terça-feira, janeiro 03, 2012

Nevoeiro 

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer -
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...  

É a Hora! 

Fernando Pessoa

segunda-feira, janeiro 02, 2012

Triângulo kabalístico

Eu sei que as túlipas
são os olhos de todos os aviões perdidos

Eu sei que as cidades
são os esqueletos das aves de rapina

Eu sei que os candeeiros ardendo de noite
são os pulmões dos peixes-voadores

Eu sei que o mistério
é uma dentadura abandonada

Eu sei que a loucura
é um braço solitário sorrindo eternamente

Eu sei que os meus olhos
são as tuas pernas frementes

Eu sei que os teus cabelos
são o meu acendedor de pirilampos

Eu sei que a tua boca
é o meu uivo solar

Eu sei que o teu peito e o teu sexo
são a minha água profundamente azul
onde se encontram todos os fantasmas
já perdidos há séculos.


(Mário-Henrique Leiria nasceu a 2 de Janeiro de 1923)
Sinto medo…

Sinto medo de estar viva
Na tua ausência de noite
Pressinto o tempo pesado
O silêncio implacável
Fragilidade como ser
Como se eu fosse uma bomba
O terror
A certeza de que meu peito explode
Se você não chega hábil
E me desarma a tempo, a contento
E a gente festeja com uma gargalhada !
Você me invade, me embriaga
Eu soluço agradecida
Agarrada no teu peito, respirando teu pescoço
A morte amortecida.
Não dorme agora, faz esse esforço
Beija com fogo esta tua frágil adormecida


(actriz e poetisa carioca nascida a 2 de Janeiro de 1950)

domingo, janeiro 01, 2012

Recomeça….

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…

Miguel Torga

sábado, dezembro 31, 2011

ESPERANÇA

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
- ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
- Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
- O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

Mario Quintana
E para entrar em 2012…

















… a companhia de um Charles Mignon Brut Rosé Cru surripiado à sanha açambarcadora do vitinho da mirra.
Façam o favor de ser felizes

Para os amigos que se têm dado ao trabalho de me visitar 


sexta-feira, dezembro 30, 2011

A mesma voz 28 depois

em 1978

...e em 2006

Patti Smith nasceu a 30 de Dezembro de 1946
O Pai

1
Um pai morto talvez tivesse
Sido um pai melhor. Melhor ainda
É um pai nado-morto.
Volta sempre a crescer erva sobre a fronteira.
Tem de ser arrancada a erva
Sempre sempre a erva que cresce sobre a fronteira.

2
Gostava que o meu pai tivesse sido um tubarão
E despedaçado quarenta pescadores de baleias
(E eu aprendido a nadar no seu sangue)
A minha mãe uma baleia azul o meu nome Lautréamont
Falecido em Paris
Incógnito em 1871


(escritor alemão falecido em 30 de Dezembro de 1995)

Tradução de João Barrento

quinta-feira, dezembro 29, 2011

Centenário

Retrato de Alves Redol

Porém se por alguém não foi ninguém
cantou e disse  flor  canção  amigo
a si o deve. A si e mais a quem
floriu  cresceu  cantou  lutou consigo.

Homem que vive só não vive bem
morto que morre só é negativo
morrer é separar-se de ninguém
e contudo  com todos  ficar vivo.

Nado-vivo da morte. É isso. É isso.
Uma espécie de forno de bigorna
de corpo imorredoiro que transforma
em fusão o metal do compromisso:
Forjar o conteúdo pela forma:
marrar até morrer.  E dar por isso.

Ary dos Santos

(Alves Redol nasceu a 29 de Dezembro de 1911)
O prazo de validade da escola

o prazo de validade da Escola
está fora do Um
entrego-me nas horas a polir as unhas ao Todo

o buraco da fechadura do mundo
está sujo

as empregadas
fecham as portas e marcam faltas
no supermercado onde vivo

escrevo no quadro está calada vânia
sem a metafísica do sujeito além do mais
o teorema de pitágoras foi de certeza roubado
da internet para testar a professora do armazém

deviam todos vestir a mesma bata para não se distinguir
a bélgica da alemanha da espanha e por aí fora
e também o país às terças feiras
quando toda a gente vai fazer compras
ao armazém de george orwell

as refeições continuam a ser repressivas
ninguém sabe o que come "está bem"
mas ficámos uns com os outros
por causa da noção do todo


(Maria Azenha nasceu em Coimbra a 29 de Dezembro de 1945)

quarta-feira, dezembro 28, 2011

URGÊNCIA DE SER

É urgente inventar
Novos atalhos
Acender novos archotes
E descobrir novos horizontes.

