Dois Países, destinos opostos
Nas eleições democráticas do Uruguai ganhou José Mujica, antigo guerrilheiro tupamaro e candidato da progressista Frente Ampla.
Na farsa golpista das Honduras, apenas reconhecida pelo “grande irmão” do norte e seus homens de mão, aparentemente teve mais votos o conservador Pepe Lobo, num arremedo de eleições com uma abstenção de 70%.
How many times must a man look up, Before he can see the sky? How many ears must one man have, Before he can hear people cry? The answer, my friend, is blowin' in the wind. The answer is blowin' in the wind.
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segunda-feira, novembro 30, 2009
Não
Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.
Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...
Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?
Álvaro de Campos
Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.
Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...
Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?
Álvaro de Campos
domingo, novembro 29, 2009
sábado, novembro 28, 2009
Fingimento
Iludo o sentido
Da vida em que vivo.
O mundo que sinto
É mundo que minto.
É mundo pensado
Aquém, do outro lado
Da margem do rio
Com águas em fio.
A imagem dos astros,
Das velas, dos mastros,
Das nuvens, das margens
É sombra de imagens.
Perdidas no fundo
Do engano do mundo.
Não quero a certeza
Da minha tristeza.
Deixai-me à vontade
Naquela verdade
Pensada e fingida
Que é logro de vida.
Se minto o que sinto,
De tudo o que minto
Iludo o sentido
Da vida que vivo.
José Campos de Figueiredo
Iludo o sentido
Da vida em que vivo.
O mundo que sinto
É mundo que minto.
É mundo pensado
Aquém, do outro lado
Da margem do rio
Com águas em fio.
A imagem dos astros,
Das velas, dos mastros,
Das nuvens, das margens
É sombra de imagens.
Perdidas no fundo
Do engano do mundo.
Não quero a certeza
Da minha tristeza.
Deixai-me à vontade
Naquela verdade
Pensada e fingida
Que é logro de vida.
Se minto o que sinto,
De tudo o que minto
Iludo o sentido
Da vida que vivo.
José Campos de Figueiredo
sexta-feira, novembro 27, 2009
quinta-feira, novembro 26, 2009
In memoriam
O homem em eclipse
Ora foi que certo dia
o homem eclipsou-se
a data digam a data
a datazinha faz favor
qual data foi por decreto
que a gente se eclipsou
foi só manobra espertice
um dois três e pronto é noite
que nem a lua apareça
seja de que lado for
Uns seguraram-se logo
eram espertos bem se viu
outros caíram ao mar
com cabeça pernas e tudo
quanto a mim perdi a calma
fiquei desaparafusado
tradição cultura estilo
certeza amigos fatiota
tudo fora do seu sítio
um desaparafuso terrível
Segurem-me camaradas
sinto pernas a boiar
cheiro fantasmas enxofre
estou aqui mas posso voar
o parafuso da língua
vai partido vai saltar
agarrem-me! agarra!
pronto
pari o mais leve que o ar
Mário Cesariny
Pintura: Óleo sobre almofada de tecido - Homenagem a Mário Henrique Leiria
O homem em eclipse
Ora foi que certo dia
o homem eclipsou-se
a data digam a data
a datazinha faz favor
qual data foi por decreto
que a gente se eclipsou
foi só manobra espertice
um dois três e pronto é noite
que nem a lua apareça
seja de que lado for
Uns seguraram-se logo
eram espertos bem se viu
outros caíram ao mar
com cabeça pernas e tudo
quanto a mim perdi a calma
fiquei desaparafusado
tradição cultura estilo
certeza amigos fatiota
tudo fora do seu sítio
um desaparafuso terrível
Segurem-me camaradas
sinto pernas a boiar
cheiro fantasmas enxofre
estou aqui mas posso voar
o parafuso da língua
vai partido vai saltar
agarrem-me! agarra!
pronto
pari o mais leve que o ar
Mário Cesariny
Pintura: Óleo sobre almofada de tecido - Homenagem a Mário Henrique Leiria
quarta-feira, novembro 25, 2009
Três dias de insultos no parlamento
Senão vejam! Todos os dias aqueles ilustres deputados se dizem uns aos outros: É falso! É mentira! E não se esbofeteiam, não se enviam duas balas! Piedosa inocência!
Cordura evangélica! É um parlamento educado por S. Francisco de Sales!
O ilustre deputado mente!
Ah, minto? Pois bem, apelo...
Cuidam que apela para o espalmado da sua mão direita ou para a elasticidade da sua bengala?
- Não, meus caros senhores, apela - para o País!
