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quarta-feira, novembro 30, 2011

Bóiam leves, desatentos


Bóiam leves, desatentos
Meus pensamentos de mágoa,
Como no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos

Do corpo morto das aguas.
Bóiam como folhas mortas,
A tona de águas paradas.
São coisas vestindo nadas,

Pós remoinhando nas portas
Das casas abandonadas.
Sono de ser, sem remédio,

Vestígio do que não foi,
Leve mágoa, breve tédio,
Não sei se para, se flui;
Não sei se existe ou se dói.

Palavras: Fernando Pessoa
Música e voz: Edu Lobo
Entre o luar e a folhagem

Entre o luar e a folhagem, 
Entre o sossego e o arvoredo,
Entre o ser noite e haver aragem
Passa um segredo.
Segue-o minha alma na passagem.
Ténue lembrança ou saudade,
Princípio ou fim do que não foi, 
Não tem lugar, não tem verdade.
Atrai e dói.

Segue-o meu ser em liberdade.

Vazio encanto ébrio de si,
Tristeza ou alegria o traz ?
O que sou dele a quem sorri ?
Nada é nem faz.
Só de segui-lo me perdi.


(Fernando Pessoa faleceu a 30 de Novembro de 1935)

terça-feira, novembro 29, 2011

El necio


Para no hacer de mi icono pedazos,
para salvarme entre únicos e impares,
para cederme un lugar en su Parnaso,
para darme un rinconcito en sus altares
me vienen a convidar a arrepentirme,
me vienen a convidar a que no pierda,
mi vienen a convidar a indefinirme,
me vienen a convidar a tanta mierda.

Yo no sé lo que es el destino,
caminando fui lo que fui.
Allá Dios, que será divino:
yo me muero como viví.

Yo quiero seguir jugando a lo perdido,
yo quiero ser a la zurda más que diestro,
yo quiero hacer un congreso del unido,
yo quiero rezar a fondo un hijonuestro.
Dirán que pasó de moda la locura,
dirán que la gente es mala y no merece,
mas yo seguiré soñando travesuras
(acaso multiplicar panes y peces).

Dicen que me arrastrarán por sobre rocas
cuando la Revolución se venga abajo,
que machacarán mis manos y mi boca,
que me arrancarán los ojos y el badajo.
Será que la necedad parió conmigo,
la necedad de lo que hoy resulta necio:
la necedad de asumir al enemigo,
la necedad de vivir sin tener precio.


(cantautor cubano nascido a 29 de Novembro de 1946)
A alma das coisas

“Bela esta manhã, sem carência de mito.”
                           Drummond
Bela esta tarde repleta de nuvens,
belo o enredo do amar, em que choram
as chaves do corpo, a alma das coisas.

São alvos os caninos noturnos.
A agonia consciente e inconsciente,
passando ao sol poente.

No azimute, ao norte, a morte.
Bússola que nos orienta.

De tudo que nos é atento
salvam-se os salmos, ramos de pureza,
mágicas canções, a clava dos que oram,
violão nos olhos da aurora.

Lento é o visgo
de quem vive pra dentro.

Joaquim Moncks

(poeta gaúcho)

segunda-feira, novembro 28, 2011

Jardineiro insensato

Passou a vida
A cultivar sem saber
A flor da morte.


(Érico Lopes Veríssimo faleceu a 28 de Novembro de 1975)

Benito Di Paula nasceu a 28 de Novembro de 1941
A Canção da Saudade

Que tarde imensa e fria!
Lá fora o vento rodopia...
Dança de folhas...
Folhas, sonhos vãos, que passam,
nesta dança transitória,
deixando em nós,
no fundo da memória,
o olhar de uns olhos e
a carícia de umas mãos...

Ante a moldura de um retrato antigo,
põe-se a gente a evocar
coisas emocionais.
Tolda-se o olhar, o lábio treme,
a alma se aperta,
tudo deserto...
A vida em torno tão deserta...
Que vontade nos vem de sofrer mais!

Depois, há sempre um cofre
e desse cofre
tiramos velhas cartas, devagar...
É a volúpia enervante de quem sofre:
ler velhas cartas e depois chorar...
Que tarde imensa e fria!
Nunca mais te verei...
Nunca mais me verás...
Lá fora o vento rodopia...
Que desejo me vem de sofrer mais!


(poeta pernambucano falecido a 28 de Novembro de 1958)

domingo, novembro 27, 2011

Acordai

Fernando Lopes Graça faleceu a 27 de Novembro de 1994
MAL-ASSOMBRADO

Paredes altas, nuas, planas, desertas.
As cortinas modulam formas de colunas longas...
Luz indireta, luz diabólica...
Tocavas no piano grande e negro harmonias transparentes:
havia um ponto muito brilhante na tua mão.

