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terça-feira, dezembro 31, 2013

O corpo canta

o corpo canta;
o sangue uiva;
a terra conversa;
o  mar murmura;
o céu cala
e o homem escuta.


(Miguel de Unamuno faleceu a 31 de Dezembro de 1936)

segunda-feira, dezembro 30, 2013

As imagens

As imagens significam tudo a princípio. São sólidas. Espaçosas.
Mas os sonhos coagulam, fazem-se forma e desencanto.
Já o céu não há imagem que o fixe. A nuvem vista do
Avião: um vapor que nos tira a vista, o grou, um pássaro, mais nada
Até o comunismo, a imagem final, sempre refrescada
Porque lavada com sangue tantas vezes, o dia-a-dia
Paga-lhe um salário modesto, sem brilho, cego de suor,
Escombros os grandes poemas, como corpos muito tempo amados e
Postos de lado agora, no caminho da espécie exigente e finita
Nas entrelinhas lamentos

sobre ossos feliz o carregador de pedra

Porque o belo significa o fim provável dos terrores.


(escritor alemão falecido faz hoje 18 anos)

Tradução de João Barrento

domingo, dezembro 29, 2013

o morto

foi encontrado morto
não veio nos jornais
teve direito apenas a foto

mais tarde
lá se foi o corpo
para dentro
de uma saco de plástico

tenho pena que os pombos não tenham direito a funeral

há pombos que não são pombos
morrem sem um nome
de fome e frio
a cada três segundos
que uma criança sucumbe

hei-de comprar umas lentes de contacto
para o primeiro ministro
que não anda nos passeios públicos.


(poetisa coimbrã que hoje faz 68 anos)

sábado, dezembro 28, 2013

VIAGEM

Para habitar as planícies da ausência
e escalar os montes de tempo
que não vives

eis a secreta viagem
duma ave imaginária
em busca do instante
onde tudo recomeça


(poeta moçambicano que hoje faz 51 anos)

sexta-feira, dezembro 27, 2013

 estilos trocados

Meu futuro amor passeia - literalmente - nos
píncaros daquela nuvem.
Mas na hora de levar o tombo advinha quem cai.


 (poeta mineiro falecido a 27/12/1987)
Voz

Voz modelada na certeza irreal
da montanha que respira o húmus do vento,
espalha as sementes vegetais do sal,
nos lagos da terra, único alimento!
E os lagos se vestem de ondas que assaltam
a parede lisa deste quarto fechado:
a abóboda celeste que os anjos asfaltam
dum visgo babado…


(escritor amarantino nascido faz hoje 90 anos)

quinta-feira, dezembro 26, 2013

Jean Ferrat nasceu faz hoje 83 anos
elegia

já nada é o que era
e provavelmente nunca mais o será
e mesmo que o fosse
algo me diz que já não seria o que era
porque o que era
era o que era por ser o que era
do que eu me lembro muito bem
embora eu então não fosse o que agora sou
mas o que agora sou
ou estou a ser
é deixar de ser o que sou
porque eu sou deixando de ser
deixar de ser é a minha maneira de ser
sou a cada instante
o que já não sou
e o mesmo se deve passar com tudo o que é
motivo por que não admira que assim seja
quer dizer
quer nada seja o que era
e se assim é
ou  já não é
seja ou não seja


(escritor portuense que hoje faz 76 anos)

quarta-feira, dezembro 25, 2013

Natal Divino

Natal divino ao rés-do-chão humano,
Sem um anjo a cantar a cada ouvido.
Encolhido
À lareira,
Ao que pergunto
Respondo
Com as achas que vou pondo
Na fogueira.

O mito apenas velado
Como um cadáver
Familiar…
E neve, neve, a caiar
De triste melancolia
Os caminhos onde um dia
Vi os Magos galopar…