Quanta elevação cristã num diploma de deputado! Quando um homem leva em pleno peito, diante de duzentas pessoas que ouvem e de mil que lêem, este rude encontrão: É falso! - e diz com uma terna brandura: Pois bem, apelo para o País! - este homem é um santo! Não entrará decerto nunca no Jockey-Club, de onde a mansidão é excluída, mas entrará no reino do Céu, onde a humildade é glorificada.
É uma escola de humildade este parlamento! Nunca em parte nenhuma, como ali, o insulto foi recebido com tão curvada paciência, o desmentido acolhido com tão sentida resignação! Sublime curso de caridade cristã. E veremos os tempos em que um senhor deputado, esbofeteado em pleno e claro Chiado, dirá modestamente ao agressor, mostrando o seu diploma: - «Sou deputado da nação portuguesa! Apelo para o País! Pode continuar a bater!»
E depois que doçura de expressões! Não vimos ainda há pouco o Sr. Ávila designado no meio de uma questão financeira com estas benévolas qualificações - camaleão, sapo, elefante?! Que autoridade no dizer! que elevação no pensar! Como é instrutivo, como é moral, o ver discursos assim concebidos:
- Não aprovo o projecto do ilustre presidente do Conselho, porque entendo na minha consciência, e digo-o à face do País, que S. Exª é uma verdadeira serpente:
- Mando para a mesa a seguinte moção:
A Câmara, compenetrada de que o sr. ministro da Fazenda é uma lontra, passa à ordem do dia!
Depois o modo carinhoso como a Câmara tomou conta da infeliz palavra insulto!
Aquela pobre palavra, tão comprometedora, que nunca aparecia outrora que não fosse o sinal de um duelo ou de uma policia correccional - o parlamento refez-lhe uma virgindade e um decoro, e ela agora vem, e ninguém se revolta, e o Sr. António Aires tem para ela um bom sorriso.
- O ilustre deputado há três dias não faz senão insultar-me (textual). Três dias!
- O ilustre deputado não me insulte!
- Vou responder a esses insultos!
- Menos insultos!
Ai! o mundo despoetiza-se! As coisas terríveis perdem o colorido da lenda.
O Parlamento vive na idade de ouro. Vive nas idades inocentes em que se colocam as lendas do Paraíso - quando o mal ainda não existia, quando Caím era um bom rapaz, quando os tigres passeavam docemente par a par com os cordeiros, quando ninguém tinha tido o cavalheirismo de inventar a palavra calúnia! - e a palavra mente! não atraía a bofetada! crianças riem do papão. O diabo já não é temido. O insulto já não é aviltante! Não é! A Câmara dos Deputados vive há um mês, tendo no seu seio o insulto, em perpétua ordem do dia - e engorda!
Mas o Sr. António Aires, esse, para que continua a dizer com a sua voz eloquente:
- Amanhã continua a mesma discussão?
A escrupulosa verdade - e S. Exª, sacerdote e católico, está adstrito a observar este regimento da consciência - pede que se declare:
- Amanhã continua a mesma assuada.
Assim o público ficava avisado - e os srs. deputados também! Porque nada deve custar mais a um ilustre deputado, que quer zelar os interesses do seu país, do que ver, numa discussão, exausta a sua colecção de injúrias, findos os seus apontamentos de berros!
Não é quem quer doutor em impropérios! E assim, devidamente prevenido, cada deputado podia formar de véspera uma útil e séria lista de argumentos - consultando o dicionário, o seu aguadeiro, a porta da Alfândega e os fadistas da Praça da Figueira.
Eça de Queiroz - in Uma Campanha Alegre
Passam hoje 164 anos sobre o nascimento de Eça de Queiroz e o texto transcrito tem mais de 138 anos. Mas, se fosse vivo, talvez escrevesse algo de muito similar, provavelmente com adjectivos bem mais contundentes considerando a panóplia de meios de comunicação que hoje existe.
Senão vejam! Todos os dias aqueles ilustres deputados se dizem uns aos outros: É falso! É mentira! E não se esbofeteiam, não se enviam duas balas! Piedosa inocência!
Cordura evangélica! É um parlamento educado por S. Francisco de Sales!
O ilustre deputado mente!
Ah, minto? Pois bem, apelo...
Cuidam que apela para o espalmado da sua mão direita ou para a elasticidade da sua bengala?
- Não, meus caros senhores, apela - para o País!
Quanta elevação cristã num diploma de deputado! Quando um homem leva em pleno peito, diante de duzentas pessoas que ouvem e de mil que lêem, este rude encontrão: É falso! - e diz com uma terna brandura: Pois bem, apelo para o País! - este homem é um santo! Não entrará decerto nunca no Jockey-Club, de onde a mansidão é excluída, mas entrará no reino do Céu, onde a humildade é glorificada.