Eu tive medo de ver a tua alma.

Joaquim Cardozo

(poeta pernambucano)

sábado, novembro 26, 2011

Centenário
Mário Lago nasceu em 26 de Novembro de 1911
Atrás dos tempos vêm tempos


Fausto Bordalo Dias nasceu  a 26 de Novembro de 1948
voz numa pedra

Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Isis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco em flecha negro e azul do vento

Não digo como o outro: sei que não sei nada
sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do menstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe essa cidade futura
onde «a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela»
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhas como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
a machadada e o propósito de não sacrificar-se não construirão ao sol coisa nenhuma
nada está escrito afinal


(Mário Cesariny faleceu a 26 de Novembro de 2006)
Esqueletos erguidos à aragem

Esqueletos erguidos à aragem
Troncos de árvore verdes um dia
As pedras nada as recobre
Uma nuvem de fumo percorre
Um espaço de degredo.

O mistério do homem perdeu-se
Cinza espalhada num mar de mundo.


(escritor bracarense nascido a 25 de Novembro de 1965)

Retirado daqui

quinta-feira, novembro 24, 2011

In memoriam

Freddie Mercury faleceu a 24 de Novembro de 1991
Poema da Morte na Estrada

Na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
estão quinhentos mortos com os olhos abertos.

A morte, num sopro, colheu-os aos molhos.
Nem tiveram tempo para fechar os olhos.

Eles bem sabiam dos bancos da escola
como os homens dignos sucumbem na guerra.
Lá saber, sabiam.
A mão firme empunhando a espada ou a pistola,
morrendo sem ceder nem um palmo de terra.

Pois é.
Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis,
não lhes deu tempo para serem heróis.

Eles bem sabiam que o último pensamento
devia estar reservado para a pátria amada.
Lá saber, sabiam.
Mas veio de lá a bomba e destruiu tudo num só momento.
Não lhes deu tempo para pensar em nada.

Agora,
na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
são quinhentos mortos com os olhos abertos.

António Gedeão, in  Linhas de Força

Rómulo Vasco da Gama de Carvalho nasceu a 24 de Novembro de 1906

quarta-feira, novembro 23, 2011

O Aroma da Vida

Carlinhos Brown nasceu a 23 de Novembro de 1962
Equação Neoliberal

Tirar de quem ganha +
e dar a quem ganha muito +

Tirar de quem ganha muito
e dar a quem ganha um pouco +

Tirar de quem ganha + ou —
e dar a quem ganha sempre +

Joaquim Branco

(poeta mineiro)

terça-feira, novembro 22, 2011

Em oração














Em Luanda, Passos Coelho terá rezado a “são” José Eduardo ou a “santa” Isabel?
Nas noites excessivas

Para poderem atenuar a cruel inclinação
das sombras nos alpendres, quando os pátios
virados a sul manobram a direcção dos ventos,
elas partem os vidros de todas as janelas,
como se soubessem o caminho da morte
nas noites excessivas.
E abrem os olhos à lâmina da cegueira
para que os espelhos atravessem a nitidez
da voz enrouquecida de tanta mudez.


(poetisa figueirense nascida a 22 e Novembro de 1946)

segunda-feira, novembro 21, 2011

Björk

Björk nasceu a 21 de Novembro de 1965
Da moral

O medo como didática
para que a ave tema o voo,
mas vá tatear seu limite -
nuvem com o enjoo de
quem almeja alturas.
O medo como ginástica
e como toda, incômoda,
exigente em sua dor exata,
não como o bisturi da plástica
que faz da ruga seu remendo.
O medo de quem não mata,
e mesmo minúsculo vai sendo.

João Filho

(poeta baiano)

domingo, novembro 20, 2011

León Gieco nasceu a 20 de Novembro de 1951
um poema branco

a Octávio Paz

antes do abismo da página
antes do que ao branco
se sucede

um poema atávico

o que o silêncio dilacera
sob nuvem branca
se desmancha

em noite clara se circunscreve

João Evangelista Rodrigues

(poeta mineiro)

sábado, novembro 19, 2011

Uma mulher vestida de sol

A Ariano Suassuana

Vestida de sol, manto
forte e luminado.
Na terra calcinada
e agreste, num pedaço
de chão pelo sangue lavado.

Vestida de sol, o peito
apunhalado, a terra
aberta espera a mulher;
o ventre engravidado.

