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domingo, junho 30, 2013

O essencial é ter o vento

O essencial é ter o vento.
Compra-o; compra-o depressa,
A qualquer preço.
Dá por ele um princípio, uma ideia,
Uma dúzia ou mesmo dúzia e meia
Dos teus melhores amigos, mas compra-o.
Outros, menos sagazes
E mais convencionais,
Te dirão que o preciso, o urgente,
É ser o jogador mais influente
Dum trust de petróleo ou de carvão.
Eu não:
O essencial é ter o vento.
E agora que o Outono se insinua
No cadáver das folhas
Que atapeta a rua
E o grande vento afina a voz
Para requiem do Verão,
A baixa é certa.
Compra-o; mas compra-o todo,
De modo
Que não fique sopro ou brisa
Nas mãos de um concorrente
Incompetente.


(poeta português falecido em Lourenço Marques faz hoje 54 anos)

sábado, junho 29, 2013

Os Pequenos Varredores

Pela escura avenida arborizada,
ninguém. Lá para cima,
escuta-se um rumor que se aproxima,
nuvens rolando pelo chão, mais nada...

Depois, enche-se a noite de pavores,
há risos, pragas, uivos;
dançam, ao longe, contra o vento, ruivos
de poeira, pequeninos varredores.

De ombros estreitos e de faces cavas,
lutam com seus destinos,
nas horas em que todos os meninos
dormem e sonham com princesas flavas.

Há, entre eles, alguns que são precoces,
fumam e bebem. Vários,
transitam para a noite dos ossários,
têm o pulmão comido pelas tosses.

Arrastando o esqualor destas sarjetas,
dirão, olhos em brasa,
que é melhor acabar na Santa Casa
do que viver assim, como grilhetas.

E lá se vão. A nuvem se adelgaça;
um senhor, na alameda
sem luz, toma do lenço, que é de seda,
tapa o nariz, inclina a fronte, e passa...


(escritor paulista nascido a 29 de Junho de 1890)

sexta-feira, junho 28, 2013

Tempos-juncos

Na margem do lago,
Onde as pedras são tempo,
Onde o tempo é de pedra.
No lago da margem,
Tempos, juncos,
Na margem do lago,
Santos, juntos.


(poeta russo falecido faz hoje 91 anos)

(Tradução: Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)

quinta-feira, junho 27, 2013

Turbulência

O vento experimenta
o que irá fazer
com sua liberdade..


(escritor brasileiro nascido faz hoje 105 anos)

quarta-feira, junho 26, 2013

Percurso

Da minha íntima saliva retive líquido
o sangue
impedindo que ele se perdesse por escamas esquecidas
Cavalguei por entre mares incertos
os golfinhos memoráveis
desatento a tudo excepto
no recensear o recife para marcar o amargo
Por porto seguro tenho deuses
reinventei as palavras
Onde desembarquei trabalhei o baldio
escavei o sulco desenhei as leiras
cá e lá sacrificando limite após limite
Ó Esperança a química humilde
da tua amarga estaca


(Aimé Césaire nasceu faz hoje 100 anos)

terça-feira, junho 25, 2013

La plus que lente

O silêncio ligava
as cadeiras de um lado
com as cadeiras do outro.
As velas sufocavam em agonia
e a noite era maior no calendário imóvel.
Entre o ser e o não ser
erguia-se a memória,
e os sonhos passeavam
entre o jarro e o consolo.
E sobre a mesa familiar,
onde a face da ausente não se apaga,
os pés da morta
vivos como peixes.


(poeta paraense nascido faz hoje 93 anos)

segunda-feira, junho 24, 2013

Eurídice

Temos um só corpo
singular, solitário
a alma teve que baste
ali dentro fechada
caixa com olhos e orelhas
do tamanho de um botão
e a pele – costura após costura -
cobrindo a estrutura óssea

sai da córnea voando
para o cálice celeste
para o gelado raio
da roda voadora das aves
e escuta pelas grades
da sua cela viva
o crepitar do bosque e da seara
e a trombeta dos sete mares

corpo sem alma é pecado
é um corpo sem camisa
nada feito sem intenção
sem inspiração, nenhuma linha
insolúvel charada:
quem no fim irá voltar
à pista de dança quando
ninguém houver para dançar?

sonhei com uma alma outra
de um modo outro vestida:
ardia na fuga
da timidez à esperança
espirituosa e límpida
como o fogo habita a terra
sobre a mesa pondo lilases
para que lembrada seja

corre, criança, não pares
pela pobre Eurídice
rola o arco e a gancheta
no mundo roda
até subires uma oitava
no tom alegre, e calma
porque a cada passo a terra
faz soar guizos nos teus ouvidos


(poeta russo nascido a 24 de Junho de 1907)

domingo, junho 23, 2013

O Poeta

Debruçado no poço
salmodia
e a própria voz escuta.

Osso.
atirado a si mesmo
(espelho)
por um cão faminto.


(poeta paraense que hoje faz 74 anos)

sábado, junho 22, 2013

Vigília

E nunca nunca mais poder
falar a taça, o casco, a coisa
que partiu o vidro, inútil
peso das imagens de ontem.

Nenhuma destruição de linho
poderá dizer a cor da rosa
que esmaga na pupila fechada
o triunfo da luz de um clarim.

Nunca mais isto poder dizer,
não poder dizer pelo avesso
a ternura da pele clara,

os lábios, os sulcos, o beijo, o ventre,
os corpos ao assalto; e depois
não poder nunca repetir!


