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sexta-feira, agosto 31, 2012

Correspondências

A natureza é um templo augusto, singular,
Que a gente ouve exprimir em língua misteriosa;
Um bosque simbolista onde a árvore frondosa
Vê passar os mortais, e segue-os com o olhar.

Como distintos sons que ao longe vão perder-se,
Formando uma só voz, de uma rara unidade,
Tem vasta como a noite a claridade,
Sons, perfumes e cor logram corresponder-se

Há perfumes subtis de carnes virginais,
Doces como o oboé, verdes como o alecrim,
E outros, de corrupção, ricos e triunfais

Como o âmbar e o musgo, o incenso e o benjoim,
Entoando o louvor dos arroubos ideais,
Com a larga expansão das notas d'um clarim.


(Charles Baudelaire faleceu faz hoje 145 anos)

Tradução de Delfim Guimarães

quinta-feira, agosto 30, 2012

Bob Dylon - Blowin'in the wind
Crepúsculo de Agosto

Para a minha filha
Dos amigos que perdi
não falo. Sei
que estamos em agosto, mês
dos remos escaldantes, sei
que há lodo sob as algas,
sob a pele. Oblíqua,
sei também, a sombra
cai sobre as oliveiras. É
tempo de içares
tuas velas, teus ergueres
teus guindastes
junto ao rio. Dis
poníveis estão
as luzes; preparadas,
ermas estão as águas.

Preciso de arrumar a casa, rever o sistema, brunir
os móveis e o tato.
Preciso de opor o tempo ao tempo.
O espaço ao espaço.

Albano Martins

(poeta fundanense)

Poema dedicado à minha filha, no dia do aniversário.

quarta-feira, agosto 29, 2012

Melancolia

Sinto-me, às vezes, triste
como uma tarde do outono velho;
de saudades sem nomes,
de aflições melancólicas tão cheio...
Meu pensamento, então,
vaga junto às tumbas dos mortos
e em torno dos ciprestes e salgueiros
que abatidos, se inclinam... e me lembro
de historias tristes, sem poesia... Historias
que têm quase brancos meus cabelos.


(poeta andaluz nascido 138 anos)

terça-feira, agosto 28, 2012

Anoitecer, na Praia

Junto ao mar, as crianças
são mais alegres; as mulheres são
mais harmoniosas,
mais naturais.
E, enquanto a ondulação
das águas marulhosas
arma, em seu ritmo, imprevistas danças
isócronas, mas sempre desiguais;
e a escumilha na praia arma frouxéis de rosas,
efêmeros, sutis, quase irreais;
e as crianças, à beira da água, armam castelos
na úmida areia,
sob os olhos da miss, ou da ama que as ladeia,
e o distraído encanto dos papais;
e os velhos, em seus trajos mais singelos,
sob os toldos velados,
repousados,
sorriem cachimbando,
recordando
coisas imemoriais, -
cada mulher que passa é atávica sereia;
é atávico tritão
cada atleta que emerge à ondulação
da correnteza rejuvenescente;
é atávico tritão
aquele nadador adolescente
ora a subordinar o mar fremente
que resfolega e ondeia,
ao ritmo do seu próprio coração...


(poeta brasileiro nascido faz hoje 124 anos)

segunda-feira, agosto 27, 2012

Disciplina

O trabalho começa ao romper do dia. Mas nós começamos,
um pouco antes do romper do dia, a reconhecer-nos
nas pessoas que passam na rua. Ao descobrir os raros
transeuntes, cada um sabe que está sozinho
e que tem sono - perdido no seu próprio sonho,
cada um sabe no entanto que com o dia abrirá os olhos.
Quando a manhã chega, encontra-nos estupefactos
a fixar o trabalho que agora começa.
Mas já não estamos sozinhos e ninguém mais tem sono
e pensamos com calma os pensamentos do dia
até que o sorriso vem. Com o regresso do sol
estamos todos convencidos. Mas às vezes um pensamento
menos claro - um esgar - surpreende-nos inesperadamente
e voltamos a olhar para tudo como antes do amanhecer.
A cidade clara assiste aos trabalhos e aos esgares.
Nada pode turvar a manhã. Tudo pode
acontecer e basta levantar a cabeça
do trabalho e olhar. Rapazes que se escaparam
e que ainda não fazem nada passam na rua
e alguns até correm. As árvores das avenidas
dão muita sombra e só falta a erva
entre as casas que assistem imóveis. São tantos
os que à beira-rio se despem ao sol.
A cidade permite-nos levantar a cabeça
para pensar estas coisas, e sabe bem que em seguida a baixamos.