Vestida de sol, morta
pelo amor que, na vida,
entre o chumbo incandescente,
punhais de prata, ginetes
e sangue de parentes, vestiu-se de sol,
a cor que no Sertão vive asperamente.

Sol soberano e sertanejo,
ave de rapina pregado no céu,
cobrindo com o manto quente:
a mulher pura, vestida de sol,
eternamente.


(escritor recifense nascido a 19 de Novembro de 1941)

sexta-feira, novembro 18, 2011


Kim Wilde nasceu a 18 de Novembro de 1960
O Jardim das Oliveiras

Se procuro o teu rosto
no meio do ruído das vozes
quem procura o teu rosto?

Quem fala obscuramente
em qualquer sítio das minhas palavras
ouvindo-se a si próprio?

Às vezes suspeito que me segues,
que não são meus os passos
atrás de mim.

O que está fora de ti, falando-te?
Este é o teu caminho,
e as minhas palavras os teus passos?

Quem me olha desse lado
e deste lado de mim?
As minhas dúvidas, até elas te pertencem?


(Manuel António Pina nasceu a 18 de Novembro de 1943)
Declaração de incomodidades




quinta-feira, novembro 17, 2011

Filosofar é Preciso

Na juventude, não devemos hesitar em filosofar; na velhice, não devemos deixar de filosofar. Nunca é cedo nem tarde demais para cuidar da própria alma. Quem diz que não é ainda, ou já não é mais, tempo de filosofar, parece-se ao que diz que não é ainda, ou já não é mais, tempo de ser feliz. Jovens ou velhos, devemos sempre filosofar; no último caso, para rejuvenescermos ao contacto do bem, pela lembrança dos dias passados, e no primeiro, para sermos, embora jovens, tão firmes quanto um ancião diante do futuro. É mister, pois, estudar os meios de adquirir a felicidade; quando a temos, temos tudo; quando a não temos, fazemos tudo por adquiri-la.

Epicuro, in "A Conduta na Vida"

Conta a mutilação genital feminina


Vi e ouvi a jornalista e cantora há pouco na RTP e decidi partilhar
A Revolução não se burocratiza

Pior que não cantar
é cantar sem saber o que se canta

Pior que não gritar
é gritar só porque um grito algures se levanta 

Pior que não andar
é ir andando atrás de alguém que manda

Sem amor e sem raiva as bandeiras são pano
que só vento electriza
em ruidosa confusão
de engano

A Revolução
não se burocratiza


(Mário Dionísio faleceu a 17 de Novembro de 1993)

quarta-feira, novembro 16, 2011

Poema à boca fechada

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.


(José Saramago faria hoje 89 anos)

terça-feira, novembro 15, 2011


Celso Fonseca nasceu a 15 de Novembro de 1956
E o povo como fica?

"FOR SALE"
Vende-se tudo!
Aumentam-se os impostos!
Para cada nova inconveniente instância
Novos ajustes legais são propostos
E o direito se vê prostituído a toda entrância
... E mais e mais se dá,
A ganância,
Mais e mais se quer tomar,
Dinheiro não se tem para nada.
É o Caos Instituído
Nesta Ditadura Constitucional
Na sucata estagnada.
Não há como parar
A queda em disparada.
A saúde está "mal".
A fome medra
Levando o honesto às esmolas.
O que falta em escolas
Aos filhos da nação
Sobra, nos palácios, em construção.
Num verdadeiro angu de caroço
O povo vai-se afogando,
Como um penoso,
... Digamos um ganso...
E o que é pior,
Até agora só foi a cabeça,
Falta o pescoço.

João Milton Fórtes Furtado

(poeta brasileiro)

segunda-feira, novembro 14, 2011

O Regime

Era uma vez um Regime...
O Silêncio se esvaiu.
Foi numa das inúmeras brigas com o Regime...
- Te proíbo de andar com esse tal Reflexão! Encerra-te aos pós orgasmos e as lágrimas tristes das
eternidades rápidas, estes são teus limites. Disse ele.
Assim ficou imposto.
Dentre todos os Momentos reunidos na Vida,
o Ninguém falou nada.
E o Ponto Final deu um sorriso discreto.
Então, Silêncio, quase findo,
proferiu suas últimas palavras:
............................................... .

João Doleske Saikoski Neto

(poeta gaúcho)
A oeste tudo igual...


domingo, novembro 13, 2011

O que mais me incomoda

O que mais me preocupa
ou incomoda
é como manter o equilíbrio
quando já me cortaram a corda.
É como preencher o vazio
quando ele transborda,
é não se atirar nos abismos
quando se ama a trajetória
da queda
e se odeia a borda.