(poeta catalão que hoje faz 68 anos

Tradução de Egito Gonçalves

sexta-feira, junho 21, 2013

Espelho de mulher

Atravessa
o outro lado
sem príncipe,
nem consorte.
Apreende
a vida,
luta, briga,
e a devolve
sem suporte.
É nascente
refletida
de dores,
amores
e glórias.
Amadurecida,
pura-mente
sorridente,
que com
ou sem sorte,
aprendeu
por si só ser
mais forte.


(poetisa carioca que hoje faz 50 anos)

quinta-feira, junho 20, 2013

Andrew Bird – A Nervous Tic Motion of the Head to the Left
A fera

Das cavernas do sono das palavras, dentre
os lábios confortáveis de um poema lido
e já sabido
voltas

para ela - para a terra
maleável e amante. Dela
de novo te aproximas

e de novo a enlaças firme sobre o lago
do diálogo, moldas
                              novo destino

Firme penetra e cresce a aproximação conjunta
E ocupa um centro: A morte, a fera
da vida
te lambendo

Max Martins    

(poeta paraense nascido faz hoje 87 anos)

quarta-feira, junho 19, 2013

Castração

Com suas iníquas
máquinas de tédio
aprende o degredo
com seus chãos reversos

- com suas escumas
de vinagre e pasmo
celebra os opróbrios
com seu desamparo

- com suas sezões
de pejo e salsugem
arqueja os verões
com seus gozos rudes

- com suas ilhargas
de fuligem e asco
deslembra as novilhas
com seus curvos favos

- com suas obesas
barbelas de adorno
ostenta a vergonha
com seu grão roncolho


(poeta mineiro nascido faz hoje 85 anos)

terça-feira, junho 18, 2013

Fala do velho do restelo ao astronauta

Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.


(José Saramago faleceu faz hoje 3 anos)

segunda-feira, junho 17, 2013

Imagine Dragons - Demons
acordar, mexer nos búzios, elucidar

acordar, mexer nos búzios, elucidar
o coração: são as mais dóceis
tarefas.
andamos enganados nestas portas
de veludo, ou nos velhos tapetes
das ombreiras.
quando dormes, há um búzio que mexe
no teu coração.



(poeta viseense que hoje faz 69 anos)

domingo, junho 16, 2013

Praia do Esquecimento

Fujo da sombra; cerro os olhos: não há nada.
A minha vida nem consente
rumor de gente
na praia desolada.

Apenas decisão de esquecimento:
mas só neste momento eu a descubro
como a um fruto rubro
de que, sem já sabê-lo, me sustento.

E do Sol amarelo que há no céu
somente sei que me queimou a pele.
Juro: nem dei por ele
quando nasceu.



(David Mourão-Ferreira faleceu faz hoje 17 anos)

sábado, junho 15, 2013

A SOMBRA SOU EU

A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei o dó que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e que não me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!



(Almada Negreiros faleceu faz hoje 43 anos)

sexta-feira, junho 14, 2013

Carência

Reclamo da carência
dos meus bichos,
dos meus amigos
e da minha mulher.

Na verdade a carência é minha.
Ainda bem que eles não notam.



(poeta carioca que hoje faz 43 anos)

quinta-feira, junho 13, 2013

Auto do Circo

Era mouco, mouco, mouco.
Sabia sem perceber
Muito pouco, pouco, pouco
Do pouco que há que saber.

E por isso, isso, isso
Sabia isso de cor,
Porque é nisso, nisso, nisso
Que está o saber sem dor.

E assim indo, indo, indo,
Chegou a ministro ao fim,
Porque é lindo, lindo, lindo
O ter um saber assim.

Pim!



(Fernando Pessoa nasceu faz hoje 125 anos)
Vestígios

noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras

hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se

onde se pode - num vocabulário reduzido e
obsessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir

apesar de tudo
continuamos a repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial



(Al Berto faleceu faz hoje 16 anos)

quarta-feira, junho 12, 2013

Poeta exclusivo do amor

«Poeta exclusivo do amor»
me chamaram. E era talvez certo.
Mas o vento aqui sobre a erva e os rumores
da cidade longínqua
não são eles também amor?
Sob nuvens quentes
não são ainda o som
de um amor que arde
e não mais se afasta?


(poeta italiano nascido faz hoje 107 anos)


Tradução de David Mourão-Ferreira

terça-feira, junho 11, 2013

O ESPELHO

do outro lado um estranho
faz simulações como se fosse
um demônio familiar
é sempre noite, um assassino sonha
com mulheres assassinadas em série
sob as palmeiras de Malibu
o mundo é só uma ficção plausível
a imagem que baila ao rés-da-lâmina
é um último e improvável vestígio
da existência de Deus
o resto são ecos de outras faces
gestos de espanto e despedida
a música dos relógios, a morte



(poeta mineiro que hoje faz 61 anos)

segunda-feira, junho 10, 2013

Confessionário

Não posso dar-me em espetáculo.
A platéia toda fugiria
antes mesmo do segundo ato.
Um ator perplexo misturaria
versos, versões e fatos.
E um crítico, maldizendo a sua sina,
rosnaria feroz
contra minha verve
sibilina.



(poeta carioca que hoje faz 62 anos)

domingo, junho 09, 2013

Cala-te

Cala-te, voz que duvida
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.

Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.

Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.

Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido….

(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)

Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
Com a minha sede.



(José Gomes Ferreira nasceu faz hoje 113 anos)