É uma escola de humildade este parlamento! Nunca em parte nenhuma, como ali, o insulto foi recebido com tão curvada paciência, o desmentido acolhido com tão sentida resignação! Sublime curso de caridade cristã. E veremos os tempos em que um senhor deputado, esbofeteado em pleno e claro Chiado, dirá modestamente ao agressor, mostrando o seu diploma: - «Sou deputado da nação portuguesa! Apelo para o País! Pode continuar a bater!»
E depois que doçura de expressões! Não vimos ainda há pouco o Sr. Ávila designado no meio de uma questão financeira com estas benévolas qualificações - camaleão, sapo, elefante?! Que autoridade no dizer! que elevação no pensar! Como é instrutivo, como é moral, o ver discursos assim concebidos:
- Não aprovo o projecto do ilustre presidente do Conselho, porque entendo na minha consciência, e digo-o à face do País, que S. Exª é uma verdadeira serpente:
- Mando para a mesa a seguinte moção:
A Câmara, compenetrada de que o sr. ministro da Fazenda é uma lontra, passa à ordem do dia!
Depois o modo carinhoso como a Câmara tomou conta da infeliz palavra insulto!
Aquela pobre palavra, tão comprometedora, que nunca aparecia outrora que não fosse o sinal de um duelo ou de uma policia correccional - o parlamento refez-lhe uma virgindade e um decoro, e ela agora vem, e ninguém se revolta, e o Sr. António Aires tem para ela um bom sorriso.
- O ilustre deputado há três dias não faz senão insultar-me (textual). Três dias!
- O ilustre deputado não me insulte!
- Vou responder a esses insultos!
- Menos insultos!
Ai! o mundo despoetiza-se! As coisas terríveis perdem o colorido da lenda.
O Parlamento vive na idade de ouro. Vive nas idades inocentes em que se colocam as lendas do Paraíso - quando o mal ainda não existia, quando Caím era um bom rapaz, quando os tigres passeavam docemente par a par com os cordeiros, quando ninguém tinha tido o cavalheirismo de inventar a palavra calúnia! - e a palavra mente! não atraía a bofetada! crianças riem do papão. O diabo já não é temido. O insulto já não é aviltante! Não é! A Câmara dos Deputados vive há um mês, tendo no seu seio o insulto, em perpétua ordem do dia - e engorda!
Mas o Sr. António Aires, esse, para que continua a dizer com a sua voz eloquente:
- Amanhã continua a mesma discussão?
A escrupulosa verdade - e S. Exª, sacerdote e católico, está adstrito a observar este regimento da consciência - pede que se declare:
- Amanhã continua a mesma assuada.
Assim o público ficava avisado - e os srs. deputados também! Porque nada deve custar mais a um ilustre deputado, que quer zelar os interesses do seu país, do que ver, numa discussão, exausta a sua colecção de injúrias, findos os seus apontamentos de berros!
Não é quem quer doutor em impropérios! E assim, devidamente prevenido, cada deputado podia formar de véspera uma útil e séria lista de argumentos - consultando o dicionário, o seu aguadeiro, a porta da Alfândega e os fadistas da Praça da Figueira.
Eça de Queiroz - in Uma Campanha Alegre
Passam hoje 164 anos sobre o nascimento de Eça de Queiroz e o texto transcrito tem mais de 138 anos. Mas, se fosse vivo, talvez escrevesse algo de muito similar, provavelmente com adjectivos bem mais contundentes considerando a panóplia de meios de comunicação que hoje existe.
terça-feira, novembro 24, 2009
Sesquicentenário
Frontispício da primeira edição em inglês do livro A Origem das Espécies (On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life), de Charles Darwin, publicado há 150 anos.
Frontispício da primeira edição em inglês do livro A Origem das Espécies (On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life), de Charles Darwin, publicado há 150 anos.
Ecos
Habitando os cafés
e refletindo as manhãs
com restos da noite,
ambientou-se ao não-ser,
traçou a inexistência,
ficou entre parênteses.
Silente e absorto,
refez os becos
de um dia oco e pesado.
Inquieto,
alimentou-se de acasos:
sorveu as praças,
o cinza das chaminés
e amargurou-se com o lamento
pulverizado dos meninos
da grande cidade.
Chorou a salobra
segunda-feira,
feita de vagidos
e tormentos.
Desse modo,
por muito tempo,
passou a repetir
as noites,
nos olhos avulsos
do esquálido cão,
que cismara em perseguir.
Um dia,
ao tentar recompor sua história,
morreu de esquecimento.
Francisco Perna Filho*
*poeta brasileiro que hoje comemora o 46º aniversário
Habitando os cafés
e refletindo as manhãs
com restos da noite,
ambientou-se ao não-ser,
traçou a inexistência,
ficou entre parênteses.
Silente e absorto,
refez os becos
de um dia oco e pesado.
