Meus olhos
Os caminhos estão fechados
Há uma corda atando mundos
um cão fuçando a sombra
um porco na oquidão
Sou o soco nas costas do retardado
a órfã de castigo
o cego que aleijaram
pra completar o escuro
Sou a vampira que dá de mamar
o chiclete no cabelo da professora
o pirulito sobre o qual mijaram
Sou a raquete arrebentada
o omelete que não deu certo
o homem que se afogou no Canal da Mancha
Meus olhos se espalham
sobre a tua cara
(poeta paulista nascido a 24 de Agosto de 1967)
Silêncio
De pedra ser.
Da pedra ter
o duro desejo de durar.
Passem as legiões
com seus ossos expostos.
Chorem os velhos
com casacos de naftalina.
A nave branca chega ao porto
e tinge de vinho o azul do mar.
O maciço de rocha,
de costas para a cidade
sete vezes destruída,
celebra o silêncio.
A pedra cala
o que nela dói.
(poeta mineiro nascido a 24 de Agosto de 1955)
terça-feira, agosto 23, 2011
A PAZ
A alva pomba da paz voou aos céus serenos.
Embaixo homens se agitavam
entre gritos e tiros.
Paquidermes mecânicos
sulcavam fossos
rasgando trincheiras.
Cansada de librar-se nas alturas
a pomba da paz
buscou na terra um pouso
e flechou
num vôo reto
rumo a uma coisa imóvel
hirta e muda no raso campo verde.
E pousou
calma e triste
sobre as mãos cruzadas de um cadáver.
(poeta paulista falecido a 23 de Agosto de 1988)
segunda-feira, agosto 22, 2011
A semente possível
tenho a luz na algibeira
e restos de um país em construção.
na areia as estrelas morrem cegas
enquanto desenho sonhos
na infância longínqua.
há sempre uma fala de búzios
possível na linha de água
com os peixes e os segredos das escamas
em conciliábulos de sombras
onde um feixe de luz sussurra
a nítida claridade.
José Nascimento Félix
(poeta natural de Angola residente em Portugal)
domingo, agosto 21, 2011
sábado, agosto 20, 2011
EUPOEMA
O lugar onde eu nasci nasceu-me
num interstício de marfim,
entre a clareza do início
e a celeuma do fim.
Eu jamais soube ler: meu olhar
de errata apenas deslinda as feias
fauces dos grifos e se refrata:
onde se lê leia-se.
Eu não sou quem escreve,
mas sim o que escrevo:
Algures Alguém
são ecos do enlevo.
(poeta paulista nascido a 20 de Agosto de 1927)
sexta-feira, agosto 19, 2011
quinta-feira, agosto 18, 2011
quarta-feira, agosto 17, 2011
terça-feira, agosto 16, 2011
segunda-feira, agosto 15, 2011
Verso Vão
Onda de sol, verso de ouro,
perífrase vã. Extasiar-me,
antes, por esta fusão,
mistura de brilhos. Ou, ainda
mais íntima, a consciência
extensa como o céu, o corpo de tudo,
semelhança absoluta. Respirar
na quebra da onda. Na água,
uma braçada lenta
até ao limite de mim.
(Fiama Hasse Pais Brandão nasceu a 15 de Agosto de 1938)
domingo, agosto 14, 2011
Condição humana
Como captar da vida
o que rápido, foge
entre dúvidas? Como
reter o que, mal surge,
já se desfaz: é sombra,
algo vago, já neutro,
réstia pálida, eco
de nada, de ninguém?
Um minuto se esboça,
rútilo se sonha,
ardente se anuncia.
Onde? Quando? Quem sabe?
Sempre se sabe tarde,
sem mais onde, nem quando.
(poeta mineiro nascido a 14 de Agosto de 1902)
sexta-feira, agosto 12, 2011
Da Realidade
Que renda fez a tarde no jardim,
Que há cedros que parecem de enxoval?
Como é difícil ver o natural
Quando a hora não quer!
Ah! não digas que não ao que os teus olhos
Colham nos dias de irrealidade.
Tudo então é verdade,
Toda a rama parece
Um tecido que tece
A eternidade.
(Miguel Torga nasceu a 12 de Agosto de 1907)
Grito
Não. Não irei sem grito.
Minha voz nesse dia subirá.
E eu me erguerei também.
Solitária.
Definida.
