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sábado, agosto 31, 2013

Sérgio Godinho faz hoje 68 anos

Canção dedicada à minha companheira que hoje inicia a etapa da reforma após 48 anos de trabalho (e de descontos para a Segurança Social) na mesma empresa, sem um único dia de baixa por doença.
O Homem e o Mar

Homem livre, o oceano é um espelho fulgente
Que tu sempre hás-de amar. No seu dorso agitado,
Como em puro cristal, contemplas, retratado,
Teu íntimo sentir, teu coração ardente.

Gostas de te banhar na tua própria imagem.
Dás-lhe beijo até, e, às vezes, teus gemidos
Nem sentes, ao escutar os gritos doloridos,
As queixas que ele diz em mística linguagem.

Vós sois, ambos os dois, discretos tenebrosos;
Homem, ninguém sondou teus negros paroxismos,
Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos;
Os segredos guardais, avaros, receosos!

E há séculos mil, séculos inumeráveis,
Que os dois vos combateis n'uma luta selvagem,
De tal modo gostais n'uma luta selvagem,
Eternos lutadores ó irmãos implacáveis!


(Charles Baudelaire faleceu a 31 de Agosto de 1867)

Tradução de Delfim Guimarães

sexta-feira, agosto 30, 2013

Bob Dylan - Blowin' in the Wind 
Um Dos Capítulos

Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.

Albano Martins

(poeta fundanense)

Poema dedicado à minha filha, no dia do aniversário

quinta-feira, agosto 29, 2013

Nuvem

Gotas de suor da terra evaporadas
ao calor, e ao soprar das ventanias,
amarguras dos campos condensadas
rumo dos céus, lá nas alturas frias!
Para onde vais, fugindo assim às pressas,
tu que és filha daqui? Não te comove
o aspecto bruto, o horror medonho dessas
regiões em que há seis meses que não chove?
Peregrina, mimosa retirante,
nômade filha do sertão agreste,
pois é fado viver assim errante
quem nasceu nessas bandas do Nordeste?
Reclamam-te esses campos inditosos
a umidade fecunda dos teus beijos
na saudade dos rústicos festejos:
águas de enchentes, roças e outros gozos.
Nuvem - gases do vale, véus da serra -
para onde vais, fugindo assim em bando?
Filha rebelde e pródiga da terra,
quando é que um dia hás de voltar chorando?
O chão, o céu, os pássaros em coro,
rios, açudes, tudo mais enfim,
ressuscita à harmonia do teu choro.
O próprio sol se ameiga ao ver-te assim.
E cala o filho do sertão adusto,
que desde o berço até à campa sofre
a dor que lhe arranquei do peito angusto
e aqui fica gemendo nessa estrofe:
Ai! Para que plantar? Só para a mágoa
de assistir o espetáculo tremendo
de o que plantei aos poucos ir morrendo
à fartura de sol e à mingua d'água?
Nuvem, piedade! Ao menos com o manto
de tuas sombras cobre os sertões nus
para que o sol não queime a terra tanto
e o homem não viva amaldiçoando a luz!...


(poeta paraibano falecido faz hoje 38 anos)

quarta-feira, agosto 28, 2013

Taça

Pouco acima daquela alvíssima coluna
que é o seu pescoço, a boca é-lhe uma taça tal
que, vendo-a, ou, vendo-a, sem, na realidade, a ver,
de espaço a espaço, o céu da boca se me enfuna
de beijos - uns, sutis, em diáfano cristal
lapidados na oficina do meu Ser;
outros - hóstias ideais dos meus anseios,
e t o d o s cheios, t o d o s cheios
do meu infinito amor . . .
Taça
que encerra
por
suma graça
tudo que a terra
de bom
produz!
Boca!
o dom
possuis
de pores
louca
a minha boca
Taça
de astros e flores,
na qual
esvoaça
meu ideal!
Taça cuja embriaguez
na via-láctea do Sonho ao céu conduz!
Que me enlouqueças mais... e, a mais e mais, me dês
o teu delírio... a tua chama... a tua luz...