Inquieto,
alimentou-se de acasos:
sorveu as praças,
o cinza das chaminés
e amargurou-se com o lamento
pulverizado dos meninos
da grande cidade.
Chorou a salobra
segunda-feira,
feita de vagidos
e tormentos.
Desse modo,
por muito tempo,
passou a repetir
as noites,
nos olhos avulsos
do esquálido cão,
que cismara em perseguir.
Um dia,
ao tentar recompor sua história,
morreu de esquecimento.
Francisco Perna Filho*
*poeta brasileiro que hoje comemora o 46º aniversário
segunda-feira, novembro 23, 2009
Alfabetizado exemplar
O professor Sílvio era o maior educador do norte goiano. Ou pelo menos pensava que era, depois de ter dado aulas em umas oito escolas rurais nos três municípios em que morou.
Com esse cacife todo, resolveu se candidatar a prefeito. Em cada comício, levava alguns alfabetizados por ele para mostrar resultados do seu trabalho. Candidatos de outros partidos gozavam, dizendo que ele ensinava as pessoas a desenhar o nome e as considerava alfabetizadas.
Contestando seus opositores, o professor Sílvio passou a pedir para alguns dos seus alfabetizados que subissem ao palanque, e fazia perguntas relacionadas à maltratada língua-pátria. A cada resposta, a platéia aplaudia e ele vibrava.
– Tão vendo? Tão vendo? Gente alfabetizada pelo professor Sílvio sabe ler e escrever, sim senhor!
Num desses comícios, subiu ao palanque o pernambucano Gregório, que chegou analfabeto ao norte de Goiás, e foi "desasnado" pelo professor Sílvio. Para mostrar que aprendeu mesmo, mandou que perguntasse o que quisessem, e o próprio professor perguntou:
– O que é sílaba?
Gregório nem vacilou. Com um ar de profunda sabedoria, sapecou:
– Sílbala é uma palavra que a gente gaguleja de uma vez só.
Mouzar Benedito
Publicado no jornal digital VIAPOLÍTICA
O professor Sílvio era o maior educador do norte goiano. Ou pelo menos pensava que era, depois de ter dado aulas em umas oito escolas rurais nos três municípios em que morou.
Com esse cacife todo, resolveu se candidatar a prefeito. Em cada comício, levava alguns alfabetizados por ele para mostrar resultados do seu trabalho. Candidatos de outros partidos gozavam, dizendo que ele ensinava as pessoas a desenhar o nome e as considerava alfabetizadas.
Contestando seus opositores, o professor Sílvio passou a pedir para alguns dos seus alfabetizados que subissem ao palanque, e fazia perguntas relacionadas à maltratada língua-pátria. A cada resposta, a platéia aplaudia e ele vibrava.
– Tão vendo? Tão vendo? Gente alfabetizada pelo professor Sílvio sabe ler e escrever, sim senhor!
Num desses comícios, subiu ao palanque o pernambucano Gregório, que chegou analfabeto ao norte de Goiás, e foi "desasnado" pelo professor Sílvio. Para mostrar que aprendeu mesmo, mandou que perguntasse o que quisessem, e o próprio professor perguntou:
– O que é sílaba?
Gregório nem vacilou. Com um ar de profunda sabedoria, sapecou:
– Sílbala é uma palavra que a gente gaguleja de uma vez só.
Mouzar Benedito
Publicado no jornal digital VIAPOLÍTICA
domingo, novembro 22, 2009
Moinho
Todos os dias me suicido,
invento dores e palavras absurdas,
é a fórmula que escolhi para me multiplicar.
Começo quando começa o dia,
estou eu sempre me recomeçando.
Faço assim porque tenho pressa,
pode ser que eu morra
antes do fim do mundo.
Além do mais,
a noite não espera
e guardo muito cuidado com ela porque,
no seu silêncio extremo,
está a perdição que me alimenta.
Percorro os caminhos como um navio,
desses que carregam fantasmas.
Vou repartindo o tempo,
ora estou na luz,
ora no escuro maior.
É assim a contradição que estabeleço
para que ninguém me encontre
nem tampouco imite o meu sofrer.
Escondo,
dentro de mim,
no peito,
um moinho.
No centro dele sou duro como ferro.
Everaldo Moreira Veras*
*poeta brasileiro
Todos os dias me suicido,
invento dores e palavras absurdas,
é a fórmula que escolhi para me multiplicar.
Começo quando começa o dia,
estou eu sempre me recomeçando.
Faço assim porque tenho pressa,
pode ser que eu morra
antes do fim do mundo.
Além do mais,
a noite não espera
e guardo muito cuidado com ela porque,
no seu silêncio extremo,
está a perdição que me alimenta.
Percorro os caminhos como um navio,
desses que carregam fantasmas.