(poeta italiano falecido faz hoje 62 anos)

Tradução de Carlos Leite

domingo, agosto 26, 2012

(Os poemas)

Os poemas
envelhecem

Alguns
(muito poucos)
vão deitando raízes
desconhecidas

No ramo mais alto
o bafo dos deuses


(poeta português falecido faz hoje 5 anos)

sábado, agosto 25, 2012

Penuvens

Um broto de verde espiga
não se debulha à toa.
Se acaricia nas veias
da mão
o prenúncio do voo
a despedida do grão
para a boca de dizer
o espanto
descontado no canto.

Assim
A descoberta
Da leveza
Da palavra
Pluma
Irmã de pássaro
Ímã de poeta
verso implume.


(poeta amazonense falecido faz hoje 3 anos)

sexta-feira, agosto 24, 2012

O Carimbo da Noite

Manhã 
luz em frestas
na cama desfeita 
os desenhos do sono

segredos 
nas dobras 
do travesseiro


(poeta paulista que hoje faz 45 anos)
O sacrifício

Ouve o barulho das chaves.
Ouve o barulho das portas.
Ouve o sapateado
dos emissários da escuridão.

Cento e sete passos
                        e um baque.
Cento e sete passos
                        e o silêncio.
Cento e sete passos
                        e seus pés
                                    pensos
                                          sobre o vazio.


(poeta mineiro que hoje faz  57 anos)
Arte do chá

ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo

ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo


(poeta paranaense nascido faz hoje 68 anos)

quinta-feira, agosto 23, 2012

Nirvana

Quisera ficar a teu lado
No grande êxtase pacífico
do nosso silêncio.
Continuar indefinidamente
o diálogo mudo dos nossos olhos.

Quisera
diluir-me em ti como um aroma no vento
como dois rios que fundem suas águas
no abraço do mesmo leito
e correm para o mesmo destino...

Somos duas árvores solitárias
que entrelaçam suas ramas:
à mesma brisa estremecem
florescem
envelhecem
e morrem...


(poeta paulista falecido faz hoje 24 anos)

quarta-feira, agosto 22, 2012

Semáforo

o veículo avança
a despeito dos sinais
atropela o átimo
otimiza o desgaste
adianta o retrocesso
sem se salvar

um veículo imóvel
que o pedal do tempo
acelera, apesar


Júlio Polidoro

(poeta mineiro)

terça-feira, agosto 21, 2012

Mesa dos sonhos

Ao lado do homem vou crescendo

Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente

Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas

Ao lado do homem vou crescendo

E defendo-me da morte povoando
de novos sonhos a vida.


(Alexandre O'Neill faleceu faz hoje 26 anos)
Não sou eu quem o diz

Não sou eu quem o diz!
Mas este corpo estranho pulsa em mim
como um coração, não meu, mas de alguém
composto de outras fibras, outras carnes

que não estas humanas. Quem me obriga
será antes a dor, que, incrusta
em meu ser, já se não distingue da
composição escassa de meu corpo,

veículo insolúvel que a transporta,
Anjo ou dor ou enfim força alheia ao
arbítrio da vontade, nem sequer

válida no restrito território
que sou, a mim me impinges a palavra:
impõe-se o canto à boca que o articula.


(escritor paulista que hoje faria 75 anos)

segunda-feira, agosto 20, 2012

Poeminha poemeto
Poemeu poesseu possua da flor

a brisa
a luz
o calor tateiam
bolinam a flor
quase veada
e ela, voláteis
perfumadas de cor de rosa
aos poucos
vai abrindo as pérnalas em vãos
num copo à janela


(poeta paulista que hoje faz 85 anos)

domingo, agosto 19, 2012

Confusão

Meu coração
é teu coração?
Quem me reflexa pensamentos?
Quem me presta
esta paixão
sem raízes?
Por que muda meu traje
de cores?
Tudo é encruzilhada!
Por que vês no céu
tanta estrela?
Irmão, és tu
ou sou eu?
E estas mãos tão frias
são daquele?
Vejo-me pelos ocasos,
e um formigueiro de gente
anda por meu coração.


(poeta espanhol assassinado faz hoje 76 anos)

Tradução de Oscar Mendes
As pontes

Doce luz de azulejo em claro céu
entre marés, luares e telhados,
eras, minha São Luís, estranho pássaro,
com as asas amarradas pelas cordas
de movediça prata dos teus rios.

Veio o gume das pontes e as cortou.

E as asas livres se abrem pela terra
num espreguiçamento de alvorada.