As portas adormecidas abrirão
passagem para o mundo.
Meus sonhos, meus fantasmas,
meus exércitos derrotados,
sacudirão o exército de convenção
e as máscaras de piedade compungida.
Dispensarei as rosas, as violetas,
os absurdos véus sobre meu rosto.
Serei eu mesma.
Estarei inteira sobre a mesa.
As mãos vazias e crispadas,
os olhos acordados,
a boca vincada
de amargor.
Não. Não irei sem grito.
Abram as portas adormecidas,
levantem as cortinas,
abaixem as vozes
e as máscaras -
que eu vou sair inteira.
Eu mesma. Solitária,
Definida.
(poetisa brasileira nascida a 12 de Agosto e 1905)
quinta-feira, agosto 11, 2011
centauro de areia
No abraço do tempo
o metamórfico
centauro de areia cruza o mar
na messe dos teus olhos
há rumores de cão e gato
metade é meu mundo de som e silêncio,
não os de Ovídio. trôpego centauro
nada a temer
cidade vazia, labirinto secular
dedo na cara, asas de mosca
poeira, pó,
estrada.
José Leite Netto
(poeta cearense)
quarta-feira, agosto 10, 2011
terça-feira, agosto 09, 2011
Lembra-te
Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos
(Mário Cesariny de Vasconcelos nasceu a 9 de Agosto de 1923)
segunda-feira, agosto 08, 2011
domingo, agosto 07, 2011
Centenário
Testamento Aberto
Só para ver curar minhas pernas partidas
Nas dores eternas
Dos saltos gorados,
Eu amo a aparente inconsciência dos loucos,
Embora fique aos poucos nos meus saltos
Desabridos e falhados.
Apraz-me, no espelho, esta face esmagada,
à força de querer transpor o além
Da minha porta fechada...
Porém,
Seja o que for, que seja,
Se uma CERTEZA alcanço
E uma mulher me beija.
Que importa
Que eu fique molemente olhando a minha porta
Aberta,
Ou que eu parta e a morte me espreite
Num desfiladeiro?...
E quem virá chorar e quem virá,
Se a morte que vier for a de lá
Certeira e minha...
E merecida como um sono que se dorme
Após a noite perdida?...
E que piedade anda a escrever um frágil,
Na embalegem dos ossos
Que trago emprestados...
Que deixarei ficar ao sol e à chuva
E que serão limados
No entulho dos calhaus que também foram rocha?...
Para quê, se mil vezes provoco
Os tombos do chegar e do partir?!
- A minha fragilidade
Foi-me dada
Para me servir.
(poeta português nascido a 7 de Agosto de 1911)
sábado, agosto 06, 2011
sexta-feira, agosto 05, 2011
ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE
a história da humanidade
é a prova da insanidade
a que estamos submetidos
- sem deus, sem destino
bilhões de seres calcinados
reciclando a pervers(idade)
readubando rancores, sortilégios
agourentos, malfadados
a história não tem ciclos
nem fases, mas camadas
- ossários, escombros
matéria em decomposição
recompor os mortos
putrefactos, liquefeitos
de olhos arregalados
sem a noção de tempo
anjos sem asas, desfeitos
como poeira, atritando-se
desviando-se no espaço
de um tempo estagnado:
tempo sem cronologia
espaço de materialidade
transformável e errante
na indissolução do fim
(escritor brasileiro nascido a 5 de Agosto de 1940)
quinta-feira, agosto 04, 2011
Acredite se quiser
O actual Governo começa a parecer-se de mais com uma comissão liquidatária do património do Estado a preços de saldo (e com os contribuintes a financiar os compradores).
A eliminação das "golden shares" a troco de nem um cêntimo não foi outra coisa senão uma escandalosa liberalidade ao capital privado. E não se diga que foi imposição da "troika" pois a "imposição" foi aceite, é bom não esquecê-lo, por PSD, CDS e PS e apesar de Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Irlanda, Grécia, Finlândia, Bélgica e Polónia continuarem a manter "golden shares" em empresas estratégicas (provavelmente terão é governos menos servis).
O BPN será, por sua vez, "vendido" ao BIC com o Estado a suportar os encargos dos despedimentos e ter que nele meter ainda mais 550 milhões, além dos 2,4 mil milhões que já lá estão. Tudo por... 40 milhões.
