que ainda seja alegria
                   alvo diamante
                                   neste rio de limo e cinzas

José Paulo Moreira da Fonseca

(poeta carioca)

segunda-feira, setembro 26, 2011

TU E EU

Somos diferentes, tu e eu.
Tens forma e graça
e a sabedoria de só saber crescer
até dar pé.
E não sei onde quero chegar
e só sirvo para uma coisa
- que não sei qual é!
És de outra pipa
e eu de um cripto.
Tu, lipa
Eu, calipto.

Gostas de um som tempestade
roque lenha
muito heavy
Prefiro o barroco italiano
e dos alemães
o mais leve.
És vidrada no Lobão
eu sou mais albônico.
Tu,fão.
Eu,fônico.

És suculenta
e selvagem
como uma fruta do trópico
Eu já sequei
e me resignei
como um socialista utópico.
Tu não tens nada de mim
eu não tenho nada teu.
Tu,piniquim.
Eu,ropeu.

Gostas daquelas festas
que começam mal e terminam pior.
Gosto de graves rituais
em que sou pertinente
e, ao mesmo tempo, o prior.
Tu és um corpo e eu um vulto,
és uma miss, eu um místico.
Tu,multo.
Eu,carístico.

És colorida,
um pouco aérea,
e só pensas em ti.
Sou meio cinzento,
algo rasteiro,
e só penso em Pi.
Somos cada um de um pano
uma sã e o outro insano.
Tu,cano.
Eu,clidiano.

Dizes na cara
o que te vem a cabeça
com coragem e ânimo.
Hesito entre duas palavras,
escolho uma terceira
e no fim digo o sinônimo.
Tu não temes o engano
enquanto eu cismo.
Tu,tano.
Eu,femismo.


(escritor brasileiro que hoje completa 75 anos de idade)
Ironia

Sepulto escombros,
queimo com lenha seca
         agonias e desdéns.
Acordo em prisma
    de sonhos & segredos.

Alice Spíndola

(poetisa mineira nascida a 26 de Setembro de 1940)

domingo, setembro 25, 2011

14

sofro o fio que o
cabelo alinha no chão. a
noite que vem comer a luz
ao dia. minha voz
superior. deus certamente
corrige meus olhos. vejo o
frio, a paralisia do
vento. e preocupo-me
lentamente. um estar vivo
sem qualquer obrigação. vou
dizendo o escuro pormenorizadamente


(poeta português nascido em Angola a 25 de Setembro de 1971)

sábado, setembro 24, 2011

OUTRA POESIA  

Tropeçando em veludos,
rolei rimas;
metrificando os mares,
ondas quebrei.
No entanto
- beira-mágoas e preamares
não pressupõem poesia -,
minhas sedes, porém,
sempre no depois das fontes.

José P. Di Cavalcanti Jr.

(poeta cearense)
Casas de xisto

Aldeia da Pena, São Pedro do Sul. Esta aldeia, de casas com telhados de xisto, tem apenas 8 habitantes.

sexta-feira, setembro 23, 2011


In memoriam

RIR

Rir
é uma palavra capicua
que dá sorte

rir de tudo
até da morte

José Niza, in Poemas de Guerra
Amigo

Amigo, toma para ti o que quiseres,
passeia o teu olhar pelos meus recantos,
e se assim o desejas, dou-te a alma inteira,
com suas brancas avenidas e canções.

Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este inútil e velho desejo de vencer.

Bebe do meu cântaro se tens sede.

Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este desejo de que todas as roseiras
me pertençam.

                               Amigo,
se tens fome come do meu pão.

Tudo, amigo, o fiz para ti. Tudo isto
que sem olhares verás na minha casa vazia:
tudo isto que sobe pelo muros direitos
- como o meu coração - sempre buscando altura.

Sorris-te - amigo. Que importa! Ninguém sabe
entregar nas mãos o que se esconde dentro,
mas eu dou-te a alma, ânfora de suaves néctares,
e toda eu ta dou... Menos aquela lembrança...

