quinta-feira, março 31, 2011

Obviedades para ceguetas


Ontem, um jornalista português credenciado visitou um hospital de Benghazi e entrevistou um médico jovem que estava a tratar um ferido, “rebelde”, como lhe chamou. Interrogando-se sobre a possibilidade de os bombardeamentos da NATO fazerem feridos entre os civis perguntou ao médico se tinha recebido muito civis, ao que aquele respondeu: nenhum.

Ficou-se por aí a notícia, incutindo no telespectador uma quase certeza de que a NATO não faz vítimas entre os civis. O que ficou por questionar foi se os bombardeamentos não matarão civis na Líbia, de um modo tão certeiro que não fica ninguém para contar. Pelas experiências da Sérvia/Montenegro, do Afeganistão e do Paquistão e pelo medo espelhado no rosto de um outro jornalista que estava em Tripoli quando os bombardeamentos “humanitários” começaram, não restarão grandes dúvidas de que o morticínio será elevado. Ou será que no autocarro da imagem apenas viajavam militares do regime?

We Don't Need Another Hero


Out of the ruins
Out from the wreckage
Can't make the same mistake this time
We are the children
the last generation
We are the ones they left behind
And I wonder when we are ever gonna change it
Living under the fear till nothing else remains

We don't need another hero
We don't need to know the way home
All we want is life beyond
the thunderdome

Looking for something
we can rely on
There's got to be something better out there
Love and compassion,
their day is coming
All else are castles built in the air
And I wonder when we are ever gonna change it
Living under the fear till nothing else remains

All the children say
We don't need another hero
We don't need to know the way home
All we want is life beyond
the thunderdome

So, what do we do with our lives
We leave only a mark
Will our story shine like a light
Or end in the dark
Give it all or nothing

We don't need another hero
We don't need to know the way home
All we want is life beyond
 the thunderdome

Movimento

Se tu és a égua de âmbar
                  eu sou o caminho de sangue
Se tu és o primeiro nevão
                  eu sou quem acende a fogueira da madrugada
Se tu és a torre da noite
                  eu sou o cravo ardendo em tua fronte
Se tu és a maré matutina
                  eu sou o grito do primeiro pássaro
Se tu és a cesta de laranjas
                  eu sou o punhal de sol
Se tu és o altar de pedra
                  eu sou a mão sacrílega
Se tu és a terra deitada
                  eu sou a cana verde
Se tu és o salto do vento
                  eu sou o fogo oculto
Se tu és a boca da água
                  eu sou a boca do musgo
Se tu és o bosque das nuvens
                  eu sou o machado que as corta
Se tu és a cidade profunda
                  eu sou a chuva da consagração
Se tu és a montanha amarela
                  eu sou os braços vermelhos do líquen
Se tu és o sol que se levanta
                  eu sou o caminho de sangue

Octavio Paz – tradução de Luís Pignatelli

(poeta mexicano e Nobel de Literatura, nascido a 31 de Março de 1914)

quarta-feira, março 30, 2011


Em seu enterro… 
(poema dedicado a Carlos Marighela)

Em seu enterro não havia velas:
Como acendê-las, sem a luz do dia?

Em seu enterro não havia flores:
Onde colhê-las, nessa manha fria?

Em seu enterro não havia povo:
Como encontrá-lo, nessa rua vazia?

Em seu enterro não havia gestos:
Parada inerte a minha mão jazia.

Em seu enterro não havia vozes:
Sob censura estavam as salmodias.

Mas luz, e flor, e povo, e canto
responderão “presente”, chegada
a primavera mesmo que tardia!

Ana Montenegro, Berlim, Outono de 1969

(poetisa brasileira e lutadora contra a ditadura, falecida a 30 de Março de 2006)

terça-feira, março 29, 2011

Diz o Obama


Letra e música de Fernando Tordo

(O Fernando completa hoje 63 anos)

O TERRAMOTO

[a uma pessoa intemporal]

querida joana, o terramoto apanhou pessoas que faziam amor,
pessoas que morriam de uma causa lenta e dolorosa,
pessoas que celebravam contratos com apertos de mão,
pessoas com instrumentos na terra fértil,
pessoas que faziam de conta, pessoas sem relógio.
os que faziam amor perpetuaram-no, os que morriam
viram a sua morte impedida por uma colectiva e mais bem aceite,
os que celebravam contratos perderam as mãos coladas,
os que trabalhavam na terra fértil foram soterrados,
os que faziam de conta procuraram cumprir uma promessa,
os que não tinham relógio escaparam ao tempo.
meu amor, sermos egoístas é tentar impedir que as coisas mudem,
sermos intensos é não respeitar causas e efeitos,
espero-te no meu futuro, ainda que ele não seja
o efeito directo de um presente que ainda treme muito.


(poeta algarvio nascido a 29 de Março de 1982)

segunda-feira, março 28, 2011


Canción Última

Pintada, no vacía:
pintada está mi casa
del color de las grandes
pasiones y desgracias.

Regresará del llanto
adonde fue llevada
con su desierta mesa,
con su ruinosa cama.

Florecerán los besos
sobre las almohadas.

Y en torno de los cuerpos
elevará la sábana
su intensa enredadera
nocturna, perfumada.

El odio se amortigua
detrás de la ventana.

Será la garra suave.

Dejadme la esperanza.

Pintada, no vacía:
pintada está mi casa.


