Páginas

segunda-feira, junho 30, 2014

Gota de chuva

Uma gota de chuva tremia na madressilva.

Toda a noite estava nessa humidade sombria
Que de repente
Iluminou a lua.


(poeta mexicano nascido faz hoje 75 anos)
Receita para fazer um herói

Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.


(poeta português falecido em Lourenço Marques faz hoje 55 anos)

domingo, junho 29, 2014

No suspiro

Pelas estradas da profundeza da alma
Pelas estradas azul-celeste
A erva-daninha viaja
As estradas se perdem
Sob os pés

Enxames de pregos violentam
As plantações cansadas
As lavouras desaparecem
Do campo

Lábios invisíveis
Apagaram o campo

A dimensão triunfa
Encantada pelas palmas de suas mãos lisas
Cinzalisas


(poeta sérvio nascido faz hoje 92 anos) 

Tradução de Aleksandar Jovanovic

sábado, junho 28, 2014

Anos, países, povos

Anos, países, povos
Fogem no tempo
Como água corrente.
A natureza é espelho móvel,
Estrelas - redes; nós - os peixes;
Visões da treva - os deuses.


(poeta russo falecido faz hoje 92 anos)

Tradução: Augusto de Campos

sexta-feira, junho 27, 2014

Zezé Motta faz hoje 66 anos
Consciência Cósmica

Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
e deveria rir, se me restasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...


(escritor brasileiro nascido faz hoje 106 anos)

quinta-feira, junho 26, 2014

HUMANIDADE

Encontrou-o caído à porta de casa.
Passou-lhe por cima,
a caminho do carro.
À tarde, quando regressou, ele continuava lá,
a cabeça contra o terceiro degrau.
Tinha o sangue seco, os olhos abertos.
Contornou-o e fechou a porta.
Não ligou as luzes,
reduziu o som da televisão.


(Maria Velho da Costa faz hoje 76 anos)

quarta-feira, junho 25, 2014

Arte Poética

Ah, o ofício,
as contorções da espera
entre a noite e a madrugada!
O litúrgico olhar abre cortinas,
o anjo adormeceu,
dança arbitrária
a minha barba de duzentos anos.
Quem poderá restituir-me intacto ao mistério
com o perfume de rosa não tocada?
Quem senão tu,
cântaro e fonte,
abrigo,
terra e pátria onde se esconde
a negra cicatriz que o peito ostenta?
Eis porque espero
(entre a noite e a madrugada)
para que salves
ou lances no infortúnio
o litúrgico olhar que em nova busca
apodrece sob um sol de desespero.


(poeta paraense nascido faz hoje 94 anos)

terça-feira, junho 24, 2014

Pela noite

Pela noite concedias-me o favor,
Abriam-se as portas do altar
E a nossa nudez iluminava o escuro
À medida que genuflectia. E ao acordar
Eu diria “abençoada sejas!”
Sabendo como pretensiosa era a bênção:
Dormias, os lilases tombavam da mesa
Para tocar-te as pálpebras num universo de azul,
E tu recebias esse sinal sobre as pálpebras
Imóveis, e imóvel estava a tua mão quente.


(poeta russo nascido a 24 de Junho de 1907)

segunda-feira, junho 23, 2014

Poema

As palavras arfando entre virilhas
entre lábios
cópulas de consoantes e vogais.
Saboreadas palavras
defloradas palavras
túmidas palavras
ávidas
oh! palavras
arfando umidamente entre pentelhos.
Suor. Calor. Odor. Linguagem. Gozo.


(poeta paraense que hoje faz 75 anos)

domingo, junho 22, 2014

Elegía

Morir serenamente como nunca he vivido
y ver pasar los coches como en una pantalla
y las canciones lentas de Nat King Cole
un saxofón un piano los atardeceres en las terrazas bajo los
                     parasoles
esta vida que nunca llegué a interpretar
el viento en los pasillos las ventanas abiertas todo es blanco
                     como en una clínica
todo disuelto como una cápsula de cianuro en la oscuridad
Se proyectan diapositivas con mi historia
entre el pesado olor del cloroformo
Bajo la niebla del quirófano extrañas aves de colores
 anidan


(poeta catalão que hoje faz 69 anos)

sábado, junho 21, 2014

Cai a semente

Cai a semente
Sem querer mentir ao sol,
naturalmente.

Cai a semente.
Sem poder mentir a si,
maduramente.


(poetisa carioca que hoje faz 51 ano)

sexta-feira, junho 20, 2014

Uma estrela trêmula

                               Tuas antenas trêmulas
0 som
         (subterrâneo)
                            que o teu silêncio chama
A palavra nenhuma que trazes para o almoço. Pães e peixes
                                                                               Para quem?
E o poema redemoinha no sono que rasgas.
                           Como rasgas esta noite enrolada em si mesma.

É entre centelhas que plantas o teu jorro.

É entre espinhos e pedras virgens que celebras essa estrela.
Todos os astros.


