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quinta-feira, junho 30, 2011


Timbre

EU,
Morreu.
Só há ideal
No plural.
Tecidos
Como os fios que há nos linhos,
Parecidos
Entre nós como dois olhos,
Somos do tempo de viver aos molhos
Para morrer sòzinhos.

Reinaldo Ferreira (filho)

(poeta português falecido em Lourenço Marques a 30 de Junho de 1959)
Palmas, palmas, palmas…

Por razões imperiosas tive de acompanhar a minha companheira durante mais de cinco horas de via-sacra por uma unidade de saúde (infelizmente privada), com vista à célere resolução de um problema vital. Na ressaca dessa azáfama pude assistir à apresentação em directo do programa de governo por parte do novo PM, com palmas e mais palmas dos deputados que o apoiam, tendo confirmado a seguinte realidade:

PM:   Lixe-se o povo!                      AD: Clap, clap, clap…
PM:   Sodomize-se o povo!              AD: Claap, claap, claap…
PM:   Fornique-se o povo!                AD: Claaap, claaap, claaap…
PM:   Enrabe-se o povo!                  AD: Claaaap, claaaap, claaaap…
PM:   Fodamos o povo!                    AD: Uau, uau, uau, claaaaaaap…

quarta-feira, junho 29, 2011


Rotina

Acorda. Levanta. Acorda. Levanta.
Desperta, quase sem espreguiçar, e levanta.
Levanta quase sem acordar e corre.
Corre sem saber para onde e chega.
Chega sem saber para quê e volta.
Volta sem saber de onde, e corre.

José Eduardo Mendes Camargo

(poeta paulista)

terça-feira, junho 28, 2011


COTA ZERO

STOP.
A vida parou
ou foi o automóvel?

Carlos Drummond de Andrade

Atenção ao sinal



Aquela palavrinha, pouco recomendável em português, significa zona em esloveno e avisa de que se está a entrar numa zona pedonal, com presença de crianças (as bicicletas podem circular e também vi algumas motos).

segunda-feira, junho 27, 2011


O Adeus   
  
Vi-te montar em teu cavalo.

A majestade, a beleza
de cada montanha presa
à correlação de um vale,

de repente é insuportável!

Vi-te atravessar a praça.
A coroa de fumaça,
diadema do diáfano,

com certeza é sem retorno.

Vi-te ao longe, só cabelos…
Os translúcidos novelos
das nuvens com a luz em torno

são só brilho, são só água.

Mas que fazer disso tudo?
Vi-te ereto, ao longe: estudo
teu reflexo em cada lágrima,

lâminas, golpes agudos.


(poeta brasileiro falecido a 27 de Junho de 2007)

domingo, junho 26, 2011


Lição de Elementos

Para faca, água;
para murro, terra;
para fera, fogo;
para vida, ar.

Em você se acanhe o medo,
em você se mostre a raça
de água, terra, fogo e ar.

José de Paula Ramos Jr.

(poeta paulista)

sábado, junho 25, 2011


Auto-Retrato

Entre a espuma e a navalha sou legenda.
O espelho neutraliza o ângulo da morte,
a barba estrangulou a metafísica
e o problema do mal é bem remoto.
Aqui sim.
Aqui resistirei à mímica,
ao dicionário e ao laboratório.
(a herança do punhal brilha de novo
o fantasma de Abel não me intimida)
Vejo a testa crescer
entre espirais de fumo,
o olhar que não vacila
da ruga à pré-história
e o peito rasgado
pela fúria do poema.

Aqui sim,
aqui iniciarei a espécie nova,
aqui derrotarei o homem-harpa
e pronto estou para a descoberta do sexo.
O pincel dá-me o poder do patriarca,
a navalha reduz a timidez e o medo,
o palavrão rola na boca e salva o mundo.


(poeta paraense nascido a 25 de Junho de 1920)

sexta-feira, junho 24, 2011


De regresso

Um rapaz de Chicago, portas semi-cerradas, cristas nas ondas, trabalho feio pela frente e muitas outras más notícias. Bem andam os croatas ao duvidar das boas intenções de Bruxelas.

quinta-feira, junho 23, 2011


O Poeta

Debruçado no poço
salmodia
e a própria voz escuta.

                                                               Osso.
atirado a si mesmo
                (espelho)
                                               por um cão faminto.


(poeta paraense nascido a 23 de Junho de 1939)

quarta-feira, junho 22, 2011


Sarajevo – Biblioteca Nacional


terça-feira, junho 21, 2011

Breve poema

A vida é como um breve poema.
Podemos escolher se queremos ser o papel,
a caneta ou a mão que o escreve.