Erguem-se voando baixo sobre os mangues.
São garças? São guarás? Manchas no Sol.

Levam às praias a memente rara
de sobrados, mirantes e varandas.
O braço do homem luta contra o pântano
e arranca o chão dos bichos e da lama
para estender ao sol, sobre as areias
antes do passo humano mal trilhadas,
doce luz de azulejo em claro céu.


(escritor maranhense falecido faz hoje 33 anos)

sábado, agosto 18, 2012

O BEIJO

Mentirosos são aqueles
que cantam e decantam as maravilhas do beijo,
as suas mil e uma sensações...
Eu sei por mim que é pura mentira,
das tantas vezes que eu beijei,
me dá uma coisa,
um maravilhoso encantamento burro,
que foge qualquer explicação para dar...


(poeta gaúcho que hoje faz 86 anos)

sexta-feira, agosto 17, 2012

Sentimental

Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!

- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar."


(Carlos Drummond de Andrade faleceu faz hoje 25 anos)
Reflexãozinha

Se dormir bem é o segredo
fácil para um bom dia
de trabalho e amor,
morrer bem há de ser
a raiz de uma boa vida
sem mordaça, nem medo,
sem morte
(sem amor em segredo)
sem corte.


(escritor carioca que hoje faz 36 anos)

quinta-feira, agosto 16, 2012

Elvis Presley faleceu faz hoje 35 anos
O Instante

o instante
é pluma

seu holograma
radia estável

como quem olha pelo cristal
do tempo

feixe fixo
de luz

(já não se vê se o olho deixa sua seteira)

prisma

o sol
chove
de um teto
zenital

elipse: um estilo de persianas


(poeta paulista falecido faz hoje 9 anos)

quarta-feira, agosto 15, 2012

Estrada de Fogo

Pedra a pedra a estrada antiga
sobe a colina, passa diante
de musgosos muros e desce
para nenhum sopé;

encurva, na abstracta encruzilhada;
apaga-se, na realidade. Morre
como o rastilho do fogo,
que de campo em campo aberto

seguia, e ao bater na mágica cancela
dobrava a chama, para uma respiração,
e deixava o caminho do portal
incólume e iniciado.


(Fiama Hasse Pais Brandão faria hoje 84 anos)

terça-feira, agosto 14, 2012

Dificuldade de governar

1

Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.

2

É também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.

3

Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
É só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.

4

Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?


(Bertold Brecht faleceu faz hoje 56 anos)
Interrogação

Sozinho, sozinho, perdido na bruma.
Há vozes aflitas que sobem, que sobem.
Mas, sob a rajada ainda há barcos com velas
e há faróis que ninguém sabe de que terras são.

- Senhor, são os remos ou são as ondas o que dirige o meu barco?
Eu tenho as mãos cansadas
e o barco voa dentro da noite.


(poeta mineiro nascido faz hoje 110 anos)

segunda-feira, agosto 13, 2012

Somos todos poetas

Assisto em mim a um desdobrar de planos.
as mãos vêem, os olhos ouvem, o cérebro se move,
A luz desce das origens através dos tempos
E caminha desde já
Na frente dos meus sucessores.
Companheiro,
Eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da tua alma.
Sou todos e sou um,
Sou responsável pela lepra do leproso e pela órbita vazia do cego,
Pelos gritos isolados que não entraram no coro.
Sou responsável pelas auroras que não se levantam
E pela angústia que cresce dia a dia.


(poeta mineiro falecido em Lisboa faz hoje 37 anos)

domingo, agosto 12, 2012

De tanto olhar o sol

De tanto olhar o sol,
queimei os olhos,
De tanto amar a vida enlouqueci.
Agora sou no mundo esta negrura.
À procura
Da luz e do juízo que perdi.


(Miguel Torga nasceu faz hoje 105 anos)
Floresta

De olhos fechados
mergulho em teu ventre.
Perfumes se encontram
no meu rosto. Braços
apanham meus cabelos.

Braços leves, pesados,
amorosos ou rudes,
Braços de cedro
ou espinheiro,
de parasitas
ou cravos selvagens.

No ar e na boca
um gosto de erva
amanhecida. Um gosto
de coisa lavada.
Um ar de chuva
e terra. Um gosto
de mundo amanhecendo.

Oh, enveredar
por esse mundo livre
e ser uma entre as árvores
que formam o volume
do teu rosto.

Enveredar por esse mundo livre.
Conhecer a geografia
do teu peito. Misturar-me
à conversa das folhas
e adivinhar o casamento
secreto das raízes!


(poetisa gaúcha nascida faz hoje 107 anos)