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domingo, agosto 31, 2014

Tédio

Tenho as recordações d'um velho milenário!

Um grande contador, um prodigioso armário,
Cheiinho, a abarrotar, de cartas memoriais,
Bilhetinhos de amor, recibos, madrigais,
Mais segredos não tem do que eu na mente abrigo.
Meu cérebro faz lembrar descomunal jazigo;
Nem a vala comum encerra tanto morto!

- Eu sou um cemitério estranho, sem conforto,
Onde vermes aos mil - remorsos doloridos,
Atacam de pref'rência os meus mortos queridos.
Eu sou um toucador, com rosas desbotadas,
Onde jazem no chão as modas desprezadas,
E onde, sós, tristemente, os quadros de Boucher
Fruem o doce olor d'um frasco de Gellé.

Nada pode igualar os dias tormentosos
Em que, sob a pressão de invernos rigorosos,
O Tédio, fruto inf'liz da incuriosidade,
Alcança as proporções da Imortalidade.

- Desde hoje, não és mais, ó matéria vivente,
Do que granito envolto em terror inconsciente.
A emergir d'um Saara movediço, brumoso!
Velha esfinge que dorme um sono misterioso,
Esquecida, ignorada, e cuja face fria
Só brilha quando o Sol dá a boa-noite ao dia!


(Charles Baudelaire faleceu a 31 de Agosto de 1867)

sábado, agosto 30, 2014

Queen - Bohemian Rhapsody
Não Te Rendas Jamais

Procura acrescentar um côvado
à tua altura. Que o mundo está
à míngua de valores
e um homem de estatura justifica
a existência de um milhão de pigmeus
a navegar na rota previsível
entre a impostura e a mesquinhez
dos filisteus. Ergue-te desse oceano
que dócil se derrama sobre a areia
e busca as profundezas, o tumulto
do sangue a irromper na veia
contra os diques do cinismo
e os rochedos de torpezas
que as nações antepõem a seus rebeldes.
Não te rendas jamais, nunca te entregues,
foge das redes, expande teu destino.
E caso fiques tão só que nem mesmo um cão
venha te lamber a mão,
atira-te contra as escarpas
de tua angústia e explode
em grito, em raiva, em pranto.
Porque desse teu gesto
há de nascer o Espanto.


(poeta carioca) 

Poema dedicado à minha filha, no dia do aniversário.

sexta-feira, agosto 29, 2014

Elizabeth Fraser faz hoje 51 anos
Pôr do Sol

Que queres tu, viajor, olhando para trás?
O que vês é a distância, é a estrada percorrida,
é o pó das ilusões da vida já vivida,
é o tempo que passou e que não volta mais.

Porventura não vês, após tamanha lida,
que tudo neste mundo é efêmero e falaz?
Inexoravelmente, um dia, zás, a morte
sorrateira, sutil, corta o fio da vida.

Que queres mais, viajor, ó espírito enfermo?
Não vês que longe vais, quão perto estás do termo?
De que valem as cãs que te ornam a cabeça?

Desfita,  pois,  o olhar dos longes do horizonte,
volta as costas ao mundo, eleva a Deus a fronte,
antes que o sol de ponha, antes que a noite desça.


(poeta paraibano falecido faz hoje 39 anos)

quinta-feira, agosto 28, 2014

Messianeida

São Francisco de Assis pregou aos pássaros,
e Santo Antônio aos peixes.
Mais corajoso do que São Francisco
e do que Santo Antônio,
Jesus pregou aos homens e às mulheres...

Perderam, todos eles, o seu tempo
e o seu sermão:
O mais sábio por certo,
o mais sábio de todos foi São João,
que pregou no deserto...


(poeta sergipano nascido faz hoje 126 anos)

quarta-feira, agosto 27, 2014

Mania da Solidão

Como um jantar frugal junto à clara janela,
Na sala já está escuro mas ainda se vê o céu.
Se saísse, as ruas tranquilas deixar-me-iam
ao fim de pouco tempo em pleno campo.
Como e observo o céu — quem sabe quantas mulheres
estão a comer a esta hora — o meu corpo está tranquilo;
o trabalho atordoa o meu corpo e também as mulheres.