(poetisa carioca nascida a 21 de Junho de 1963)

segunda-feira, junho 20, 2011


Kotor - Catedral



A fera

Das cavernas do sono das palavras, dentre
os lábios confortáveis de um poema lido
e já sabido
voltas

para ela - para a terra
maleável e amante. Dela
de novo te aproximas

e de novo a enlaças firme sobre o lago
do diálogo, moldas
                              novo destino

Firme penetra e cresce a aproximação conjunta
E ocupa um centro: A morte, a fera
da vida
te lambendo


(poeta paraense nascido a 20 de Junho de 1926)

domingo, junho 19, 2011


gaia ciência

sábio círculo em torno do nada
do além do aquém
de que é que de quem é quem
lição de cor do ardor do amor
signo perseguido em guia de dor
manifesta confusa desvairada
desvario ou alegria de trâmite curtido
palavra de real gozo de conceituai
léxico anverso controverso
capturado mel da defensiva abelha em sua colmeia
dispersivo pescar na convulsão da ideia
rio de acima de abaixo confluência de águas
e quem mais o quis menos o teve
breve perene sempiterno
nascente de prazer ou de frágua
o que ficou desse riso siso
retórico ressaibo


(poeta mineiro nascido a 19 de Junho de 1928)

sábado, junho 18, 2011

Demissão

Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos, se dependentes.


(no primeiro aniversário da sua morte)

sexta-feira, junho 17, 2011

Dubrovnik – Panorâmica



quinta-feira, junho 16, 2011

Praia do Esquecimento

Fujo da sombra; cerro os olhos: não há nada.
A minha vida nem consente
rumor de gente
na praia desolada.

Apenas decisão de esquecimento:
mas só neste momento eu a descubro
como a um fruto rubro
de que, sem já sabê-lo, me sustento.

E do Sol amarelo que há no céu
somente sei que me queimou a pele.
Juro: nem dei por ele
quando nasceu.


(David Mourão-Ferreira faleceu a 16 de Junho de 1996)

quarta-feira, junho 15, 2011

Paisagem por dentro

Abro os braços
para a paisagem
descortinada janela a fora,
aos olhos que se arregalam.

E o coração:
- a vida é bela bebida aos poucos.

O verde enverdece o sol,
o amarelo traz fruta – esperança,
a saudade em chuva e orvalho
cai (dos tempos de criança).
Bate-me por dentro, nas laterais:
- as narinas sentem
e os ouvidos ouvem
o vento
e seus mistérios e eflúvios,
arrepiando a pele como tentáculos.

A alma que voava
me pousou
na beira do sonho.

Francisco Miguel de Moura

(poeta piauiense)

terça-feira, junho 14, 2011


Versos Curtos

Encurtei os versos
até a altura das saias
das meninas de Copacabana.
Que difícil a arte da vida fácil:
vender o amor
sem ter tempo para ser breve.

Guto Graça

(poeta carioca nascido a 14 de Junho de 1970)

segunda-feira, junho 13, 2011


Sobre a Palavra

Entre a folha branca e o gume do olhar
a boca envelhece

Sobre a palavra
a noite aproxima-se da chama

Assim se morre dizias tu
Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura

Na porosa fronteira do silêncio
a mão ilumina a terra inacabada

Interminavelmente


(Eugénio de Andrade faleceu a 13 de Junho de 2005)

domingo, junho 12, 2011


Zagreb – Catedral


“Ajudas”

“Tendo em conta que o inglês é a tua segunda língua podes pensar que as palavras bailout e aid implicam que vocês receberão ajuda dos nossos irmãos europeus para vos retirar das vossas actuais dificuldades. O inglês é a nossa língua-mãe e foi o que nós pensámos que significava. Permite-me que te avise que, quando o resgate vos for inevitavelmente imposto, ele não só não vos ajudará a sair dos vossos actuais problemas, como fará prolongá-los por várias gerações vindouras.

Por tal facto, esperar-se-á que fiques grato. Caso queiras descobrir as palavras apropriadas, em Português, para resgate, sugiro que arranjes um dicionário Inglês-Português e procures palavras como as seguintes: moneylending1, usury2, subprime, mortgage3, rip-off4. Isto dar-te-á uma tradução mais apropriada do que está prestes a acontecer-te”.

Da carta da República da Irlanda a Portugal, aparecida, há uns tempos, no Sunday Independent.

(1 agiotagem, 2 usura, 3 hipoteca, 4 exploração)

sábado, junho 11, 2011

Andar por aí

Croácia, Eslovénia, Montenegro e Bósnia. Uma viagem que queria fazer há anos, marcada antes da invasão da troika e muito mais em conta do que ir ao Algarve pernoitar em regime de pensão completa. Veio a talhe de foice para evitar o esbulho das magras poupanças.

Se a tecnologia o permitir continuarei por aqui, mas não poderei visitar as tascas amigas.

A prosa do observatório

o poeta esquadrinha a natureza
em busca de indícios: eclipses
o grafismo das garças no lago
estrelas cadentes e outros sinais
da língua de deus.
e deus, crupiê do acaso,
foi passar o verão noutra galáxia
deixou no céu uma guirlanda de  enigmas
e  mais meia dúzia de coincidências
pra orientar o frenesi dos tolos
e as especulações da astronomia


(poeta mineiro nascido a 11 de Junho de 1952)

sexta-feira, junho 10, 2011


Ver

O dia. Arcos da manhã
em nuvem. Riscos de luz
como vidros arriados.