(poeta paraense nascido faz hoje 88 anos)

quinta-feira, junho 19, 2014

V Internacional

O poeta é visto todos os sábados no bar com um grupo de
jovens dentre eles um negro e um barbado

O poeta é visto todos os sábados no bar com um grupo de
jovens negros e barbados

O poeta é visto todos os sábados no bar com um grupo de
jovens barbados

O poeta é visto no bar com um grupo de jovens barbados

O poeta é visto no bar com um grupo de barbados

O poeta é visto com um grupo de barbados

O poeta é visto com uns barbados estranhos

O poeta é visto com uns barbados suspeitos

O poeta é visto com uns suspeitos

O poeta é um suspeito

O poeta é suspeito

O POETA É UM TERRORISTA


(poeta mineiro nascido faz hoje 86 anos)

quarta-feira, junho 18, 2014

Não me peçam razões

Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força da maré que me enche o peito,
Este mal  estar  no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.


(José Saramago faleceu faz hoje 4 anos)

terça-feira, junho 17, 2014

no teu coração

acordar, mexer nos búzios, elucidar
o coração: são as mais dóceis
tarefas.
andamos enganados nestas portas
de veludo, ou nos velhos tapetes
das ombreiras.
quando dormes, há um búzio que mexe
no teu coração.


(poeta viseense que hoje faz 70 anos)

segunda-feira, junho 16, 2014

Escolha

Entre vento e navalha escolho o vento
entre verde e vermelho aquele azul
que até na morte servirá de espelho
ao vento que por dentro me deslumbra
Entre ventre e cipreste escolho o Sol
Entre as mãos que se dão a que se oculta
Entre o que nunca soube o que já sobra
Entre a relva um milímetro de bruma.


(David Mourão-Ferreira faleceu faz hoje 18 anos)
Séticas

Entre cinco paredes e sete espetáculos
me vi ao teu espelho cravado
de setas e cintas
ao meio de nada:
- nós!

É que de longe te vejo melhor
e calculo
o diferente ontem.

Vaidade? Liberdade?
Poster idade...

Amanhã, no além ou no aquém,
nos encontraremos?
Ou tudo são flechas perdidas
nos encontros
postergados?


(poeta piauiense que hoje faz 81 anos)

domingo, junho 15, 2014

Esperança

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu fi-lo perfeitamente,
Para diante de tudo foi bom
bom de verdade
bem feito de sonho
podia segui-lo como realidade

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu sei-o de cor.
Até reparo que tenho só esperança
nada mais do que esperança
pura esperança
esperança verdadeira
que engana
e promete
e só promete.
Esperança:
pobre mãe louca
que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança
único que eu tenho
não me deixes sem nada
promete
engana
engano que seja
engana
não me deixes sozinho
esperança.


(Almada Negreiros faleceu faz hoje 44 anos)

sábado, junho 14, 2014

Feitiço

Sinto-me como
um Mago de uma magia menor.
Coloco as palavras
desordenadamente em ordem.
Versos tolos, fúteis e inúteis.
Não quero enfeitiçar ninguém.
Só eu mesmo e o papel.


(poeta carioca que hoje faz 44 anos)

sexta-feira, junho 13, 2014

É urgente o amor

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.


(Eugénio de Andrade faleceu faz hoje 9 anos)
Recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço


(Al Berto faleceu faz hoje 17 anos)
Cortejo Fúnebre

Corre-me nas veias um fogo de abandono...
Tenho uma auréola de névoa em meu olhar...
Embala o meu silêncio oco de sono
Uma sombra consciente de (o) embalar...
      Dobre a finados sem sinos
      Nos meus ócios peregrinos

Roçam mãos no meu corpo onde eu as não vejo
Passam asas no soslaio da minha atenção,
Um invisível bafo falha um beijo
Perto da minha face atenta em vão!!!
      Lá vai lento e lento o enterro
      Do que eu tinha de áureo no erro

Só me resta o fitar-me no espelho da verdade
E acompanhar-me com a ilusão de que vivi
Mas uma raiva súbita me invade:
Não saber eu quem sou, e o que é aqui!
      Nestes pós de fria terra
      A minha sombra me enterra.


(Fernando Pessoa nasceu faz hoje 126 anos)

quinta-feira, junho 12, 2014

Quando voltei ao mar de antigamente

Quando voltei ao mar de antigamente,
ao entardecer, no calor das avenidas
buscava os antigos companheiros...

Como lobo desvairado farejava
a sombra quente entre as casas. O cheiro
antigo e vazio empurrava-me para a ampla
praia frente ao mar aberto. Aí descobria
mais clara a amargura e a minha sombra
lunar imóvel sobre o cheiro antigo.


(poeta italiano nascido faz hoje 108 anos)

quarta-feira, junho 11, 2014

os fogos da fala

a fala aflora à flor da boca
às vezes como fogos de artifício
fulguração contra os terrores do silêncio
só espada espavento espelho
ou pedra ficção arremessada
ou canção para cantar as graças
as virilhas as maravilhas da amada
a deusa idolatrada do amor:
essa outra voz quase jazz
que subjaz ventríloqua de si mesma


(poeta mineiro que hoje faz 62 anos)