(poeta sergipano nascido faz hoje 125 anos)

terça-feira, agosto 27, 2013

A Noite

Mas a noite ventosa, a noite límpida
que a lembrança somente aflorava, está longe,
é uma lembrança. Perdura uma calma de espanto,
feita também ela de folhas e de nada. Desse tempo
mais distante que as recordações apenas resta
um vago recordar.

                   Às vezes volta à luz do dia,
na imóvel luz dos dias de Verão,
aquele espanto remoto.

                               Pela janela vazia
o menino olhava a noite nas colinas
frescas e negras, e espantava-se de as ver assim tão juntas:
vaga e límpida imobilidade. Entre a folhagem
que sussurrava na escuridão, apareciam as colinas
onde todas as coisas do dia, as ladeiras
e as árvores e os vinhedos, eram nítidas e mortas
e a vida era outra, de vento, de céu,
e de folhas e de coisa nenhuma.

                                        Às vezes regressa
na imóvel calma do dia a recordação
daquele viver absorto, na luz assombrada.


(poeta italiano falecido faz hoje 63 anos)

Tradução de Carlos Leite

segunda-feira, agosto 26, 2013

Não encontraste a rua

Não encontraste a rua
Não encontraste a casa
Não encontraste a mesa
No café que alguém
Por engano indicou.

Mas a cidade é esta
E não outra

Não encontraste o rosto
O anel caiu

Ninguém sabe aonde.


(poeta português falecido faz hoje 6 anos)

domingo, agosto 25, 2013

MOTIVOS

Por que a poeira da estrada já se faz pálida
Há um rumor clamando urgências.

Por que os olhos da noite já se tornaram glaucos
Há uma esteira iluminando ontens.

Por que as nuvens galopam desenhos do instinto
Há uma foice ceifando minutos.

Por que o presto está prestes a partir na aventura
Há grãos debulhando agoras.

Por que o desejo alimenta a lentidão
Há um pandeiro no ritmo de frevo.

Por que a fala já é rouca no eco das sílabas
Há um discurso rotulando verbos.

Por que a carícia se assola no solo da pele
Há uma partitura sem sons no silêncio da gruta.

Motivos existem circundando mandalas
Mandá-las soar as sete notas sem as pausas
Alimentar os ventos aventureiros
Cantar a canção de embalo da sesta
Preservar a sedução no horário do corpo
Soprar nuvens no céu dos neurônios
Bem assim o pedido para alongar a música.


(poeta amazonense falecido faz hoje 4 anos)

sábado, agosto 24, 2013

MEUS OLHOS

Os caminhos estão fechados

Há uma corda atando mundos
um cão fuçando a sombra
um porco na oquidão

Sou o soco nas costas do retardado
a órfã de castigo
o cego que aleijaram
pra completar o escuro

Sou a vampira que dá de mamar
o chiclete no cabelo da professora
o pirulito sobre o qual mijaram

Sou a raquete arrebentada
o omelete que não deu certo
o homem que se afogou no Canal da Mancha

Meus olhos se espalham
sobre a tua cara


(poeta paulista que hoje faz 46 anos)
Trajetória

na queda
fundou um reino
criou um pai
fez um leito
de pedra
para o corpo
de cristal


(poeta mineiro que hoje faz 58 anos)
Bem no fundo

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela - silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito sejas que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.


(poeta paranaense nascido faz hoje 69 anos)

sexta-feira, agosto 23, 2013

Lamentações - 1

"Amor?
Receios, desejos,
promessas de paraísos.
Depois sonhos, depois risos,
depois beijos!
Depois...
E depois, amada?
Depois dores, sem remédio,
depois pranto, depois tédio,
depois... nada!"