... Que na minha herdade vazia aquele amor perdido
é uma rosa branca que se abre em silêncio...


(Pablo Neruda faleceu a 23 de Setembro de 1973)

Tradução de Rui Lage

quinta-feira, setembro 22, 2011

Outra Voz

Vai não com mãos de fadas
a bailar quimeras...
Que outra voz
te anime o leme;
que outra vela
te guarde a saudade.
Se quiseres um arado
e um campo de verdade
diz ao Espaço maior
e ao Vento mais alto
todas as amarguras,
todo o sonho parado,
todo o sangue inútil das tuas mãos,
todo o impossível que te roeu os olhos;
fala nas ravinas íngremes,
na giesta abortada,
na tormenta que levou a aldeia,
no pão ázimo que não comeste;
diz da luta das ondas,
dos ventos atrozes
e da vontade rota
como uma feira perdida.
Fala dum grito,
fala de ti
e tenho a certeza
que outra Voz
virá do Alto.


(poeta madeirense nascido a 22 de Setembro de 1925)

quarta-feira, setembro 21, 2011

O vento e a alma

Com tal veemência o vento
vem do mar, que seus sons
elementares contagiam
o silêncio da noite.

Só em tua cama o escutas
insistente nos cristais
tocar, chorando e chamando
como perdido sem ninguém.

Porém não é ele quem em desvelo
Tem-te, senão outra força
de que teu corpo é hoje prisão,
foi vento livre, e recorda.


(poeta sevilhano nascido a 21 de Setembro de 1902)

Tradução de Maria Teresa Almeida Pina

terça-feira, setembro 20, 2011

Teias de memória

Na baça melancolia do tecto
bilros de teia bordam solidão
enquanto meigos sussurros de sombra
no brilhante mutismo do espelho
recitam estrofes de poeira.


(poetisa moçambicana nascida a 20 de Setembro de 1926)

segunda-feira, setembro 19, 2011

Um dia chegará a Primavera! 

Um dia chegará a Primavera!
Um dia em qualquer lugar, ou em todos os lugares,
Como um novo maio,
Haverá entendimento dos homens e dos deuses,
O fluir fácil da vida e do trabalho,
E harmonia entre o que se deseja e as mãos já constroem.
Um dia seremos todos crianças maravilhadas.
Um dia seremos inocentes,
E nus.


(escritora salaciense nascida a 19 de Setembro de 1935)

domingo, setembro 18, 2011


Para ser grande, sê inteiro

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis

(“Outro Eu” de Fernando Pessoa, “nascido” no Porto a 18 de Setembro de 1887)

sábado, setembro 17, 2011


Pérola solta

Sem que eu a esperasse,
Rolou aquela lágrima
No frio e na aridez da minha face.
Rolou devagarinho...,
Até à minha boca abriu caminho.
Sede! o que eu tenho é sede!
Recolhi-a nos lábios e bebi-a.
Como numa parede
Rejuvenesce a flor que a manhã orvalhou,
Na boca me cantou,
Breve como essa lágrima,
Esta breve elegia.


(José Régio nasceu a 17 de Setembro de 1901)

sexta-feira, setembro 16, 2011

DA ARTE

Pois que arte é criação, liberta o espírito.

Livra-o desses cuidados e  dos zelos
que nutres pelos moldes, como se a arte
obedecesse a efêmeros modelos...

Henrique de Resende

(poeta mineiro falecido a 16 de Setembro de 1973)

quinta-feira, setembro 15, 2011

Não sou areia

Não sou areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério.

A quatro mãos escrevemos o roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.