O claro. A praia armada
entre a sintaxe do verde.

Áreas do ar. Aves
navegando as lajes
do azul.


(poeta carioca nascido a 10 de Junho de 1952)

Ao desconcerto do Mundo

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.

quinta-feira, junho 09, 2011


Reportagem

E nos teus olhos onde toda a Natureza se pinta de azul
parou o instinto de uma borboleta quente.


(José Gomes Ferreira nasceu  9 de Junho de 1900)

Um peixe
               
Um pedaço de trapo que fosse
Atirado numa estrada
Em que todos pisam
Um pouco de brisa
Uma gota de chuva
Uma lágrima
Um pedaço de livro
Uma letra ou um número
Um nada, pelo menos
Desesperadamente nada.


(poetisa paulista nascida a 9 de Junho de 1910)

quarta-feira, junho 08, 2011


Meditação Sobre os Poderes

Rubricavam os decretos, as folhas tristes
sobre a mesa dos seus poderes efémeros.
Queriam ser reis, czares, tantas coisas,
e rodeavam-se de pequenos corvos,
palradores e reverentes, dos que repetem:
és grande, ninguém te iguala, ninguém.
Repartiam entre si os tesouros e as dádivas,
murmurando forjadas confidências,
não amando ninguém, nada respeitando.
Encantavam-se com o eco liquefeito
das suas vozes comandando, decretando.
Banqueteavam-se com a pequenez
de tudo quanto julgavam ser grande,
com os quadros, com o fulgor novo-rico
das vénias e dos protocolos. Vinha a morte
e mostrava-lhes como tudo é fugaz
quando, humanamente, se está de passagem,
corpo em trânsito para lado nenhum.
Acabaram sempre a chorar sobre a miséria
dos seus títulos afundados na terra lamacenta.


(José Jorge Letria nasceu a 8 de Junho de 1951)

terça-feira, junho 07, 2011


um dia vai ser

pelos caminhos que ando
 um dia vai ser
   só não sei quando


(poeta paranaense falecido a 7 de Junho de 1989)

Música

a musa voluptuosa
pede passagem

e lhe damos -
prosa:

qualquer imagem
vale mais

que a floração sentimental de uma
rosa:

gás lacrimogêneo,
luto, melancolia,

estrofe, catástrofe,
catarse:

deposita-se, linear
(limpa e suja como um verso)
pela praia pedregosa da palavra
- esta espuma.


(poeta gaúcho nascido a 7 de Junho de 1973)

segunda-feira, junho 06, 2011


Olhos nas Mãos

No fundo
toda essa informação
à frente o obscuro
os olhos cobertos...
As mãos ocupadas

José Damião de Souza

(poeta paulista)
Rapidamente e em força


domingo, junho 05, 2011

sábado, junho 04, 2011


Independência

Recuso-me a aceitar o que me derem.
Recuso-me às verdades acabadas;
recuso-me, também, às que tiverem
pousadas no sem-fim as sete espadas.

Recuso-me às espadas que não ferem
e às que ferem por não serem dadas.
Recuso-me aos eus-próprios que vierem
e às almas que já foram conquistadas.

Recuso-me a estar lúcido ou comprado
e a estar sozinho ou estar acompanhado.
Recuso-me a morrer. Recuso a vida.

Recuso-me à inocência e ao pecado
como a ser livre ou ser predestinado.
Recuso tudo, ó Terra dividida!


(Jorge de Sena faleceu a 4 de Junho de 1978)

sexta-feira, junho 03, 2011

Declaração de voto



Olhas o amanhecer

Olhas o amanhecer,
vives o amanhecer como o único instante
em que o céu é entreaberto segredo de um deus mudo.

Espera: algo vai se revelar e deves estar pronto
para mergulhar teu sonho num poço de luz casta.

O intocado te espera. E amanhece. E te iluminas
como se trincasses com os dentes a polpa do absoluto.


(poeta mineiro nascido a 3 de Junho de 1918)

quinta-feira, junho 02, 2011


Meio-dia

O morro coxo cochila
O sol resvala devagarzinho pela rua
torcida como uma costela

Aquela casa de janelas com dor-de-dente
amarrou um coqueiro do lado.

Um pé de meia faz exercícios no arame.

Vizinha da frente grita no quintal:
-João! Ó João!

Bananeira botou as tetas do lado de fora
Mamoeiros estão de papo inchado

Negra acocorou-se a um canto do terreiro
Pôs as galinhas em escândalo

Lá em baixo
passa um trem de subúrbio riscando fumaça

Á porta da venda
negro bocejou como um túnel.


(poeta brasileiro falecido a 2 de Junho de 1984)

Como rasurar a paisagem

a fotografia
é um tempo morto
fictício retorno à simetria

secreto desejo do poema
censura impossível
do poeta


(poetisa carioca nascida a 2 de Junho de 1952)

quarta-feira, junho 01, 2011


Criança

Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, — e resiste,

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.

Cecília Meireles