(poeta paulista falecido faz hoje 25 anos)

quinta-feira, agosto 22, 2013

Apenas

Sou apenas palavras soltas
no silêncio de minhas
paredes rotas.
Palavras que na sombra desprotegida
de trôpegos segredos
são desassossego não desejado
no coração e na memória.


(poetisa boliviana que hoje faz 64 anos)

quarta-feira, agosto 21, 2013

O rato e o anjo

Há um rato para cada português

Dos jornais

Anjo guardum
pra cada um

Da província

Um rato e um anjo de guarda
para cada.

Anjo defende o acto
mau,
a fazer ou a sofrer.

Rato celebra contrato?
Qual!

Rato rói,
até na orelha.
Anjo dói
de outra maneira.

Mas eis que,nestes enredos,
há dois a mais,um a menos.

Cai ao anjo a pena,
ao rato o pelame.
Um regressa ao seu enxame,
o outro à sua caverna.

E o português,desanjado,
já se vê desratizado.
Chora.


(Alexandre O'Neill faleceu faz hoje 27 anos)

terça-feira, agosto 20, 2013

Cloaca

beba                     coca                      cola
babe                                                    cola
beba                     coca
babe                     cola                       caco
caco
cola
c   l   o   a   c   a


(poeta paulista nascido faz hoje faz 86 anos)

segunda-feira, agosto 19, 2013

Terra Seca

Terra seca
terra quieta
de noites
imensas.

(Vento no olival,
vento na serra.)

Terra
velha
do candil
e da pena.
Terra
das fundas cisternas.

Terra
da morte sem olhos
e das flechas.

(Vento dos caminhos.
Brisa nas alamedas.)


(poeta andaluz assassinado faz hoje 77 anos)

domingo, agosto 18, 2013

ORDEM

A ordem é partir para o outro mundo
Mas por que tenho de deixar as minhas coisas
abandonadas na Gare da vida?


(poeta gaúcho que hoje faz 87 anos)

sábado, agosto 17, 2013

Construção

Um grito pula no ar como foguete.
Vem da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos.
O sol cai sobre as coisas em placa fervendo.
O sorveteiro corta a rua.

E o vento brinca nos bigodes do construtor.


(Carlos Drummond de Andrade faleceu faz hoje 26 anos)
Dez mandamentos

Para a Márcia Pereira

UM
todo mundo quer ser alguém
ninguém admite ser algum

DOIS
todo mundo exige para agora
ninguém aguenta esperar para depois

TRÊS
todo mundo fura fila
ninguém cede a vez

QUATRO
todo mundo age como um ator
ninguém sabe que a vida não é teatro

CINCO
todo mundo sabe gritar: "Eu faço!"
ninguém sabe sussurrar: "Eu brinco..."

SEIS
todo mundo engole absurdos
ninguém desobedece a estúpidas leis

SETE
todos se creem livres
ninguém sabe que é marionete

OITO
todos se julgam complacentes
ninguém imagina o quanto é afoito

NOVE
todos adoram o sol
ninguém sabe quão importante é quando chove

DEZ
todos só sonham seus próprios sonhos
ninguém vê a vida por outro viés?


(escritor carioca que hoje faz 37anos)

sexta-feira, agosto 16, 2013

O neoliberal (excerto)

o neoliberal
sonha um mundo higiênico:
um ecúmeno de ecônomos
de economistas e atuários
de jogadores na bolsa
de gerentes
de supermercado
de capitães de indústria
e latifundários de
banqueiros
- banquiplenos ou
banquirrotos
(que importa?
dede que circule
autoregulante
o necessário
plusvalioso
numerário)
um mundo executivo
de mega-empresários
duros e puros
mós sem dó
mais atento ao lucro
que ao salário
solitários (no câncer)
antes que solidários:
um mundo onde deus
não jogue dados
e onde tudo dure para sempre
e sempremente nada mude
um confortável
estável
confiável
mundo contábil.


(poeta paulista falecido faz hoje 10 anos)
Poeminha Dubitativo

Não,
Eu não tenho medo do fim.
Mas,
E se o mundo terminar
Antes de mim?


