quinta-feira, novembro 29, 2012

Aconteceu

Aconteceu que até aos vinte e sete
anos de idade tive a alegria
de viver na solidão da casa e da família,
com um belo jardim à minha volta.

Fiquei, assim, um ser não corrompido
e, fazendo justiça à natureza,
sigo o murchar da floresta
ou o destino do jardim.

Gostei de esquecer a tristeza e a ira,
não ter ideias, não dizer palavras
e nas árvores loucas da infância
sofrer o tormento do génio alheio.

Fiquei de repente fina, como a relva,
alma pura, como as outras plantas,
não mais douta do que qualquer árvore,
não mais viva do que até ao nascimento.

Sorria de noite para o tecto,
para o vazio, onde, perto e perceptível,
empalidecia encoberto o óbvio deus
que tem todos os sorrisos e bondades.

Fui tão inevitável paraíso
e estive tão perto da grande bondade divina,
que a trança da testa – para mais levemente beijar –
afastei e dormi profundamente.

Como se por muito tempo, pelos tempos,
eu entrasse mais pela terra e pelas árvores.
Ninguém sabia como o tormento é grande
atrás da porta da minha solidão.


(poetisa russa falecida faz hoje 2 anos)

Tradução de Manuel de Seabra

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