(poetisa gaúcha nascida a 15 de Setembro de 1938)

quarta-feira, setembro 14, 2011

A ponte

Para cruzá-la ou não cruzá-la
eis a ponte

na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país

trago comigo oferendas desusadas
entre elas um guarda-chuva de umbigo de madeira
um livro com os pânicos em branco
e um violão que não sei abraçar

venho com as faces da insónia
os lenços do mar e das pazes
os tímidos cartazes da dor
as liturgias do beijo e da sombra

nunca trouxe tanta coisa
nunca vim com tão pouco

eis a ponte
para cruzá-la ou não cruzá-la
e eu vou cruzar
sem prevenções

na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país


(poeta uruguaio  nascido a 14 de Setembro de 1920)

terça-feira, setembro 13, 2011

Ode à Paz

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
                               deixa passar a Vida!


(Natália Correia nasceu a 13 de Setembro de 1923)

segunda-feira, setembro 12, 2011

Rosa Desfolhada

Quero voar.
Quero sair de mim.
Quero não me preocupar
Com o mundo que me cerca.

Quero ter coragem.
Coragem de rasgar.
De quebrar.
De reiniciar.
De encher de vozes o vazio.
De dobrar em laços as recordações.

Quero derrubar as sombras.
Do profano ao sagrado,
Santificar o profano!

Quero não me preocupar
Com a vida.
Quero amanhã
Sonhar como hoje.
Quero não fazer o que é preciso.

Quero apenas voar.
Como as borboletas.
Como uma rosa,
Desfolhada,
Com pétalas voando,
Voando - com a força
Do meu querer,
Pequeno beija-flor!


(poetisa sul-mato-grossense nascida a 12 de Setembro de 1950)

domingo, setembro 11, 2011

O Palácio da Ventura

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busca anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!


(Antero de Quental faleceu a 11 de Setembro de 1891)

sábado, setembro 10, 2011

Um instante

Aqui me tenho
Como não me conheço
            nem me quis

sem começo
nem fim

          aqui me tenho
          sem mim

nada lembro
nem sei

à luz presente
sou apenas um bicho
        transparente


(poeta maranhense nascido a 10 de Setembro de 1930)

sexta-feira, setembro 09, 2011

PARADOXO

Se encontrares alguém no teu caminho,
Que do teu pranto menoscabe, rindo,
Que te ouvindo gemer, teus ais ouvindo,
Quebre na face o rictus do escarninho;

Se encontrares alguém que, descobrindo
No recesso da tua alma íntimo espinho,
Em vez de dar-te fraternal carinho,
Aprofunde-te a dor que estás sentindo;

Não te zangues com ele, não te zangues
O desgraçado riso que lhe vires;
Toca-lhe o peito - poreja sangue;

Toca-o: verás que fementidos modos!
Sonda-o: verás, por tudo que lhe ouvires
Que ele é mais desgraçado que nós todos.


(poeta alagoano falecido a 9 de Setembro de 1909

quinta-feira, setembro 08, 2011

Quando Assassinam as Crianças

Flameja, olho feroz, um sol de brasa.
Voa no céu lúgubre coorte
De asas negras de aviões lançando a morte.
Troa e atroa a metralha e tudo arrasa.

Dir-se-ia que Satã, no roçar da asa,
Semeara o mal e o horror, de sul a norte.
A terra é tinta de um vermelho forte,
Sangue que mil veias extravasa.

Vozes pedem socorro, desvairadas.
Pernas sangrentas... carnes laceradas...
Trágicos trismos de mil bocas tortas...

E a sirene gargalha, em voz tremenda,
Ogre mau e fatídico de lenda, -
Vendo as feridas de crianças mortas...


(poeta baiano nascido a 8 de Setembro de 1912)

quarta-feira, setembro 07, 2011

CAUSA COM SEQÜENCIA

O que intriga
é o musgo na palavra
o cárcere nas rugas
o triunfo do costume
e a carne no enigma.

O que reprime
é o músculo das horas
o ácido nos olhos
e o escuro gemido
de um labirinto em vime.

O que massacra
é o ofício das algemas
o leme das espadas
e a hipocrisia lúdica
de uma música sacra.

O que dói
não é a cinza de um riso
mas o conflito insolúvel 
entre abismo e paraíso.


(poeta goiano nascido a 7 de Setembro de 1964)

terça-feira, setembro 06, 2011

Cabra-Cega

À volta de incerto fogo
Brincaram as minhas mãos.
... E foi a vida o seu jogo!