Lá fora, depois do jantar, as estrelas virão tocar
a terra na ancha planura. As estrelas são vivas,
mas não valem estas cerejas que como sozinho.
Vejo o céu, mas sei que entre os tectos de ferrugem
brilha já alguma luz e que, por baixo, há ruídos.
Um grande golo e o meu corpo saboreia a vida
das árvores e dos rios e sente-se desprendido de tudo.
Basta um pouco de silêncio e as coisas imobilizam-se
no seu verdadeiro sítio, como o meu corpo imóvel.

Cada coisa está isolada ante os meus sentidos,
que a aceita impassível: um cicio de silêncio.
Cada coisa na escuridão posso sabê-la,
como sei que o meu sangue circula nas veias.
A planura é água que escorre entre a erva,
um jantar de todas as coisas. Cada planta e cada pedra
vivem imóveis. Escuto os alimentos e eles alimentam-me as veias
com todas as coisas que vivem nesta planura.

A noite importa pouco. O rectângulo de céu
sussurra-me todos os fragores e uma estrela miúda
debate-se no vazio, longe dos alimentos,
das casas, distinta. Não se basta a si mesma
e precisa de muitas companheiras. Aqui no escuro, sozinho,
o meu corpo está tranquilo e sente-se soberano.


(poeta italiano falecido faz hoje 64 anos) 

Tradução de Carlos Leite

terça-feira, agosto 26, 2014

O gesto subtraído
               
O gesto subtraído
Não se sabe bem
Por que motivo
Mas entretanto
                      algures
A flor foi atingindo
Sem que ninguém a visse
A plenitude da sua luz.


(poeta português falecido faz hoje 7 anos)

segunda-feira, agosto 25, 2014

Anúncio

É preciso urgente cortar os excedentes.
Nada de adiposidades.
Estamos em crise.
Os adjetivos que me perdoem,
os substantivos são mais esbeltos,
e a Nova Era recomenda que sejamos seletos.

Há uma pena de andorinha voando à toa.
Há um redemoinho que nos afunda a proa.
Há uma onda marejada que não se escoa.

É preciso pôr um bêbado no timão do barco.
Que saiba das marés pelo trago das estrelas,
que saiba afundar levantando um brinde,
e mesmo nos destroços saber-se príncipe
salvo do rescaldo para o cetro da palavra:
La parole est morte. Vive la parole!

Há uma paixão em cada esquina torta.
Há um resto de angústia celebrando a morta.
Há um boi no labirinto procurando a porta.

É preciso correr atrás da utopia que se fez distante
para que ela volte a habitar os dias mais comuns,
e faça que o sonho se pareça ao sonho,
mesmo sob o manto pessimista da névoa,
afiando o sabre na pedra que restou da cachoeira.
Ah, nuvens vermelhas, derramai vossa chuva de fogo!

Há um canto entravado na garganta.
Há um sufoco que já não me espanta.
Há um espelho que já não me encanta.

É preciso fugir do tempo perdido.
O que ficou pra trás encantou-se com a serpente,
e todos os dias buscamos novos corredores:
aléias renovadas para as pegadas recentes.
Salvemos aqui a parelha dos pés que suporta a canga
nesse itinerário do agora recolhendo ontens.

Há um solitário na mesa de um bar.
Há um suicida na voragem do mar.
Há um reclamante do verbo amar.

É preciso, finalmente, se apaixonar todos os dias.
Experimentar o gesto no corpo da amada.
Imprimir no toque a tatuagem serena
para que fique perene quando for saudade:
A vida se amplia num flash de coisas pequeninas,
e o que ficar são ecos de melodia transitória.

Há um desejo que me faz cantor.
Há uma paixão saída da sua cor.
Há um amor na contramão da dor.