Miguel Torga
Handel  - Aleluia (Messias) - Choir of King’s College

terça-feira, dezembro 24, 2013

 Thomas Tallis: Missa Puer Natus Est Nobis - Gloria 
 The Tallis Scholars
enquanto é tempo

ninguém foi ver se eu estava na esquina
ou se, pelo menos, minha palavra estava
e dizia a que veio
batendo de frente
de perfil
de quina

a poesia é um escândalo
atrás do outro
o poeta, um bando
movido à cicatriz
e perdigoto

misto de mártir e meretriz
um poço
um passo
carne de pescoço
alma que foi pro espaço

todo santo dia
morre um de tanto beber
outro de atrofia
poucos de tanto escrever
muitos que ainda iriam ser
e não foram nem sombra
do que poderiam ter sido

ah! não farei um último pedido
a vida é um não sei
e a gente sabe
que é de lei
usar antes que acabe

antes que o peito
como um pneu furado
se esvazie, de tal jeito,
que o coração
ainda vivo
seja prensado, paralisado
sem emoção
sem motivo
sem ar
sem ter conjugado
na primeira pessoa
o verbo amar


(poeta paranaense nascido a 24 de Dezembro de 1950)

segunda-feira, dezembro 23, 2013

Paixão

Podia escrever o teu nome num vidro embaciado ou
segredá-lo a uma borboleta negra.

Podia cortar os pulsos e deixar o sangue correr até que
o mar ficasse vermelho.

Ou beijar-te os pés. Mas esse gesto está reservado
desde o princípio dos séculos e teria o sabor de uma
profanação.


(poeta vila-verdense que hoje faz 56 anos)

domingo, dezembro 22, 2013

PARA

TODOS OS AMIGOS DA BLOGOSFERA

UMAS




Memória

O mundo parou.
O tempo, tão implacável
em seu compasso,
tão cadenciado, também parou.
Tudo estacou, congelou,
ficou petrificado e mudo.

E eu, no mundo,
voltei ao passado
aproveitando a imutabilidade
das coisas, das pessoas, dos fatos,
e revivi momentos,
fiz meu próprio tempo
andar pra trás,
atrás de pra trás,
voltar os anos.

Eu e meu tempo,
o tempo e meu mundo,
o mundo e meu eu,
tudo a um só tempo
em um mesmo lugar
no meu imo.
Só aí.


(poeta pernambucano que hoje faz 66 anos)

sábado, dezembro 21, 2013

Las nubes

Inútilmente interrogas.
Tus ojos miran al cielo.
Buscas detrás de las nubes,
huellas que se llevó el viento.

Buscas las manos calientes,
los rostros de los que fueron,
el círculo donde yerran
tocando sus instrumentos.

Nubes que eran ritmo, canto
sin final y sin comienzo,
campanas de espumas pálidas
volteando su secreto,

palmas de mármol, criaturas
girando al compás del tiempo,
imitándole la vida
su perpetuo movimiento.

Inútilmente interrogas
desde tus párpados ciegos.
¿Qué haces mirando a las nubes,
José Hierro?


(poeta madrileno falecido faz hoje 11 anos)

sexta-feira, dezembro 20, 2013

Dá-me as Tuas Mãos

As mãos foram feitas
para trazer o futuro,
encurtar a tristeza, encher
o que fica das mãos
de ontem - intervalos
(duros, fiéis) das palavras,
vocação urgente
da ternura, pensamento
entreaberto até
aos dedos longos
pelas coisas fora
pelos anos dentro.


(poeta português nascido em Lourenço Marques a 20 de Dezembro de 1927 e falecido em Espanha em 1975, de acidente de viação)

quinta-feira, dezembro 19, 2013

Amigo

Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!

Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!

Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!


(Alexandre O'Neill nasceu faz hoje 89 anos)
Édith Piaf nasceu faz hoje 98 anos
Somos imagens fátuas

Uma tarde é tão pouco em nossa mão!
Os seus anéis deixados os pesamos
Com puros olhos; damos
Rigor ao que é recordação.

Depois a noite esculpe
Nossa extensão no sono.
A que erma catedral iremos nós de estátuas?
Sem um deus que nos culpe,
Tais os anéis de outono
Somos imagens fátuas.


(Vitorino Nemésio nasceu faz hoje 112 anos)

quarta-feira, dezembro 18, 2013

In Memoriam
Steve Biko faria hoje 67 anos
Stabat Mater

Stabat Mater
Esperando en la comisaría
Ante la sorna del alférez
Stabat Mater
Aguardando que concluya
La voraz semiología
De los médicos
Stabat Mater
Descuajeringada, entregada
A obstetrices somnolientas

Stabat Mater
Sola en la noche
Stabat Mater
En las vitrinas de las tiendas
En el día de la madre
Stabat Mater once veces Dolorosa
Y una grande voz le dijo
No llores más, mujer, desde hoy
Hay otro ángel en los cielos


(poeta peruano que hoje faria hoje 72 anos)

terça-feira, dezembro 17, 2013

Nunca serei vencida

Nunca serei vencida.
Não o serei
senão à força de vencer.