É urgente quebrar o silêncio
Abrir fendas ao tempo
E passo a passo
Habitar outras noites
Coalhadas de pirilampos.

É urgente içar novos versos
Escalar novas metáforas
E trazer esperanças
Realçadas pela angústia.

É urgente partir
Sem medo e sem demora
Para onde nascem os sonhos
Buscar novas artes
De esculpir a vida.


(Armando Artur nasceu em Moçambique a 28 de Dezembro de 1962)

terça-feira, dezembro 27, 2011

VOZ

Voz modelada na certeza irreal
da montanha que respira o húmus do vento,
espalha as sementes vegetais do sal,
nos lagos da terra, único alimento!

E os lagos se vestem de ondas que assaltam
a parede lisa deste quarto fechado:
a abóboda celeste que os anjos asfaltam
dum visgo babado...


(escritor amarantino nascido a 27 de Dezembro de 1923)
happy end

o meu amor e eu
nascemos um para o outro

agora só falta quem nos apresente


(poeta brasileiro falecido a 27/12/1987)

segunda-feira, dezembro 26, 2011

A visita do papa (excerto)

Enquanto o papa não chega
Todos  dão a sua achega*
  
POR  EXEMPLO:

As autoridades convencem com os dentes.

Os deputados erguem as nádegas
para lhes serem metidas moedas na ranhura

Os investidores apostam na sementeira
de guardas republicanos.

Os magistrados justificam o uso
da força com a força do uso.

Os militares apoiam a democracia em
geral e o cão-polícia em particular.

Os tecnocratas correm o fecho-éclair
para fazer luz sobre o assunto.

Os psiquiatras metem o dedo no olho do
cliente para lhe aprofundar os desvios.

Os mestres ensinam os cães particulares
a defecar nos passeios públicos.

Os escritores erguem a voz acima de todas para
dizer que todas as vozes se devem fazer ouvir.

Os funcionários públicos zelam por que tudo
o que não é proibido seja obrigatório.

Os sacerdotes encaminham a alma
para o sétimo céu.

Os internados no manicómio recebem
coleiras novas com o número fiscal.

Os jornalistas dão peidos que abalam a
qualidade de vida da cidade.

O povo digere tudo porque tem
dentes até ao cu.

Os polícias de choque referem-se
às conquistas de Abril.

Os anjos da guarda interceptam os
pacotes com as bombas e explodem.

*Em espírito de profunda caridade pelas legítimas aspirações e valores autênticos da humanidade


(escritor portuense nascido a 23 de Dezembro de 1937)

domingo, dezembro 25, 2011

Jogos de sombras 

Sempre que me procuro e não me encontro em mim,
pois há pedaços do meu ser que andam dispersos
nas sombras do jardim,
nos silêncios da noite,
nas músicas do mar,
e sinto os olhos, sob as pálpebras, imersos
nesta serena unção crepuscular
que lhes prolonga o trágico tresnoite
da vigília sem fim,
abro meu coração, como um jardim,
e desfolho a corola dos meus versos,
faz-me lembrar a alma que esteve em mim,
e que, um dia, perdi e vivo a procurar
nos silêncios da noite,
nas sombras do jardim,
na música do mar...


(poeta brasileiro falecido a 25 de Dezembro de 1930)
Natal

Hoje é dia de Natal.
O jornal fala dos pobres
em letras grandes e pretas,
traz versos e historietas
e desenhos bonitinhos,
e traz retratos também
dos bodos, bodos e bodos,
em casa de gente bem.

Hoje é dia de Natal.

- Mas quando será de todos?

Sidónio Muralha