Seguir-se-ão os transportes, as estruturas aeroportuárias, os Correios, a água... O processo será o mesmo dos transportes: primeiro limpam-se os passivos das empresas à custa dos contribuintes (os aumentos "colossais" das tarifas dos transportes públicos dão uma ideia do que está para vir) depois são entregues de bandeja ao capital privado.
Para isso, o Orçamento Rectificativo agora apresentado na AR prevê 12 mil milhões para a banca mais um aumento de 20 para 35 mil milhões em garantias. Assim não faltarão à banca dinheiro nem garantias do Estado para ir aos saldos do Estado.
Manuel António Pina, in Jornal de Notícias
quarta-feira, agosto 03, 2011
Génesis
O mundo existe desde que eu fui nado.
Tudo o mais é um... era uma vez
- A história que se contou.
No princípio criou-se o leite que mamei
E eu vi que era bom e chorei
Quando a fonte materna secou.
A terra era sem forma
E vazia;
Havia trevas no abismo.
E formou-se o chão
E amassou-se o pão
Que eu comi.
(Era este aquela esponja que eu mordia,
Que eu babava,
Que eu sujava,
Que uma gente andrajosa pedia).
E então se fez
a geração remota dos papões:
Nascera a esmola, o medo, a prece
E o rosto que empalidece...
E a rosa criou-se,
Desejada,
E logo o espinho,
A lágrima,
O sangue.
Este era vermelho e doce,
A lágrima doce, brilhante, salgada;
No espinho havia o gosto
Da vingança perfumada.
E eu vi que tudo era bom.
E fizeram-se os luminares
Porque eu tinha olhos,
E o som fez-se de cantares
E de gemidos,
Porque eu tinha ouvidos.
Nasceram as águas
E os peixes das águas
E alguns seres viventes da terra
E as aves dos céus.
O homem que então era vagamente feito,
Dominou o homem, comprimiu-lhe o peito,
E fizeram-se as mágoas
E o adeus.
E eu vi que tudo era bom.
A mulher só mais tarde se fez:
Foi duma vez
Em que eu e ela nos somámos
e ficámos três.
Nisto e no mais se gastaram
Sete longuíssimos dias.
O mundo era feito
E embora por tudo e por nada imperfeito,
Eu vi que era bom.
Acaba o mundo
Quando eu morrer.
Sim... será o fim!:
Também tu deixas de existir,
No mesmo dia.
E o resto que se seguir
É profecia.
(poeta português falecido em 3 de Agosto de 1939)
terça-feira, agosto 02, 2011
O Parto
Meu corpo está completo, o homem - não o poeta.
Mas eu quero e é necessário
que me sofra e me solidifique em poeta,
que destrua desde já o supérfluo e o ilusório
e me alucine na essência de mim e das coisas,
para depois, feliz e sofrido, mas verdadeiro,
trazer-me à tona do poema
com um grito de alarma e de alarde:
ser poeta é duro e dura
e consome toda
uma existência.
(poeta maranhense, nascido a 2 de Agosto de 1935)
Os Eunucos
Os eunucos devoram-se a si mesmos
Não mudam de uniforme, são venais
E quando os mais são feitos em torresmos
Defendem os tiranos contra os país
Em tudo são verdugos mais ou menos
No jardim dos haréns os principais
E quando os mais são feitos em torresmos
Não matam os tiranos pedem mais
Suportam toda a dor na calmaria
Da olímpica visão dos samurais
Havia um dono a mais na satrapia
Mas foi lançado à cova dos chacais
Em vénias malabares à luz do dia
Lambuzam da saliva os maiorais
E quando os mais são feitos em fatias
Não matam os tiranos pedem mais
(Zeca Afonso nasceu a 2 de Agosto de 1929)
segunda-feira, agosto 01, 2011
Alta Tensão
eu gosto dos venenos mais lentos
dos cafés mais amargos
das bebidas mais fortes
e tenho
apetites vorazes
uns rapazes
que vejo
passar
eu sonho
os delírios mais soltos
e os gestos mais loucos
que há
e sinto
uns desejos vulgares
navegar por uns mares
de lá
você pode me empurrar pro precipício
não me importo com isso
eu adoro voar.
(poetisa e actriz paulista, nascida a 1 de Agosto de 1952)
Z
As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro
e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento
e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços
a tua figura era ao que me lembro da cor do jardim.
(poeta lisboeta nascido a 1 de Agosto de 1928)