quarta-feira, agosto 03, 2011

Génesis

O mundo existe desde que eu fui nado.
Tudo o mais é um... era uma vez
- A história que se contou.

No princípio criou-se o leite que mamei
E eu vi que era bom e chorei
Quando a fonte materna secou.

A terra era sem forma
E vazia;
Havia trevas no abismo.

E formou-se o chão
E amassou-se o pão
Que eu comi.
(Era este aquela esponja que eu mordia,
Que eu babava,
Que eu sujava,
Que uma gente andrajosa pedia).

E então se fez
a geração remota dos papões:
Nascera a esmola, o medo, a prece
E o rosto que empalidece...
E a rosa criou-se,
Desejada,
E logo o espinho,
A lágrima,
O sangue.
Este era vermelho e doce,
A lágrima doce, brilhante, salgada;
No espinho havia o gosto
Da vingança perfumada.

E eu vi que tudo era bom.

E fizeram-se os luminares
Porque eu tinha olhos,
E o som fez-se de cantares
E de gemidos,
Porque eu tinha ouvidos.
Nasceram as águas
E os peixes das águas
E alguns seres viventes da terra
E as aves dos céus.
O homem que então era vagamente feito,
Dominou o homem, comprimiu-lhe o peito,
E fizeram-se as mágoas
E o adeus.

E eu vi que tudo era bom.

A mulher só mais tarde se fez:
Foi duma vez
Em que eu e ela nos somámos
e ficámos três.

Nisto e no mais se gastaram
Sete longuíssimos dias.

O mundo era feito
E embora por tudo e por nada imperfeito,
Eu vi que era bom.

Acaba o mundo
Quando eu morrer.
Sim... será o fim!:
Também tu deixas de existir,
No mesmo dia.

E o resto que se seguir
É profecia.


(poeta português falecido em 3 de Agosto de 1939)

1 comentário:

Sofá Amarelo disse...

Profecias é muitas vezes aquilo que constrói o nosso dia a dia...