Vou repartindo o tempo,
ora estou na luz,
ora no escuro maior.
É assim a contradição que estabeleço
para que ninguém me encontre
nem tampouco imite o meu sofrer.
Escondo,
dentro de mim,
no peito,
um moinho.
No centro dele sou duro como ferro.
Everaldo Moreira Veras*
*poeta brasileiro
sábado, novembro 21, 2009
Política
Encontrou-se, em boa política, o segredo de fazer morrer de fome aqueles que, cultivando a terra, fazem viver os outros.
Voltaire
Encontrou-se, em boa política, o segredo de fazer morrer de fome aqueles que, cultivando a terra, fazem viver os outros.
Voltaire
sexta-feira, novembro 20, 2009
quinta-feira, novembro 19, 2009
Desafio
Eu já tive...
Eu nunca...
Eu sei...
Eu quero...
Eu nunca...
Eu sei...
Eu quero...
Eu sonho...
Eu já tive o objectivo de ajudar a deixar aos vindouros um país melhor do que aquele que me calhou em sorte. Eu sei que não é fácil e, por vezes, tenho vontade de desistir, mas vou continuar a lutar por isso, porque eu nunca desisti facilmente de lutar por algo que considero ser justo. Eu quero manter acesa esta chama pois, tal como o grande Rómulo de Carvalho, eu acredito que o sonho comanda a vida.
E endosso a brincadeira aos seguintes blogistas e a todos os outros que a quiserem continuar:
O Sono das Águas
Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme.
Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d’água,
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir…
Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem
e adormece.
Até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes…
Mas nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono…
quarta-feira, novembro 18, 2009
As três pessoas
A gramática pode ser útil para a compreensão da condição humana, se a ultrapassarmos, se soubermos pensar para além das suas regras e classificações, tornando-a inspiradora.
Quando conjugamos os verbos, conjugamos de acordo com alguns parâmetros. Um deles são as pessoas. A primeira pessoa do singular, a primeira do plural, e a segunda do singular e a do plural, e a terceira do singular e a do plural.
Viajar na terceira pessoa - ele viajou, eles viajaram, eles conheceram Fortaleza, Paris, Cairo, Roma, Tóquio, eles deram a volta ao mundo. Tais viagens estão distantes de mim, distantes de nós. Podemos ler os relatos, imaginar como foi ou deixou de ser, pouco mais do que isso.
Viajar na segunda pessoa do singular - tu viajaste, você viajava - inclui o diálogo, as perguntas, os detalhes, as curiosidades, o olho no olho, em que vejo a sua viagem, em que vejo indiretamente o que você viu, o que você viveu em outras paragens.
Viajar em primeira pessoa - eu viajei, nós viajamos - tocar com os próprios pés outros chãos da mesma terra, ouvir com os próprios ouvidos outros idiomas, outras músicas, cheirar cheiros diferentes com o próprio nariz, este delicado órgão do conhecimento.
Aprender na terceira pessoa. É belo ver os outros aprendendo, renomados cientistas, sábios de cabelos brancos e olhos serenos, admiráveis pesquisadores.
Aprender na segunda pessoa pressupõe a relação, conduz ao encontro. Se você aprendeu, talvez eu possa aprender com você. Ou eu mesmo lhe ensinei algo sem saber. Quem sabe aprender aprende de tudo.
Aprender em primeira pessoa, prazer pessoal, insubstituível. Quando aprendo, eu não me arrependo, e me prendo a novas liberdades, desencadeio cadeados, destravo a alma, desprendo-me de mim mesmo.
Amar na terceira pessoa - ele ama, eles amaram, eles se amam. Este amor de telenovela, romance de outros personagens, histórias com final feliz ou trágico, amor dos outros, dicionário amoroso que posso apenas consultar.
Amar na segunda pessoa, amar o outro, amar-te aqui e agora, ou na China, ou em Marte. Amar-te até morrer. Amar-te com engenho e arte.
Amar na segunda pessoa já é amar em primeira pessoa. Amar no presente, no passado, no futuro. Amar imperativo. Amar em cada artigo. Amar em vocativo. Amar o amor em sua própria morfologia. Amar substantivamente. Amar embora, contudo, quando, porque...
Amar, enfim, com toda a riqueza das conjunções.
*professor e escritor
Publicado no jornal digital Correio da Cidadania
terça-feira, novembro 17, 2009
segunda-feira, novembro 16, 2009
A Torpe Sociedade onde Nasci
Ao ver um garotito esfarrapado
Brincando numa rua da cidade,
Senti a nostalgia do passado,
Pensando que já fui daquela idade.
Que feliz eu era então e que alegria...
Que loucura a brincar, santo delírio!...
Embora fosse mártir, não sabia
Que o mundo me criava p'ra o martírio!