(poeta amazonense falecido faz hoje 5 anos)

domingo, agosto 24, 2014

RISCO

a nódoa azul
nos pães da véspera
um resto de orvalho
na pólvora agora
o leite coalhado
na teta órfã

sustos
ante o quê
por úmido
estraga

ou floresce


(poeta paulista que hoje faz 47 anos)
Anel Caucasiano

Olha para o anel de ferro
e mantém acesa a lembrança.
Lembra-te dos dez mil anos
no miolo escuro do rochedo.
Lembra-te, depois, da visitante
e do barulho de suas asas.
Lembra-te da humilhação
de revelar o que era segredo.
Lembra-te de tudo
antes que todos se esqueçam dessa história
e, mero acidente geográfico,
reste apenas a montanha de pedra.


(poeta mineiro que hoje faria 59 anos)
não fosse isso

não fosse isso
e era menos
não fosse tanto
e era quase


(poeta paranaense que hoje faria  70 anos)

sábado, agosto 23, 2014

Andar por aí

Durante uma semana vou andar por aí, das margens do Sena ao Bairro Vermelho, passando pelo Reno,  Maneken-pis  e Maas. Se a tecnologia não pifar deixo-vos com poemas e música, mas não poderei visitar as vossas páginas.

B&A
O Voo

Goza a euforia do voo do anjo perdido em ti
Não indagues se nossas estradas, tempo e vento
desabam no abismo.
que sabes tu do fim...
Se temes que teu mistério seja uma noite,
enche-o de estrelas
conserva a ilusão de que teu voo te leva sempre para mais alto
no deslumbramento da ascensão
se pressentires que amanhã estarás mudo, esgota como
um pássaro as canções que tens na garganta
canta, canta para conservar a ilusão de festa e de vitória
talvez as canções adormeçam as feras que esperam
devorar o pássaro
desde que nasceste não és mais que um voo no tempo
rumo ao céu?
que importa a rota
voa e canta enquanto resistirem as asas.


(poeta paulista falecido faz hoje 26 anos)

sexta-feira, agosto 22, 2014

Dói

Dói meu povo faminto,
a criança de rosto descolorido.
Dói escutar o vento
solitário da pátria empobrecida.
Essa gargalhada misteriosa
filha da morte.


(poetisa boliviana que hoje faz 65 anos)

quinta-feira, agosto 21, 2014

O teu nome

Flor de acaso ou ave deslumbrante,
Palavra tremendo nas redes da poesia,
O teu nome, como o destino, chega,
O teu nome, meu amor, o teu nome nascendo
De todas as cores do dia!


(Alexandre O'Neill faleceu faz hoje 28 anos)

quarta-feira, agosto 20, 2014

Quem morre?

Morre lentamente
quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajectos, quem não muda de marca
Não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente
quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente
quem evita uma paixão,
quem prefere o negro sobre o branco
e os pontos sobre os "is" em detrimento de um redemoinho de emoções,
justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
sorrisos dos bocejos,
corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente
quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite pelo menos uma vez na vida,
fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente
quem não viaja,
quem não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente
quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente,
quem passa os dias queixando-se da sua má sorte
ou da chuva incessante.
Morre lentamente,
quem abandona um projecto antes de iniciá-lo,
não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves,
recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior
que o simples fato de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos
um estágio esplêndido de felicidade.


(poetisa gaúcha que hoje faz 53 anos) 

(Este poema – muere lentamente – tem sido erradamente atribuído a Pablo Neruda, mas é da autoria de Martha Medeiros)
Mascarados

Saiu o Semeador a semear
Semeou o dia todo
e a noite o apanhou ainda
com as mãos cheias de sementes.
Ele semeava tranqüilo
sem pensar na colheita
porque muito tinha colhido
do que outros semearam.
Jovem, seja você esse semeador
Semeia com otimismo
Semeia com idealismo
as sementes vivas
da Paz e da Justiça.