João Andrade

(poeta norte-riograndense)

sábado, novembro 12, 2011


Henryk Górecki faleceu a 12 de Novembro de 2010



Noturno

Não sou o que te quer. Sou o que desce
a ti, veia por veia, e se derrama
à cata de si mesmo e do que é chama
e em cinza se reúne e se arrefece.
Anoitece contigo. E me anoitece
o lume do que é findo e me reclama.
Abro as mãos no obscuro. Toco a trama
que lacuna a lacuna amor se tece.
Repousa em ti o espanto que em mim dói,
norturno. E te revolvo. E estás pousada,
pomba de pura sombra que me rói.
E mordo teu silêncio corrosivo,
chupo o que flui, amor, sei que estou vivo
e sou teu salto em mim, suspenso em nada.


(poeta carioca nascido a 12 de Novembro de 1940)

sexta-feira, novembro 11, 2011

Lá se foi à Viola

Porque perdeu a mamata,
o povo ficou medonho:
quebrou os copos e os pratos,
xingou, pintou e berrou.

Lembrou-se então de Tibério,
pediu justiça a  Pilatos,
batendo o pé e berrando.

O rei de Roma acudiu,
se levantou do caixão
e o papa fez um aceno,
chamando aquele rebanho
que vinha com Caifaz. 

A igreja benzeu o povo
e excomungou quem matou
a vaca que dava leite.

Porém aquela mamata
não quer voltar nem a gancho.

Só pode ser o demônio
quem mata a vaca leiteira,
tirando o leite do povo,
fazendo esta desgraceira.


(poeta baiano nascido a 11 de Novembro de 1901)
POR VEZES

Quando conheces alguém
mais inteligente ou mais estúpido do que tu -
não faças caso disso.
As formigas e os deuses,
acredita, sentem o mesmo.
Que exista mais gente na China,
digamos, que em San Marino,
não é uma desgraça.
A maioria das pessoas, sem dúvida, é
mais negra ou mais branca que tu.
Por vezes és um gigante,
qual Gulliver, ou um anão.
Em algum lugar ou outro estás sempre a descobrir
uma beleza ainda mais radiante,
alguém ainda pior.
És medíocre,
felizmente. Aceita-o!
Sete graus centígrados a mais
ou a menos no termómetro -
e estarias além da salvação.


(poeta alemão nascido a 11 de Novembro de 1929)

quinta-feira, novembro 10, 2011

Suor
 
O suor é filho do cérebro
cujos miolos pensam coisas
difíceis.
O suor não basta para esfriar
o corpo.

A nós deveria ser dado
porejar o mar.

João Adalberto Campato Júnior

(poeta paulista)



Greg Lake, membro fundador, vocalista e guitarrista dos King Crimson e dos Emerson Lake & Palmer, além de cantar a solo e escrever excelentes canções como estes Lucky Man e The Sage, nasceu a 10 de Novembro de 1947.

quarta-feira, novembro 09, 2011

Pra Dizer Adeus


Autoria: Edu Lobo e Torquato Neto

Interpreta: Jobim Project
Robert Persi : Piano
Nina Papa: Voz
Jean-Luc Danna: Bateria
Jean-Marc Jafet: Baixo
Philippe Dufour: Guitarra e voz
Olivier Ker Ourio: Harmónica 
Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.


(poeta piauiense nascido a 9 de Novembro de 1944)

terça-feira, novembro 08, 2011

Aceno de vendaval...

O vento frio do norte cortou violento
Os caracóis rubros das ondas
Encrespando a calmaria suspeita
De um leito em latente ebulição...
Um violão, um fado amansado,
Calado, chora lamentos em surdina,
E eu, no vislumbre da distante luz,
Carrego tua cruz, por um instante...
És pluma que a aragem roubou
De um anjo no seu vôo consagrado...
És pensamento que a paixão criou
Num momento de desmedido encanto...
Amo-te, térmica em todos teus andares,
Etérea fusão de todos os elementos divinos,
Metade anjo, outra metade não sei...
De todas as incongruências a sublime unidade...

Jean-Pierre Barakat

(poeta libanês radicado no Brasil)

segunda-feira, novembro 07, 2011

Guerra

Tanto é o sangue
que os rios desistem de seu ritmo,
e o oceano delira
e rejeita as espumas vermelhas.

Tanto é o sangue
que até a lua se levanta horrível,
e erra nos lugares serenos,
sonâmbula de auréolas rubras,
com o fogo do inferno em suas madeixas.