Já quando um homenzinho, é que senti
O dilema terrível que me impôs
A torpe sociedade onde nasci:
- De ser vítima humilde ou ser algoz...
E agora é o acaso quem me guia.
Sem esperança, sem um fim, sem uma fé,
Sou tudo: mas não sou o que seria
Se o mundo fosse bom - como não é!
Tuberculoso!... Mas que triste sorte!
Podia suicidar-me, mas não quero
Que o mundo diga que me desespero
E que me mato por ter medo à morte...
António Aleixo, in Este Livro que Vos Deixo...
Passado, Presente, Futuro
Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.
Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.
Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.
José Saramago, in Os Poemas Possíveis
Feliz aniversário, José!
domingo, novembro 15, 2009
Matar e corromper
Blackwater é um nome sinistro para uma empresa ainda mais sinistra que se dedica a alugar ( principalmente ao Pentágono) mercenários pagos a peso de ouro para matar tudo o que mexe quando não cai lá muito bem que os assassinatos de civis inocentes sejam assacados às forças de guerra regulares.
Menina dos olhos de Bush, Cheney e Rumsfeld, desde 2004 arrecadou uma pequena maquia superior a mil e quinhentos milhões de dólares para proteger diplomatas estado-unidenses e providenciar-lhes transporte aéreo dentro do Iraque. Outras estipêndios insignificantes terão sido recebidos para operações menos prosaicas, como o assassinato a sangue frio de 17 civis em Bagdade, corria o ano de 2007.
Não admira, portanto, que para fazer face às críticas que a chacina provocou dentro dos burocratas iraquianos a soldo do império, o então presidente da empresa, Gary Jackson, tenha decidido autorizar, em Dezembro de 2007, o pagamento de subornos de um milhão de dólares, para que o governo fantoche não levantasse obstáculos à actuação dos seus meninos de coro em território iraquiano.
sábado, novembro 14, 2009
Lavoura Gramatical
Vivo de plantar artigos indefinidos
em frases substantivadas;
suor adverbial, monossilábico sol.
Enxadas verbais mondam palavras,
grãos sintáticos coloram o dia
desta lavra infame.
Ervas metafóricas crescem vorazes
sobre a colheita superlativa.
Hipérboles regam os grelos
desta plantação morfológica.
Eitos absolutos, parônimo canto;
Imensa lavoura gramatical.
Enzo Carlo Barrocco*
*poeta brasileiro
Vivo de plantar artigos indefinidos
em frases substantivadas;
suor adverbial, monossilábico sol.
Enxadas verbais mondam palavras,
grãos sintáticos coloram o dia
desta lavra infame.
Ervas metafóricas crescem vorazes
sobre a colheita superlativa.
Hipérboles regam os grelos
desta plantação morfológica.
Eitos absolutos, parônimo canto;
Imensa lavoura gramatical.
Enzo Carlo Barrocco*
*poeta brasileiro
sexta-feira, novembro 13, 2009
Homicida? E os outros?
Este homem com algemas a fazer o gesto de vitória chama-se Yaakov Teitel e é um israelita fundamentalista religioso, sionista e colono na Cisjordânia, que foi acusado, num tribunal de Jerusalém, de homicídio, tentativa de homicídio, fabrico ilegal de armas e incitação à violência.
É difícil entender estas acusações. Num país pária, ilegal, anti-semita e racista, onde a violência, o desrespeito pelos direitos humanos e os assassínios em massa de civis são a norma, em que os dirigentes, avalizados pelo chamado ocidente, não passam de criminosos e onde são produzidas ilegalmente centenas de ogivas nucleares, passou a ser crime matar palestinos a sangue frio? Afinal, o acusado não é, supostamente, dos “nossos” (salvo seja) e os seus alvos não são, também supostamente, dos “deles”? E o Deus dele, que alegadamente estará muito satisfeito, não é o mesmo Deus do Bush, do Blair, do Barroso, do Aznar, do Obama, da Clinton e de outros que tais? E não foi ensinado, desde a mais tenra idade, a ter um ódio de morte a tudo o que é palestino? Ou a acusação é só para atirar mais poeira para os olhos dos incautos?
quarta-feira, novembro 11, 2009
O mosto e as castanhas mal assadas
Pelo S. Martinho, todo o mosto é bom vinho. Este adágio, um entre as várias dezenas que existem sobre o São Martinho, significa que pelo dia 11 de Novembro se espera que tenha passado o tempo e vindo o frio suficientes para “curtir” o mosto e transformá-lo em vinho.
O que muitas alminhas desconhecem é que beber mosto como quem bebe vinho provoca fortes desarranjos intestinais que fazem os incautos andarem a correr para as casas de banho dias a fio.