 (poetisa goiana nascida faz hoje 125 anos)

terça-feira, agosto 19, 2014

Valsa nos ramos

Caiu uma folha.
E duas.
E três.
Na lua nadava um peixe.
A água dorme uma hora
e o mar branco dorme cem.
A dama
estava morta na rama.
A monja
cantava dentro da toronja.
A menina
pelo pinho ia até à pinha.
E o pinho
buscava a plúmula do trino.
Mas o rouxinol
chorava suas feridas em redor do sol.
E eu também
porque caiu uma folha
e duas
e três.
E uma cabeça de cristal
e um violino de papel.
E a neve poderia com o mundo,
se a neve dormisse todo o mês,
e os ramos lutavam com o mundo,
um a um,
dois a dois
três a três.
Oh duro marfim de carnes invisíveis!
Oh golfo sem formigas ao amanhecer!
Chegará um torso de sombra
coroado de louros.
Será o céu para o vento
duro como uma parede
e os ramos arrancados
irão dançar com ele.
Um a um
em volta da lua,
dois a dois
em volta do sol,
e três a três

para que os marfins adormeçam bem.


(poeta andaluz assassinado faz hoje 78 anos)

segunda-feira, agosto 18, 2014

FRONTEIRA

Quando morrer
burlarei a alfândega das almas...
Vou levar comigo aquele beijo
que roubei de ti
enquanto dormias.


(poeta gaúcho que hoje faz 88 anos)

domingo, agosto 17, 2014

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


(Carlos Drummond de Andrade faleceu faz hoje 27 anos)
História de amor num bar

te olho
e me encolho

duvido
e nem sou atrevido

música
estúpida

te quero
e me desespero

vou
ao teu vôo?

ou danço
e descanso?

lento,
eu tento?

ou esqueço?
(não te mereço...)

tu me sorris...
eu, por um triz...

coragem!
meus pés agem...

de estáticos
a rápidos

tu chegas
e não me renegas

dizes sim
só pra mim

belo clima!
tudo em cima!

plenilúnio!
tu corpo, meu punho!

te abraço...
e desfaço

te amo
e desamo...

um beijo
e te deixo...


(escritor carioca que hoje faz 38 anos)

sábado, agosto 16, 2014

Elvis Presley faleceu faz hoje 37 anos
O Instante

o instante
é pluma

seu holograma
radia estável

como quem olha pelo cristal
do tempo

feixe fixo
de luz

(já não se vê se o olho deixa sua seteira)

prisma

o sol
chove
de um teto
zenital

elipse: um estilo de persianas


(poeta paulista falecido faz hoje 11 anos)
Homenagem à Preguiça Universal

Que nada é impossível 
não é verdade; 
todo o mundo faz nada 
com facilidade.


(Millôr Fernandes nasceu faz hoje 91 anos)

sexta-feira, agosto 15, 2014

A porta branca 

Por detrás desta porta,
uma de todas as portas que para mim se abrem e se fecham,
estou eu ou o universo que eu penso.
Deste meu lado, dois olhos que vigiam
os fenómenos naturais, incluindo a celeste mecânica
e as sociedades humanas, sedentárias e transumantes.

Mas podem os olhos fazer a sua enumeração,
e pode o pensado universo infindamente ir-se,
que para mim o que hoje importa
é aquela olhada vaga porta.

Que ela seja só como a vejo, a porta branca,
com duas almofadas em recorte,
lançada devagar sobre o vão do jardim,
onde o gato, por uma fenda aberta
pela sua pata, tenta ver-me,
tão alheio a versos e a universos.


(Fiama Hasse Pais Brandão nasceu faz hoje 86 anos)

quinta-feira, agosto 14, 2014

Nada é impossível de mudar

Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.


(Bertold Brecht faleceu faz hoje 58 anos)
À boca da noite

Não olhes: é a noite
completa que tomba.

Não olhes: é a estrada
que, súbito, acaba.

Não olhes: é o anjo,
teu anjo que chora.

Não olhes.


(poeta mineiro nascido faz hoje 112 anos)