(Millôr Fernandes nasceu faz hoje 90 anos)
Na Terra dos Leprechauns

 Vou andar uma semana por um país que há muito desejava conhecer, mas a poesia e a música vão continuar a frequentar esta tasca.

quinta-feira, agosto 15, 2013

Urbanização

Tudo o que vivêramos
um dia fundiu-se
com o que estava
a ser vivido.
Não na memória
mas no puro espaço
dos cinco sentidos.
Havíamos estado no mundo, raso,
um campo vazio de tojo seco.

Depois, alguém
urbanizou o vazio,
e havia casas e habitantes
sobre o tojo. E eu,
que estivera sempre presente,
vi a dupla configuração de um campo,
ou a sós em silêncio
ou narrando esse meu ver.


(Fiama Hasse Pais Brandão nasceu faz hoje 85 anos)

quarta-feira, agosto 14, 2013

O Horror de ser Pobre

Risco c'um traço
(Um traço fino, sem azedume)
Todos os que conheço, eu mesmo incluído.
Para todos estes não me verão
Nunca mais
Olhar com azedume.

O horror de ser pobre!
Muitos gabavam-se que aguentariam, mas era ver-
-lhes as caras alguns anos depois!
Cheiros de latrina e papéis de parede podres
Atiravam abaixo homens de peitaça larga como toiros.
As couves aguadas
Destroem planos que fazem forte um povo.
Sem água de banho, solidão e tabaco
Nada há que exigir.
O desprezo do público
Arruína o espinhaço.
O pobre
Nunca está sozinho. Estão todos sempre
A espreitar-lhe pra o quarto. Abrem-lhe buracos
No prato da comida. Não sabe pra onde há-de ir.
O céu é o seu tecto, e chove-lhe lá pra dentro.
A Terra enxota-o. O vento
Não o conhece. A noite faz dele um aleijado. O dia
Deixa-o nu. Nada é o dinheiro que se tem. Não salva ninguém.
Mas nada ajuda
Quem dinheiro não tem.


(Bertold Brecht faleceu faz hoje 57 anos)

Tradução de Paulo Quintela
Toada dos que não podem amar

Os que não podem amar
estão cantando.
A luz é tão pouca, o ar é tão raro
que ninguém sabe como eles ainda vivem.
Os que não podem amar
estão cantando,
estão cantando,
e morrendo.

Ninguém ouve o canto que soluça
por detrás das grades.


(poeta mineiro nascido faz hoje 111 anos)

terça-feira, agosto 13, 2013

Pré-história

Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou-se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, para ninguém!
Cai no álbum de retratos.


(poeta mineiro falecido faz hoje 38 anos)

segunda-feira, agosto 12, 2013

Frustração

Foi bonito
O meu sonho de amor.
Floriram em redor
Todos os campos em pousio.
Um sol de Abril brilhou em pleno estio,
Lavado e promissor.
Só que não houve frutos
Dessa primavera.
A vida disse que era
Tarde demais.
E que as paixões tardias
São ironias
Dos deuses desleais.


(Miguel Torga nasceu faz hoje 106 anos)
Floresta

De olhos fechados
mergulho em teu ventre.
Perfumes se encontram
no meu rosto. Braços
apanham meus cabelos.

Braços leves, pesados,
amorosos ou rudes,
Braços de cedro
ou espinheiro,
de parasitas
ou cravos selvagens.

No ar e na boca
um gosto de erva
amanhecida. Um gosto
de coisa lavada.
Um ar de chuva
e terra. Um gosto
de mundo amanhecendo.

Oh, enveredar
por esse mundo livre
e ser uma entre as árvores
que formam o volume
do teu rosto.

Enveredar por esse mundo livre.
Conhecer a geografia
do teu peito. Misturar-me
à conversa das folhas
e adivinhar o casamento
secreto das raízes!


(poetisa gaúcha nascida faz hoje 108 anos)