Julguei possuir estrelas
Só por vê-las.
Ai! Como estrelas andaram
Misteriosas e distantes
As almas que me encantaram
Por instantes!

Em ritmo discreto, brando,
Fui brincando, fui brincando
Com o amor, com a vaidade...

- E a que sentimentos vãos
Fiquei devendo talvez
A minha felicidade!


(poeta portuense nascido a 6 de Setembro de 1904)

segunda-feira, setembro 05, 2011

Esta é a Cidade

Esta é a cidade. Quem caminha
sorvendo seus odores coloridos?

Caleidóscopicos sons
inebriam os músculos
como doces agulhas

Quem sente o calor do chão
luz de vidro e água
intensa e rumorosa como
um afago?

As crianças percorrem a cidade
atrás do tiroteiro
como aves barulhentas. A rota
desta guerra
elas sempre a conheceram

Há uma farra em cada esquina
onde tambores renovados
fazem explodir toda alegria antiga

A liberdade é uma visível linha
de fogo nos olhos dos homens.


(poeta angolano nascido em 5 de Setembro de 1955)

domingo, setembro 04, 2011

Guio-me

Guio-me
Por teus olhos abertos
Sobre a trémula e ardente
Superfície das lágrimas.

De tantas coisas
É feito o Mundo!

Entre escombros, espigas, dias e noites
Procuram os homens ansiosamente
O ramo de louro.

Quando, fatigados,
Próximos estão do limiar, do pórtico,
Os homens deixam, à entrada,
Suas mais queridas coisas.

E ei-los que apenas se incomodam,
E se interrogam,
Sobre o modo mais simples
De se despir e adormecer.


(poeta alvitense nascido 4 a de Setembro de 1920)

sábado, setembro 03, 2011

Mutilado Capilar

Os barbeiros me humilham cobrando meia tarifa.

Faz vinte anos que o espelho delatou os primeiros clarões debaixo da melena frondosa.

Hoje o luminoso reflexo de minha calva em vitrines e janelas e janelinhas me provoca estremecimento e horror.

Cada fio de cabelo que perco, cada um dos últimos cabelos, é um companheiro que tomba, e antes de tombar teve nome ou pelo menos número.

A frase de um amigo piedoso me consola:

- Se o cabelo fosse importante, estaria dentro da cabeça, e não fora.

Também me consolo comprovando que em todos esses anos caíram muitos de meus cabelos mas nenhuma de minhas ideias, o que acaba sendo uma alegria, quando a gente pensa em todos os arrependidos que andam por aí.


(escrito uruguaio, nascido a 3 de Setembro de 1940)

sexta-feira, setembro 02, 2011

Os buracos do espelho

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí

pro lado de cá não tem acesso
mesmo que me chamem pelo nome
mesmo que admitam meu regresso
toda vez que eu vou a porta some

a janela some na parede
a palavra de água se dissolve
na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve

já tentei dormir a noite inteira
quatro, cinco, seis da madrugada
vou ficar ali nessa cadeira
uma orelha alerta, outra ligada

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora


(poeta paulista nascido a 2 de Setembro de 1960)

quinta-feira, setembro 01, 2011

Ontem foi amanhã

Ontem foi amanhã
e já será hoje
quando eu caminhar
para trás,
no rumo do que deixei
e do que me largou.
No brilho da lembrança
de uma imagem qualquer,
a saudade de certo instante:
casas, ruas e ladeiras
escapam com o tempo,
que as cobre de pó.

Cada dia repete o anterior
de forma diferente;
irrepetível, toda hora
repete outras horas.
Do berço ao túmulo,
apenas o rio interminável
e o banho em suas águas
mesmas, conquanto mutantes.

A memória não imita
a cidade construída:
inventa a cidade mítica
e a funda novamente,
pedra sobre pedra,
sonho sobre sonho.

José Nêumanne Pinto

(poeta paraibense)