(poeta e revolucionário espanhol falecido nas masmorras do franquismo a 28 de Março de 1942)

Canta Joan Manuel Serrat

domingo, março 27, 2011


O mundo

Quando um dia eu for embora do teu mundo
deixo-te o nome e alguns versos. Poucos
que a musa é escassa e o verbo lasso
mas mesmo assim. Deixo-te um beijo
uma saudade e um carinho
e de caminho a memória dos teus dias.
Dou-te um abraço digo-te adeus
deixo um retrato um gesto breve
e espero que fique algo mais. Talvez
me apague como um fósforo no vento
no dia em que eu me for deste meu mundo.


(poeta ilhavense nascido a 27 de Março de 1958)

Poema retirado daqui

sábado, março 26, 2011

 A voz e o vento

com palavras faço a voz
e o vento
de que viajam e são

insistente desejo a lucilar
sobre a pele morna
de girassóis filtrando
teu rosto
seios
paisagem nua de ventre
com palavras a voz do que faço

estes dias infensos
a pendor de gume


(poeta moçambicano nascido a 26 de Março de 1953)

sexta-feira, março 25, 2011


Dentro de ti

Dentro de ti
neblinas se rasgaram
como compreensões
geradas
de catástrofes -
como as pálidas tiras de luz
que após os ventos
em síncope - se
deixam às praias
pelo olhar líquido e amainado,
transmudando
o que tardiamente
rolaram como inútil.


(poeta brasileiro nascido a 25 de Março de 1908)

quinta-feira, março 24, 2011


Confissão silenciosa 

Amo os crepúsculos cinzentos
Caindo sobre as águas estagnadas . . .
Os pinheiros sonolentos
Humanizando a calma das estradas . . .
O infinito, as estrelas longínquas,
O poema que há na dor silenciosa
Dos que querem falar e que se calam:
Amo os teus olhos, amor dos outros,
Porque os teus olhos nunca falam!


(poeta pernambucano nascido a 24 de Março de 1989)

Filme americano

Seis civis líbios são metralhados por um helicóptero dos EUA nas proximidades de Benghazi; uma das vítimas corre o risco de ter a perna amputada. O helicóptero em voos rasantes busca resgatar dois tripulantes do caça F-15 Strike Eagle que caiu em circunstâncias não esclarecidas na noite da segunda-feira. O F-15E realizava bombardeios na cidade de Benghazi, supostamente um reduto de opositores de Kadafi. Um dos feridos, ouvido no hospital, afirma que os civis estavam comemorando a ação internacional quando os americanos abriram fogo... (Carta Maior, com informações Al-Jazira/ Channel 4 News). Fundo sonoro da cena: o discurso de Obama no Chile, nesta 3º feira, quando afirmou: “Nossa ação militar...tem como foco a ameaça humana que Khadafi está impondo a seu povo. Ele não apenas está assassinando os civis, mas também ameaçando fazer muito mais”. Corta e volta para a cena do helicóptero, agora sem som. Closes alternados nos rostos dos americanos acionando as metralhadoras e nos dos líbios, que festejavam as forças estrangeiras. Há horror cinematográfico dos dois lados. Mas as balas são de verdade.

Carta Maior, 23/03/2011

quarta-feira, março 23, 2011

Meditação Sobre os Poderes

Rubricavam os decretos, as folhas tristes
sobre a mesa dos seus poderes efémeros.
Queriam ser reis, czares, tantas coisas,
e rodeavam-se de pequenos corvos,
palradores e reverentes, dos que repetem:
és grande, ninguém te iguala, ninguém.
Repartiam entre si os tesouros e as dádivas,
murmurando forjadas confidências,
não amando ninguém, nada respeitando.
Encantavam-se com o eco liquefeito
das suas vozes comandando, decretando.
Banqueteavam-se com a pequenez
de tudo quanto julgavam ser grande,
com os quadros, com o fulgor novo-rico
das vénias e dos protocolos. Vinha a morte
e mostrava-lhes como tudo é fugaz
quando, humanamente, se está de passagem,
corpo em trânsito para lado nenhum.
Acabaram sempre a chorar sobre a miséria
dos seus títulos afundados na terra lamacenta.

José Jorge Letria
In memoriam

Morreu uma grande Senhora

Heráclito, o Obscuro  

A pedra se move menos que a planta.
A planta se move menos que o réptil, movendo-se sobre a
pedra.  

O réptil se move menos que o leopardo, na espessura da
floresta.  

O leopardo se move menos que o homem, faminto de
mundo e espaço.  

Todo ser, ao mover-se, exprime o seu desassossego: arco
tendido na direção do vir-a-ser.  

A pedra tem mais sossego que a planta.
A planta tem mais repouso que o réptil.
O réptil é mais sonolento que o leopardo.
O homem, este é pura insônia - trabalho futuro, vôo e flecha.


(Hélio Pellegrino faleceu a 23 de Março de 1988)

terça-feira, março 22, 2011





Lição sobre a Água

Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, ácidos, base e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.

António Gedeão

De Profundis

…E silenciosamente
morri, de morte humilde, humildemente,
numa longínqua torre,
num triste anoitecer…
………………………
Não é quando se acaba que se morre;
é quando acaba o gosto de viver.


(poetisa portuguesa, falecida a 22 de Março de 1945)

segunda-feira, março 21, 2011



Liberdade

O poema é
A liberdade

Um poema não se programa
Porém a disciplina
- Sílaba por sílaba -
O acompanha

Sílaba por sílaba
O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos

Sophia de Mello Breyner Andresen

Estampido

a bala 
em sua 
trajetória 
escreve 
a palavra 
morte 
  
quando 
disparo 
é certeiro

quando 
não 
é pura 
sorte


(poeta gaúcho nascido a 21 de Março de 1957)