Cada armadilha estendida
fechando-me cada vez mais
no amor
que acabará por ser o meu
túmulo,
acabarei a minha vida numa cela
de vitórias.

Sozinha,
a derrota encontra chaves,
abre portas.

A morte,
para atingir o fugitivo,
tem de se pôr em movimento,
perder essa fixidez
que nos faz reconhecer
que ela é o duro contrário
da vida.

Ela dá-nos o fim do cisne
atingido em pleno voo,
de Aquiles agarrado pelos cabelos
por não sabermos que sombria Razão.

Como a mulher asfixiada no vestíbulo
da sua casa de Pompeia,
a morte não faz mais do que prolongar
no outro mundo os corredores
da fuga.

A minha morte será
de pedra.

Conheço as passagens,
as curvas,
as armadilhas,
todas as minas da Fatalidade.

Não posso perder-me.

A morte,
para me matar,
terá necessidade da minha
cumplicidade.


(Marguerite Yourcenar faleceu faz hoje 26 anos)

Tradução de Maria da Graça Morais Sarmento
Outono

Bosque de cobre,
Borboleta amarela,
Esquilo fulvo.


(Érico Veríssimo nasceu faz hoje 108 anos)

segunda-feira, dezembro 16, 2013

Deus

Fiquei farta de deus
do deus da minha infância
do deus impingido nas escolas
do deus de toda a gente

hoje cortei-o aos pedaços
e ofereci-o às estrelas
aos planetas e às galáxias
que dormitam no universo sideral

agora vogam perdidos
a milhares de anos-luz
na dança da poeira dos espaços.


(poetisa cabo-verdiana nascida faz hoje 86 anos)

domingo, dezembro 15, 2013

Vagabundagem

Anjo ou poeta?
Na treva, o meu cigarro é o farol do milagre.


(poeta catarinense nascido faz hoje 91 anos)

sábado, dezembro 14, 2013

Liberdade

Nos meus cadernos escolares
Na minha carteira e nas árvores
Na areia e na neve
Escrevo o teu nome

Em todas as páginas lidas
Em todas as páginas brancas
Pedra sangue papel ou cinza
Escrevo o teu nome

Nas imagens douradas
Nas armas dos guerreiros
Na coroa dos reis
Escrevo o teu nome

Na selva e no deserto
Nos ninhos nas giestas
No eco da minha infância
Escrevo o teu nome

Nas maravilhas nocturnas
No pão branco dos dias
Nas estações desposadas
Escrevo o teu nome

Em todos os meus trapos de azul
No charco sol bolorento
No lago de lua viva
Escrevo o teu nome

Nos campos no horizonte
Nas asas dos pássaros
E no moinho das sombras
Escrevo o teu nome

Em cada bafo da aurora
No mar nos navios
Na montanha demente
Escrevo o teu nome

Nas formas cintilantes
Nos sinos das cores
Na verdade física
Escrevo o teu nome

Nos atalhos despertos
Nas estradas abertas
Nas praças que extravasam
Escrevo o teu nome

No candeeiro que se acende
No candeeiro que se apaga
Nas minhas casas reunidas
Escrevo o teu nome

No fruto cortado em dois
Do espelho e do meu quarto
No meu leito concha vazia
Escrevo o teu nome

No meu cão guloso e meigo
Nas suas orelhas erguidas
Na sua pata desajeitada
Escrevo o teu nome

No trampolim da minha porta
Nos objectos familiares
No jorro do fogo abençoado
Escrevo o teu nome

Em toda a carne concedida
Na fronte dos meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo o teu nome

No vidro das surpresas
Nos lábios aplicados
Bem por cima do silêncio
Escrevo o teu nome

Nas ausências sem desejo
Na nua solidão
Nos degraus da morte
Escrevo o teu nome

Na saúde regressada
No risco desaparecido
Na esperança sem memória
Escrevo o teu nome

E pelo poder d’uma palavra
Recomeço a minha vida
Nasci para te conhecer
Para te nomear

Liberdade


(poeta da Resistência francesa, nascido a 14 de Dezembro de 1895)

Tradução de Egito Gonçalves