Tanta é a morte
que nem os rostos se conhecem, lado a lado,
e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.

Oh, os dedos com alianças perdidos na lama...
Os olhos que já não pestanejam com a poeira...
As bocas de recados perdidos...
O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes...

Tanta é a morte
que só as almas formariam colunas,
as almas desprendidas... - e alcançariam as estrelas.

E as máquinas de entranhas abertas,
e os cadáveres ainda armados,
e a terra com suas flores ardendo,
e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,
e este mar desvairado de incêndios e náufragos,
e a lua alucinada de seu testemunho,
e nós e vós, imunes,
chorando, apenas, sobre fotografias,
- tudo é um natural armar e desarmar de andaimes
entre tempos vagarosos,
sonhando arquiteturas.


(poetisa carioca nascida a 7 de Novembro de 1901)

domingo, novembro 06, 2011

O Dia Inicial


Palavras de Sophia de Mello Breyner ditas por Ruy de Mattos e cantadas e acompanhadas ao piano por Isabel Cid.
Exílio

Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades


(Sophia de Mello Breyner nasceu no Porto a 6 de Novembro de 1919)

sábado, novembro 05, 2011

Atropelo

Depois do passo em falso
o sangue correu pelo asfalto.
Agora,
o vermelho do semáforo
não lhe proíbe
mais nada.

Jaime Vieira

(poeta paranaense)

sexta-feira, novembro 04, 2011

Serenata

Caem à noite pedras
sobre o templo
do silêncio
de espaço
um ruído de automóvel
um toque de sinos de uma igreja
monotonia diurna que não quebra
a queda das pedras
no silêncio

De dia o templo é
noite
e à noite há o silêncio
o esgaravatar de uma gaivota em fogo
o estalar de folhas novas
numa árvore
sabendo a vício este cigarro
de cheira a seiva dos pinheiros

E as pedras caem
como chuva ou neve
todas as noites que noites
já são poucas

E a seiva pedra sobre o templo
e a gaivota
o vício
a folha
quebrando este silêncio

Onde as guitarras?
Os quissanges acontecem longe

Manuel Rui

(poeta angolano nascido a 4 de Outubro de 1941)

quinta-feira, novembro 03, 2011

Noite

Depois do sono dos mortais
restará o cântico dos ciprestes...
E um imenso coro abstrato
de anjos pálidos e nus
entoará um hino primaveril
para a multidão indistinta
da cidade dos epitáfios...

Jácomo Mandatto

(poeta paulista
Círculo (quase) completo


quarta-feira, novembro 02, 2011


Roubam-me Deus,
outros o Diabo
- quem cantarei?

roubam-me a Pátria;
e a Humanidade
outros ma roubam
- quem cantarei?

sempre há quem roube
quem eu deseje;
e de mim mesmo
- todos me roubam

roubam-me a voz
quando me calo,
ou o silêncio
mesmo se falo
- aqui d'El Rei!

Jorge de Sena

Música e voz: Zeca Afonso (álbum "traz outro amigo também")
Ode à Mentira

Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,
como sereis cruéis, como sereis injustas?
Quem torturais, quem perseguis,
quem esmagais vilmente em ferros que inventais,
apenas sendo vosso gemeria as dores
que ansiosamente ao vosso medo lembram
e ao vosso coração cardíaco constrangem.
Quem de vós morre, quem de por vós a vida
lhe vai sendo sugada a cada canto
dos gestos e palavras, nas esquinas
das ruas e dos montes e dos mares
da terra que marcais, matriculais, comprais,
vendeis, hipotecais, regais a sangue,
esses e os outros, que, de olhar à escuta
e de sorriso amargurado à beira de saber-vos,
vos contemplam como coisas óbvias,
fatais a vós que não a quem matais,
esses e os outros todos... - como sereis cruéis,
como sereis injustas, como sereis tão falsas?
Ferocidade, falsidade, injúria
são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso
o coração que apavorado em vós soluça
a raiva ansiosa de esmagar as pedras
dessa encosta abrupta que desceis.
Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo.
Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos?
Descereis, descereis sempre, descereis.


(Jorge de Sena nasceu a 2 de Novembro de 1919)

terça-feira, novembro 01, 2011

Sangue

Versos
escrevem-se
depois de ter sofrido.
O coração
dita-os apressadamente.
E a mão tremente
quer fixar no papel os sons dispersos...

É só com sangue que se escrevem versos.


(poeta vila-condense nascido a 1 de Novembro de 1902)