Por outro lado, fazer um bom magusto requer sabedoria, pois as castanhas têm de ser mexidas e remexidas com perícia de forma a assarem uniformemente por todos os lados.
Pois parece que os mais altos mandatários da justiça cá do burgo desconheciam estas realidades comezinhas, pois apressaram-se a retirar as castanhas do lume mal a face visível tinha aspecto de assada e atiraram-se ao mosto como borracho ao garrafão. Como resultado, não conseguem descascar a face oculta das castanhas e foram atacados por uma diarreia mental que já dura há vários dias. Com a agravante de as casas de banho se situarem nas redacções dos jornais e nos estúdios das televisões.
Pelo S. Martinho, todo o mosto é bom vinho. Este adágio, um entre as várias dezenas que existem sobre o São Martinho, significa que pelo dia 11 de Novembro se espera que tenha passado o tempo e vindo o frio suficientes para “curtir” o mosto e transformá-lo em vinho.
O que muitas alminhas desconhecem é que beber mosto como quem bebe vinho provoca fortes desarranjos intestinais que fazem os incautos andarem a correr para as casas de banho dias a fio.
Por outro lado, fazer um bom magusto requer sabedoria, pois as castanhas têm de ser mexidas e remexidas com perícia de forma a assarem uniformemente por todos os lados.
Pois parece que os mais altos mandatários da justiça cá do burgo desconheciam estas realidades comezinhas, pois apressaram-se a retirar as castanhas do lume mal a face visível tinha aspecto de assada e atiraram-se ao mosto como borracho ao garrafão. Como resultado, não conseguem descascar a face oculta das castanhas e foram atacados por uma diarreia mental que já dura há vários dias. Com a agravante de as casas de banho se situarem nas redacções dos jornais e nos estúdios das televisões.
terça-feira, novembro 10, 2009
Cogito
Eu sou como eu sou
Pronome
Pessoal intransferível
Do homem que iniciei
Na medida do impossível
Eu sou como eu sou
Agora
Sem grandes segredos dantes
Sem novos secretos dentes
Nesta hora
Eu sou como eu sou
Presente
Desferrolhado indecente
Feito um pedaço de mim
Eu sou como eu sou
Vidente
E vivo tranqüilamente
Todas as horas do fim
Torquato Neto
Eu sou como eu sou
Pronome
Pessoal intransferível
Do homem que iniciei
Na medida do impossível
Eu sou como eu sou
Agora
Sem grandes segredos dantes
Sem novos secretos dentes
Nesta hora
Eu sou como eu sou
Presente
Desferrolhado indecente
Feito um pedaço de mim
Eu sou como eu sou
Vidente
E vivo tranqüilamente
Todas as horas do fim
Torquato Neto
segunda-feira, novembro 09, 2009
Aqui Está minha Vida
Aqui está minha vida - esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz - esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está minha dor - este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança - este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.
Cecília Meireles
Aqui está minha vida - esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz - esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está minha dor - este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança - este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.
Cecília Meireles
domingo, novembro 08, 2009
Poema
Renasces em ti mesma e por ti mesma.
Movimentas o sonho, a poesia e as aventuras imprevisíveis.
O imponderável é a tua matéria.
A poesia só me visita para que te realizes,
para que eu te sinta e te compreenda.
Que caminhos te prendem,
que ignotas rotas te iluminam?
Uma rosa se forma entre o teu sorriso e a aurora.
De repente,
tudo se torna tão irreal
que te sinto visível.
Emílio Moura*
*poeta mineiro
Renasces em ti mesma e por ti mesma.
Movimentas o sonho, a poesia e as aventuras imprevisíveis.
O imponderável é a tua matéria.
A poesia só me visita para que te realizes,
para que eu te sinta e te compreenda.
Que caminhos te prendem,
que ignotas rotas te iluminam?
Uma rosa se forma entre o teu sorriso e a aurora.
De repente,
tudo se torna tão irreal
que te sinto visível.
Emílio Moura*
*poeta mineiro
sábado, novembro 07, 2009
Alto Alentejo, esse desconhecido
Ver, nas páginas do jornal mais reputado do mundo, a terra de alguém que nos é próximo é algo de incomum, mas foi o que aconteceu por estes dias ao deparar-me com um enorme fotografia de Marvão, vila onde nasceu a minha sogra e na qual a minha mulher passou as férias da sua infância e adolescência, na secção de Viagens do The New York Times, com direitos de chamada à primeira página.
Pela pena do jornalista Robert Goff são desvendados alguns dos segredos do Alto Alentejo, de Marvão a Estremoz, passando por Campo Maior, Alandroal, Crato, Elvas e Évora.
Pena que nem todos os portugueses possam desfrutar da calma das pousadas Flor da Rosa ou Rainha Santa Isabel (eu conheço as duas, mas fui convidado) e dos sabores do restaurante Maria ou São Rosas (neste foi à minha conta).
Fotografia: João Pedro Marnoto para The New York Times
sexta-feira, novembro 06, 2009
Como uma flor vermelha
À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.
Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.
Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.
quinta-feira, novembro 05, 2009
Ninguém
Saio à rua, ninguém fala comigo.
Entretanto, descuidado, não falo com ninguém.
Volto à casa, ninguém deixou recado.
Porém já é tarde, durmo, esqueço,
E não telefono para ninguém.
No cais, o lenço de ninguém se agita
Enquanto entre nós a distância se faz.
E eu, estranhamente, fico olhando o mar,
Sem atinar, sem acenar,
Sem adeus.
O trem chega, a distância se desfaz.
E, no meio de uma multidão indistinta
Que não me diz mais nada,
Distingo ninguém tentando me dizer alguma coisa.
Apesar disso, passo apressado sem escutar
Aquilo que ninguém queria me contar.
Por que será então que,
Mesmo eu não correspondendo a tanta fidelidade
E a tão exato desvelo,
A presença de ninguém persiste assim
Tão intensa e tão densa
Junto a mim?
Será que, qual ave preta
E tal como noutra história,
Ninguém se afastará de mim
Nunca mais?
Emílio Burlamaqui*
*poeta brasileiro
quarta-feira, novembro 04, 2009
O país de uma nota só
Não pretendo nada,
nem flores, louvores, triunfos.
nada de nada.
Somente um protesto,
uma brecha no muro,
e fazer ecoar,
com voz surda que seja,
e sem outro valor,
o que se esconde no peito,
no fundo da alma
de milhões de sufocados.
Algo por onde possa filtrar o pensamento,
a ideia que puseram no cárcere.
A passagem subiu,
o leite acabou,
a criança morreu,
a carne sumiu,
o IPM prendeu,
o DOPS torturou,
o deputado cedeu,
a linha dura vetou,
a censura proibiu,
o governo entregou,
o desemprego cresceu,
a carestia aumentou,
o Nordeste encolheu,
o país resvalou.
Tudo dó,
tudo dó,
tudo dó...
E em todo o país
repercute o tom
de uma nota só...
de uma nota só...
Carlos Marighella*
*poeta e político brasileiro, assassinado em São Paulo pela Junta Militar, em 4 de Novembro de 1969.
terça-feira, novembro 03, 2009
A Ambição Superada
Certo dia uma rica senhora viu, num antiquário, uma cadeira que era uma beleza. Negra, feita de mogno e cedro, custava uma fortuna. Era, porém, tão bela, que a mulher não titubeou - entrou, pagou, levou para casa.
A cadeira era tão bonita que os outros móveis, antes tão lindos, começaram a parecer insuportáveis à simpática senhora. (Era simpática).
Ela então resolveu vender todos os móveis e comprar outros que pudessem se equiparar à maravilhosa cadeira. E vendeu-os e comprou outros.
Mas, então a casa que antes parecia tão bonita, ficou tão bem mobilada que se estabeleceu uma desarmonia flagrante entre casa e móveis. E a senhora começou a achar a casa horrível.
E vendeu a casa e comprou uma outra maravilhosa. Mas dentro daquela casa magnífica, mobilada de maneira esplendorosa, a mulher começou, pouco a pouco, a achar seu marido mesquinho. E trocou de marido.
Mas mesmo assim não conseguia ser feliz. Pois naquela casa magnífica, com aqueles móveis admiráveis e aquele marido fabuloso, todo mundo começou a achá-la extremamente vulgar.
Millôr Fernandes
segunda-feira, novembro 02, 2009
Didática Sobre a Morte
Tudo o que resta, o tempo para a morte
que por isso é o espaço ancestral.
Todo o tempo que resta - e é para a morte
esse que nos falta em esperança.
E assim nos restando a morte espera
o que somos e em nós se desperdiça.
Guardamos os guardados - e a vida.
(E a morte nos toma o que guardamos.)
Privamos da alegria, em sacrifício,
o que vamos dedicar depois à morte
em nosso campo de avaros a esse tempo
subtraído depois ao desperdício
que poderia ser vida se estivéssemos
na vida mais lentos para a morte.
Álvaro Pacheco*
*poeta carioca
domingo, novembro 01, 2009
Visita
Fincado nos píncaros
majestoso enigma
espreita, de perfil
Memórias de cordilheiras
em meio à ubíqua neurose
Incorruptível
no secular vício da carniça
observa o ciclo da caça
Ruídos esganiçados não te assustam
Parabólicas captam todas as aparências
Excluído do olhar humano
Impassível urubu urbano
Elizabeth Lorenzotti*
*poetisa paulista